terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Os Banqueiros e o Inferno

domingo, 23 de outubro de 2005

                Os Banqueiros e o Inferno

Índice






1.            O Presidente fala a seus ministros


Washington é uma cidade gelada. Não está coberta de geleiras porque é um símbolo. Gasta-se uma fábula de energia para mantê-la operando. No Palácio o Presidente fala a seus ministros, ou melhor, discursa na tradicional sessão de final de ano, de encerramento de mais um ano de muitas dificuldades e surpresas.
Senhores, neste início de ano sempre é importante apresentar um balanço sumário de nosso Governo. Tenho muito orgulho em lhes dizer que os Estados Unidos das Américas estão em uma fase de desenvolvimento econômico sustentada pela tecnologia e trabalho intenso e disciplinado. Podemos até dizer que o desenvolvimento é absolutamente irrelevante para o povo. Todos os americanos já têm garantida a própria sobrevivência com um mínimo bastante elevado. Apesar dos problemas gerados pela queda progressiva da temperatura, da saturação de espaços, da poluição e do esgotamento de alguns recursos naturais avançamos em muitas frentes. Talvez exatamente por efeito desses desafios tenhamos progredido tanto.
Na Terra e fora dela cientistas trabalham desenvolvendo toda espécie de produto. Nossa competência tecnológica gera milhões de empregos de altíssimo retorno. Construímos um mundo de atividades que ocupam todo americano, evitando-se ociosidades e desperdícios. Todos em seus espaços produzem, divertem-se, vivem.
Atingimos um padrão de distribuição de renda que teria causado inveja a antigos comunistas. A produtividade excepcional permite-nos trabalhar menos e produzir muito mais. Temos consciência de que a sobrevivência de todos os americanos acima de um nível mínimo de conforto é a melhor solução para todos. Nas Américas ninguém passa fome, frio ou sede.
As pessoas vivem felizes. É verdade que para grande parte delas a felicidade é reforçada por técnicas eficazes. Sob os efeitos de muitas formas de convencimento têm um cenário que aceitam positivamente. São felizes. E é importantíssimo lembrar: comportam-se adequadamente, não perturbam. Seus rostos mostram alegria, aceitação, objetivos bem definidos, saúde. As limitações que impomos são absolutamente necessárias. Quem sabe um dia venhamos a ter condições de dar-lhes mais liberdades. A liberdade que dispõem é mais do que suficiente para se sentirem bem.
Evoluímos institucionalmente. O poder político aprendeu a viver em simbiose perfeita com o poder econômico. Assim temos o apoio decisivo das grandes empresas. Elas nos ajudam tremendamente na condução das multidões. Como iríamos governá-las de outra forma? Graças às grandes corporações existe disciplina e ajustamento a nossas limitações.
Pudemos dispensar exércitos e a violência dos presídios utilizando novas técnicas de controle comportamental, graças à criatividade e competência das nossas empresas. O pesadelo das cadeias não é mais necessário. Podemos ajustar qualquer um aos nossos melhores padrões de comportamento.
Dos laboratórios e linhas de montagem saem produtos que nos trouxeram harmonia e capacidade de sobrevivência nesse planeta disposto a nos testar.
Vale a pena refletir sobre o progresso da mídia direta e indireta. A arte da propaganda encontra-se em níveis maravilhosos. Sem violência conquistamos qualquer coração.
Os religiosos, eles que antes conduziam nossos povos, agora fazem suas pregações com a tranqüilidade de administrar ovelhas amestradas. Basta-lhes conduzir rezas e rituais. Trabalham com a certeza de saber que seus rebanhos estarão no Paraíso quando morrerem.
É fácil sentir a importância dessa estratégia. Podemos comparar os EUA a outros países onde o poder não existe com tanta eficácia, onde essa forma de gerência de populações não é ainda empregada. Nesses países as agitações continuam e a produtividade é baixa. Eles só não se mataram porquê conseguimos desarmá-los a níveis mais seguros.
Ganhamos competitividade e altíssimos níveis de produção graças, principalmente, à orientação subliminar de nossa gente. E todos foram beneficiados com isso. Vivem alegres, apesar das restrições impostas pelas limitações ambientais.
Muitos poderão questionar nossos métodos mas o que se poderia desejar mais que a felicidade?
Nossos recursos de persuasão não convencionais  funcionam, são discretos, gradativamente mais poderosos. Consolidamos classes, demos forças às elites, agradamos o povo mais simples. As elites sempre estiveram em conflito com o povo, agora não. A nação está pacificada, unida, poderosa.
Conseguimos ampliar nossa ação a outros pontos do Universo. Colônias conduzidas diretamente pelas empresas associadas a nosso governo abrigam núcleos de obreiros em outros planetas. A Humanidade espraia-se harmonicamente. Na Terra deixamos alguns lugares livres de nossa influência mais poderosa. Fora dela, contudo, o espaço é nosso. Nesses lugares a disciplina é total até pelas limitações severas dos recursos existentes. São, entretanto, esperança de ambientes para futuras e maiores populações. Nosso trabalho é garantir espaço vital a nosso povo.
Somos imbatíveis tecnologicamente. O poder de conquista e sustentação é nosso. E graças à tecnologia a Engenharia Genética faz milagres. Nas Américas não temos portadores de deficiências. Podemos recuperar qualquer lesão. As pessoas têm a saúde que entendermos compensar objetivamente. A vida média está acima de cento e cinqüenta anos. Poderia ser maior mas precisamos mantê-la a níveis suportáveis, no limite de nossos poderes. Logicamente a fertilidade está restrita ao máximo e por efeito dessa política só nascem crianças selecionadas meticulosamente. Estamos gerando um povo feito sob medida. As Américas terão a raça perfeita.
Lógico que existem dificuldades, não são pequenas. Felizmente sempre conseguimos superá-las. De qualquer jeito o quadro atual não é desprezível. Talvez o maior desafio em nossa época seja o frio. A questão principal é sabermos com precisão quando esse processo estabilizará, chegará ao fim. Ficamos extremamente dependentes da energia. Produzi-la, transportá-la e distribuí-la, tudo conciliado a questões ecológicas e econômicas, está formando um pesadelo, um desafio complicado.
Nesse contexto preocupa-nos qualquer dissidência, qualquer fuga ao nosso controle. Sabemos que ainda teremos desafios maiores. Precisamos da colaboração de todos. Talvez essa situação perdure por muitos séculos. É a Natureza que estabelece suas regras. Nós simplesmente poderemos aprender a viver em suas condições. A fragilidade de alguns sistemas, entretanto, é preocupante. Algum grupo de malucos poderá causar prejuízos monumentais. Os mais doidos escapam de nossos processos de influência. Quem entende o cérebro deles?
Os controles talvez precisem aumentar. A liberdade, esta eterna utopia, será um pouco mais afetada, reduzida. Estamos com os maiores e mais fortes. Eles o são porque reuniram qualidades para tanto. E nós somos parte desta elite. Bons ou maus, garantimos a sobrevivência de nosso povo. O exercício desses poderes poderá ultrapassar limites éticos, agredir filósofos, ofender pensadores mas é absolutamente necessário.
Tecnologia, a grande ferramenta.
Ciência e tecnologia, nosso espaço privilegiado. Por este caminho conquistamos o Mundo e seus espaços vizinhos. Precisamos avançar mais. Para tanto estamos acionando o WIB. Temos cérebros fantásticos, precisamos usá-los adequadamente. A inteligência, antes sobre corpos aleatórios, agora pode trabalhar em programas organizados, coordenados nos mínimos detalhes. Estamos progredindo aceleradamente nesse sentido. Logo teremos uma estrutura de produção fantástica e nela a esperança de melhores soluções para os desafios atuais.
Senhores ministros, é fundamental uma visão estratégica, a existência de planos para qualquer hipótese, qualquer acidente ou sucesso espetacular. Não custa lembrar que em certos aspectos estamos nos aproximando de limites perigosos. Ainda existem nações atrasadas, ambientes onde surpresas de toda espécie poderão surgir.
Do espaço temos a possibilidade de outros problemas. O controle dos asteróides e cometas é uma responsabilidade imensa e temos, felizmente, obtido sucesso nos casos identificados. 
Tudo o que tem acontecido evidencia nossa competência. E precisamos de muita competência. Somos um país rico mas até nosso povo tem suas limitações. É fundamental racionalizar despesas, reduzir custos. Precisamos investir muito para resistir às transformações que nosso clima está nos impondo. São obras gigantescas, há necessidade de muito dinheiro. Entendam dinheiro em seu significado puro, ou seja, mobilização de trabalhadores, produção. O papel que denominamos dinheiro é o documento de contratação e troca de produtos. Evoluímos muito nesse sentido, felizmente já não nos encontramos dentro das limitações, que dominaram o segundo milênio de nossa história. Tudo deve ser visto com muito cuidado, entretanto. Quais são as nossas prioridades?

O Presidente durante horas e com imensos painéis e gráficos de toda espécie passa a falar detalhadamente sobre os planos de seu governo. O tempo e a paciência são gastos de acordo com a eterna capacidade dos aderentes ao poder de agradar seus chefes. Sempre, em todos os lugares, nunca houve espaço para mais do que um líder. O macho dominante se diverte expondo suas manias, vontades e caprichos. E os áulicos aplaudem. Fica sempre a dúvida se o comando é o lugar do mais forte ou daquele que ao logo do tempo teve mais capacidade de submissão, de renúncia. Possivelmente ao longo dos tempos os dois tipos se revezaram, aconteceram. De qualquer forma é mais provável que o tipo mais comum tenha sido o do pusilânime, daquele que melhor serviu aos poderosos, esses sempre ocultos mas plenos dos prazeres do comando real.

O Presidente termina sua fala:

Concluindo podemos afirmar que a responsabilidade dos Estados Unidos das Américas é imensa. Vamos merecê-la sobrevivendo e aprimorando a vida de nosso povo. Sabemos o que lhes interessa e temos o controle dos instrumentos de produção. Usá-los é nossa responsabilidade e compromisso com nossos melhores ideais.




2.            Os banqueiros analisam débitos


Nada irrita mais uma diretoria de banco do que a inadimplência ou toda ação do governo que lhes perturbe. Os governos agora são, mais do que nunca, comandados por eles ou parte deles. Sobra a inadimplência como o grande vilão de seus interesses.  A sobrevivência do MBI depende do pagamento de contas que seus clientes nem sempre entendem. No caso do MBI essa é uma questão mais delicada pois o banco consome muita energia e suas instalações são de alto custo. Seus serviços exigem estruturas complexas, operadas e mantidas pelos melhores autômatos e executivos disponíveis.
A cobrança de contas atrasadas não é fácil pois o sentimento do benefício do serviço tende a se perder com o tempo. A imensa motivação existente na hora do contrato diminui com o tempo. Como exigir fidelidade? O melhor é o eterno discurso de que se hoje o débito é conseqüência de um processo antigo, no futuro o devedor poderá estar dependendo da fidelidade de um descendente, é prudente sustentar um comportamento coerente com os interesses pessoais.
Os banqueiros, contudo, estão diariamente precisando tomar decisões drásticas. O desligamento de certos clientes abandonados pela sorte é terrível. Felizmente para eles falta-lhes sensibilidade para essas questões. Na frieza de seus pensamentos todos são tratados como números, contas e processos. Afinal são executivos, executam seus clientes com prazer. Os acionistas desfrutam os lucros na sombra das leis que os protegem.
Os banqueiros preocupam-se com eventuais reações políticas, revolucionárias e, naturalmente, de quem lhes dá ordens.
Mesmo nesse mundo altamente controlado, monitorado, ainda existe a possibilidade de algum grupo fugir ao controle das autoridades. Principalmente nos países mais distantes, onde o banco mantém filiais altamente lucrativas (do contrário não estariam lá), o risco de conflitos existe preocupando os dirigentes do MBI. Eles sabem que precisam defender instalações caríssimas, como fazê-lo nesses lugares?
O maior custo é sempre o da segurança e mídia. Defender-se dos mais rebeldes e dominar os mais ingênuos pelos processos de mídia é a  eterna e simples receita do poder.

Na reunião os diretores comentam os efeitos dos últimos processos de desligamento. O presidente, John, comenta:
- Precisamos desenvolver formas mais inteligentes de desligamento. O lamento dos atingidos é terrível, perigoso. Poderemos  enfrentar reações violentas. Quando começamos nossas atividades, isso não existia mas à medida que avançamos no tempo vamos chegando a momentos limites em que decisões mais duras acabam sendo rotinas. Nossa rotina, entretanto, é severa. Atingimos sentimentos perigosos e capazes de reações violentas. De dentro do próprio banco existe a possibilidade de reações "subversivas". Nossos depósitos estão cheios de elementos extremamente inteligentes, falta-lhes capacidade de ação física mas nada impede que encontrem fora o que lhes falta aqui dentro

Mário, Diretor de Segurança, comenta suas providências a respeito.
- Estamos criando barreiras eletrônicas para isolamento de nossas agências além de estarmos permanentemente atentos a toda espécie de comunicação. O comportamento das pessoas externas é mais difícil de ser controlado. Existe, em alguns lugares da Ásia, a possibilidade de surgir um movimento de negação a nossos serviços. Dizem que somos simples instrumentos do inferno, do mal. Lá o povo possui cultura clássica fortíssima, é muito difícil manipular suas idéias.

John comenta.
- Quando pediram nossos serviços não pensavam dessa forma. Todos nos aplaudiram pelas chances que oferecíamos de mais segurança e esperanças de mais vida e recuperação de atividades que o tempo lhes tirara. Tudo, entretanto, custa dinheiro, trabalho. Lamentavelmente não somos uma instituição sem custos.

Mário continua sua exposição.
- Presidente e senhores diretores, outro aspecto importante é como destruir o que não nos interessa mais. Os técnicos até agora não encontraram uma forma  discreta, capaz de satisfazer o patrocinadores falidos. Nossas atividades não são simples, exigindo muita competência entre pessoas com comportamentos extremamente diferentes e complexos.
Classificamos os clientes. Conhecemos contas e resultados. Em muitas agências encontramos elementos extraordinários, deles aproveitamos muito e deveremos conseguir mais no futuro pois logo teremos sistemas mais eficazes no aproveitamento deles.
Outra hipótese é o aproveitamento na indústria. Chegamos a um ponto em que é possível utilizar esses elementos em sistemas fantásticos, sabemos muito bem disso pois somos produto dessa tecnologia.
A verdade é que os serviços e sub produtos de nosso Banco viabilizam coisas inimagináveis há pouco tempo.

Os diretores pedem a palavra iniciando um debate disciplinado e objetivo como só eles são capazes de fazer. Enquanto falam o resto de muitas vidas são destruídas.

João, técnico de apoio ao representante dos acionistas, pensa vendo a discussão dos banqueiros:
"Li muito sobre o Brasil, quanta semelhança com aquele país subdesenvolvido do século 20. Naquela época, e agora vemos situação idêntica,  o povo era o material de consumo. Creio em reencarnação. Já fiz análises, por mais estranhas que pareçam em nosso tempo. Nelas encontrei-me no Brasil, mais precisamente em Curitiba, uma cidade ao sul daquele país. Quanta semelhança, monotonia, continuidade. Será que simplesmente imagino coisas quando me parece tudo igual?
A verdade é que vejo os banqueiros e penso no Brasil...
A mediocridade não é privilégio dos sul americanos. Eles, talvez com menos eficácia, sempre estiveram nas mãos de elites poderosas. A palavra elite é um erro, nas mãos de gente poderosa, melhor dizendo."



3.            Laboratório de pesquisas Alfa / Ômega


Reunião de análise e planejamento de tarefas. O Laboratório Alfa/Ômega, mais conhecido pela sigla AO entre seus íntimos, é uma instalação para pesquisas biológicas escondida entre outros prédios em uma grande cidade asiática. Externamente é visto como um simples laboratório. Alguns projetos comuns acontecem para disfarçar o verdadeiro objetivo de um time seleto de cientistas. Desenvolvendo uma pesquisa altamente secreta, vivem um mundo restrito, enclausurado mas de altíssimo valor para essas pessoas que adoram desvendar e desafiar os segredos da Natureza.

Marcel é o responsável pela equipe de cientistas. Alto, magro, encurvado pelos anos de estudos, comanda um time estranho de cientistas. Profissionais apaixonados pela própria arte, totalmente alienados, são autênticos escravos de suas artes. Marcel inicia a reunião:
- Meus amigos, mais uma reunião de trabalho para atrapalhar suas pesquisas. Nosso trabalho é apaixonante mas precisamos prestar contas a nossos patrões. Tenho acompanhado suas pesquisas e seus relatórios me deixam animado. Aqui, agora, vamos rever alguns pontos mais delicados de nosso projeto.
Wolfgang, peço-lhe para relatar o desenvolvimento do Projeto Esfinge, por favor.

O alemão apruma-se. O rosto vermelho e a barriga grande escondem uma inteligência privilegiada. Após inúmeros cursos e níveis técnicos galgados com brilhantismo em sua empresa, agora trabalha em um projeto da alta significação para sua companhia. Orgulhosamente fala:
- Os resultados de nossas últimas experiências são fantásticos. Nossas metas estão sendo atingidas conforme planejamos. Passo a passo estamos prestes a desenvolver nosso primeiro filhote de destaque. Isso significa, entretanto, a necessidade de maiores cuidados. Estamos muito adiantados mas chegando a um nível perigoso. Nesses confins do Mundo vivemos sob riscos permanentes. A vantagem é podermos trabalhar longe de muitos curiosos. Creio que nossos acionistas estão satisfeitos e ficarão mais ainda quando souberem que finalmente desenvolvemos um vírus diferente, super resistente e letal. Há pouco tempo nossos robôs mostraram o resultado em cobaias e o teste apresentou efeitos impressionantes. Em poucos dias estavam mortas apesar da aplicação das melhores vacinas e remédios. É altamente veloz no processo de contágio e em pouco tempo liqüida suas vítimas. O ambiente de ensaios está muito bem isolado, só assim pudemos testá-lo. Evidentemente agora precisaremos desenvolver as vacinas, que serão nosso domínio de controle dessa doença, que poderemos gerar onde e como desejarem nossos chefes.
Nossa equipe continua a trabalhar. As maiores dificuldades estão nos autômatos. Precisamos de peças de substituição e alguns mostram problemas no sistema de controle. Ontem um deles quase saiu da área de isolamento, conseguimos destruí-lo antes que atravessasse as barreiras. Se isto tivesse acontecido o vírus que desenvolvemos teria atingido a atmosfera exterior com resultados imprevisíveis.
Nosso desafio é manter a confiabilidade do laboratório e, agora, conseguir, como já o dissemos,  uma vacina contra as doenças produzidas pelo vírus desenvolvido.

- Sucesso paradoxal o nosso. A partir desta etapa poderemos ser as primeiras vítimas de nosso trabalho. Todo cuidado é pouco daqui por diante.  Nesses recantos asiáticos não teríamos a mínima chance de socorro se viéssemos a errar.
Deveremos ter uma reunião de acionistas. Insistirei em mais recursos para o aprimoramento de nossos sistemas de defesa. De qualquer modo é importante o máximo de atenção.

- Para iniciar a próxima etapa de desenvolvimento das vacinas seguiremos um padrão de ensaios que ao final envolverão seres humanos. Felizmente na comunidade ignorante em que vivemos, superpovoada ainda por luxo, qualquer falha controlável de nossa parte será pouco vista. Afinal que diferença fará a perda de alguns indivíduos nesta babel terrestre?

- Somos um time de alto valor. Precisamos cuidar de nós mesmos. Infelizmente, contudo, não teríamos como fugir em tempo se algum acidente maior acontecer.
Como estão nossos sistemas de energia e processamento de dados, Peter?

- O mais frágil é o sistema de energia. Temos muitos recursos com redundância mas tem-se exigido muito dos equipamentos instalados. Seria prudente reforçá-los, até porquê se tivermos que sobreviver isoladamente será necessário aproveitar ao máximo a energia solar, o que não é abundante ao lado dessas montanhas geladas. O maior perigo nos sistemas de processamento de dados e automação é o risco de algum vírus, eletrônico, software, entrar em nossos circuitos. Ironicamente a eletrônica também tem suas doenças e elas poderão afetar nosso mundo de carne e osso.

- Nosso Laboratório é parte importante dos planos de nossos acionistas. Eles não são muitos mas devem compreender que o investimento enorme que fizeram aqui precisa de mais um pouco para chegarem onde pretendem. Não sabemos exatamente o que desejam nem é nosso padrão questionar idéias, opiniões políticas. É importante, contudo, o máximo de atenção e levarei ao Conselho de Administração a preocupação de vocês.
Preciso de um plano mais detalhado, um levantamento formal de necessidades, riscos e objetivos.
Ganhamos dimensão com as descobertas recentes. Agora finalmente teremos um produto que há muito pretendiam. Poderemos e deveremos mostrar tudo isso com competência.
Nosso querido AO agora poderá respirar melhor. Ganhamos importância.






4.           Um encontro fortuito


Andando pelas avenidas de Miami com minhas roupas especiais -  para resistir à poluição, e não estou longe do mar, encontro alguns amigos. São antigos companheiros de cursos sobre ecologia e meio ambiente. Envelhecidos, caminham com dificuldades em meio a um ambiente motorizado, automatizado e agressivo.

- Olá pessoal! Que surpresa encontrá-los aqui. Perdidos na metrópole? Não imaginava revê-los por aqui. Vocês sumiram. Alfredo, há quanto tempo não nos encontramos. E você, Gilberto? Continua filosofando? (consegui lembrar os nomes deles, ainda bem!. Abraçamo-nos com emoção. A caminhada diminui de velocidade e muda de direção. Começamos a conversar) .

- Estamos bem. Passeamos um pouco, andamos revendo esta cidade feia e bonita.

- Tudo depende dos olhos de vocês. Não estão cansados? Gente, sem querer ofendê-los, ainda é linda.

- Não há dúvida mas é uma cidade complexa.

- Complexa?

- Sim. Aqui vemos o resultado de uma mistura entre o Norte e o Sul, Leste e Oeste do Mundo, trópicos e árticos bem embaralhados. Mas cresceu demais, muito além do que seria desejável.

Alfredo completa a crítica. Era um companheiro sempre contestador e uma de suas paixões era o urbanismo. Dentro de uma visão ambientalista, via com pesar a mania expansionista dos administradores públicos.
- Maldita mania de crescer sem parar. Destruíram muitos lugares, milhões de pessoas mudaram-se para cá e acabaram penalizando seus descendentes...

- Por onde vocês têm estado? Vão fazer o quê?

- Descansamos de uma viagem a ilhas lá no meio do Pacífico. Não temos mais o que fazer por aqui. Procurávamos lugares para estudos de animais há muito extintos em nosso continente. O Gilberto e eu decidimos, com nossas esposas, pesquisar outros mundos, onde o ser humano ainda não tenha modificado o suficiente para deixar sua marca de destruição. Encontramos um paraíso. O melhor estudo, entretanto,  que estamos fazendo, é reaprender a viver.

- Vocês me parecem um bocado chateados. Pelo jeito não gostam do que vêem por aqui.

- Tem razão. A vida está ficando impossível. Esta cidade, por exemplo, já foi um lugar maravilhoso. Agora, até para caminhar nesses calçadões precisamos de roupas especiais. E estamos em um país rico. Nos países mais pobres a situação é infinitamente pior. Optamos pelo isolamento. Onde trabalhamos estamos longe de tudo isto. A Natureza é nossa companheira.

- Decisão radical. E estão conseguindo sobreviver? Vejo cabelos brancos e alguns sinais a mais do tempo.

- Abandonamos os recursos da tecnologia. Envelhecemos, sim, mas dentro de um processo natural. Afinal a vida também cansa. Com alguns cuidados, contudo, ainda iremos longe. Em compensação vivemos de pés no chão, olhos abertos para os mares e céus que nesse país vocês já não conseguem enxergar.
Não é fácil envelhecer. Por efeito de nossas inteligências temos imensa consciência do que isso representa. Vemos em nossas mãos a pele mostrar sinais que víamos em pessoas idosas. Nossos cabelos embranquecem, a memória falha e a vida sexual, algo tão importante durante tanto tempo, começa a dizer que está terminando. Vemos, contudo, quanto é maravilhoso terminar, quanto é fantástico este “por do sol” natural. Vamos morrer em breve mas o faremos em paz com a Natureza.
Sentimos em vocês a obsessão por uma vida inútil, o prolongamento estéril da vida. Isso nos parece pior do que qualquer vida ou morte. Acreditamos, também, que se valer a pena, continuaremos. Deus, isso que todos dizem acreditar mas todos temem, pior ainda, que julgam ser nosso grande árbitro e algoz, talvez tenha reservado para algumas espécies um destino posterior. A curiosidade mata. Que esse suicídio seja bem vindo, acredito ser um renascer ou um belo sono eterno.

Gilberto, mais botânico que biólogo, comenta, talvez querendo fugir de uma lógica tão mórbida:
- E lá vemos uma quantidade enorme de plantas, de combinações aqui perdidas. Infelizmente o excesso de gente tende a transformar tudo em alimento. E lá as flores estão entre pedras e no meio de bosques. Nada é artificial. A população local, pequena, vive da pesca e algumas plantações. Há séculos regulam as próprias famílias de modo a não aumentarem muito. Não constituem problemas e sim mais um personagem em um quadro maravilhoso. Nossa maior preocupação é não destruir aquele paraíso.

- E o que fazem aqui? Ainda dependem do “Mundo poluído”?

- Nem tanto, viemos encerrar compromissos, contas passadas. A decisão de romper completamente com o passado “moderno” veio há pouco tempo, após muitos anos de convivência com os nativos daquelas ilhas. Voltaremos e “jogaremos as chaves fora”.

- E as mulheres estão tão certas da validade destas decisões? A vaidade delas aceita o envelhecimento?

- Elas são as maiores entusiastas do processo. Vivemos juntos e com muito mais liberdade. As mulheres sempre me fascinaram. Elas são incríveis. Geniais na ingenuidade, enxergam muito mais do que nós. Dentro delas há um relógio biológico incrivelmente mais preciso que o nosso. Elas têm prazos definidos, um número preciso de óvulos, um tempo para procriar, ter filhos, educá-los e soltá-los. Elas foram concebidas com data de validade de que são conscientes. Vivem a vida de uma forma absolutamente superior à nossa. Sentimos isso em nossa comunidade isolada. Sem qualquer forma de fuga dos instintos, elas se mostraram soberanas. Envelhecemos juntos. Sei que a partir de um momento elas dirão, chega, parem. Sei que elas mudam. Estão acostumadas a mudar. O ciclo menstrual tem prazo e sentimentos muito definidos. Nós, homens, não sentimos a vida dessa forma. Recuperamos muito rapidamente nosso esperma. Logo estamos de saco cheio e doidos para transar. É uma compulsão. Estúpida ou maravilhosa, o fato é que acabamos não percebendo as diversas formas de amor, de ser e estar. Estamos sempre tensos, agressivos. A velhice, contudo, traz-nos a capacidade de pensar, de regular melhor nossos instintos. Aí começamos a ver o Mundo de uma forma mais sadia e inteligente. Fugimos das baixezas do jovens, das infantilidades e comportamentos compulsivos que nos perturbam e impedem um comportamento lúcido. A inteligência é um fardo pesado mas eventualmente agradável. Ela própria pode nos dizer como agir, governar sentimentos, disciplinar comportamentos. Ótimo! Somos felizes. Precisamos de mais?

- Um bocado machista a visão que vocês têm das mulheres. Para ser franco, não acredito que elas aceitem tão tranqüilamente o envelhecimento. Aposto que alguns remédios elas escondem.

- Realmente nem tudo está errado na sociedade de vocês. Nosso desafio é compor um equilíbrio, encontrar uma solução de compromisso entre o que entendemos ser necessário e suficiente à vida. Acreditamos que a felicidade está, ou melhor, precisa deste equilíbrio. Temos crenças religiosas e nelas nos apoiamos para aceitar o envelhecimento e a morte. Isso é algo inaceitável para os povos mais "desenvolvidos". A Humanidade mais rica desenvolveu ao máximo o apego à vida. Nossos instintos levam-nos a lutar pela preservação da vida, esses impulsos foram reforçados pelo culto ao consumismo, ao prazer de existir. Tudo isso tem seu lado positivo mas também trouxe o peso da superpopulação, da necessidade de controles, do enclausuramento do ser humano. Papo pesado, não?
E o  trabalho de vocês, como vão as propostas malucas?

Dizer que nossas propostas são malucas mexe um pouco com meus sentimentos mas sempre foi assim, afinal não é fácil uma pessoa entender as pesquisas que realizamos, entre nós mesmos existe um bocado de divergências sobre o mérito de nosso trabalho. O que posso dizer a respeito deles? Vamos ao resumo:
- Estamos trabalhando muito, o Projeto Vida Básica é o mais romântico, apaixonante. Acompanhamos projetos de centros de pesquisa e laboratórios independentes, também. Procuramos, no mínimo, analisar hipóteses para o futuro.
Diversas equipes dedicam-se a pesquisas entre fascinantes, cômicas e polêmicas. Todos elas, contudo, têm algum significado especial, nem sempre entendido adequadamente.
Entre as alternativas mais polêmicas, a mais empolgante é a redução do tamanho físico dos seres humanos. Assim estudamos formas de tornar a Humanidade mais ajustável a seu ambiente simplesmente reduzindo o tamanho das pessoas. Evidentemente não seria através de qualquer máquina redutora mas atuando sobre os descendentes, fazendo com que as próximas gerações, gradativamente, venham a ter o tamanho físico sustentável em nosso planetinha superpovoado.

- E o que pretendem com isto?

- Vamos lembrar os esforços feitos para aumentar a produção de alimentos, abrir espaços e obter energia. Há muito tempo os homens, a cada geração, nascem maiores. O homem gigante, à semelhança dos grandes lagartos da pré história,  está surgindo rapidamente. Em nossa cultura tradicional ter filhos maiores fisicamente é bonito, motivo de orgulho. Isso é atávico, é efeito de nossos instintos, sempre procurando mais força, maior capacidade de conquista de espaços. Lógica errada, semelhante à da antiga indústria automobilística. Ela demorou a inverter a mídia, a princípio favorável aos carros cada vez maiores. O transporte individual tem um elevado custo ambiental, maior ainda se utilizando veículos absurdamente perdulários.
Precisamos usar todo o domínio científico para, com os conhecimentos da engenharia genética, diminuir o tamanho dos seres humanos. O consumo "per capita" deverá diminuir em proporções significativas. O gigantismo é uma imbecilidade antiecológica. Temos conhecimentos científicos de sobra para reverter esse processo. Ocupamos espaços demais. Consumimos um absurdo de água, alimentos, energia. Precisamos disso tudo? Para quê? Há evidências da existência de seres de outros sistemas solares. Todas elas mostram indivíduos pequenos com cabeças grandes. Pura fantasia ou pura lógica? O mínimo que podemos ver é a importância do aumento do cérebro e a necessidade de redução dos corpos.

- Duvido que vocês venham a ter sucesso. Principalmente os religiosos vão gritar.

- Não é fácil. Discussões éticas e religiosas intermináveis protelam decisões. Será preciso muito trabalho para convencer nosso povo. Aliás, seria preciso convencer ou simplesmente haver alguma decisão que talvez tenha sido tomada ontem?
É importante que a Humanidade inteira aceite essa proposta, seria injusto que apenas uma parte dela se submetesse a esse tipo de ajuste. Talvez só após um desastre maior, acontecendo problemas reais de alimentação e acomodações de toda espécie tenhamos ambiente para uma mudança dessa espécie. Dentro de um acordo mundial, as nações precisariam aceitar tratamentos que reduzissem o tamanho de suas populações, o tamanho físico.
Evidentemente esse processo não poderá continuar indefinidamente. Há limites mas a verdade é que a Humanidade precisa rapidamente encontrar uma solução de compromisso entre o número de habitantes e os recursos e espaços disponíveis sobre a Terra. Perdemos muito com a saturação. Estamos tendo dificuldades crescentes e perigosas. Todo o potencial da tecnologia tem sido usado para manter os povos bem comportados e vivos. Talvez aí esteja o grande erro de nossa cultura. Criamos autômatos, protelamos a morte, inviabilizamos a vida.

- Legal! Você tocou num ponto sobre o qual já temos posição firmada. Estamos fugindo dos processos artificiais de sobrevivência. Pagamos um preço elevado por isso mas sentimos maior coerência e felicidade estando em nossa ilha, convivendo em harmonia com a Natureza.

- Nossos cérebros reclamam uma condição diferente. É difícil aceitar a morte. Creio que ainda não evoluímos o suficiente para entender a vida ou, quem sabe, acreditar realmente em outras formas de existência. As religiões dizem isso. A grande maioria reza muito, diz acreditar em Deus mas na hora final tremem diante do vestibular para o outro mundo. Creio que nossa sociedade  nunca aceitará, como vocês o fizeram, o envelhecimento natural. Aumentando os limites de saturação daremos ao nosso planeta maior capacidade de sustentação de seres humanos.

- Realmente, o consumo de alimentos e energia, a ocupação de espaços e qualidade do ar e água permanecerão constantes durante muito tempo. O aproveitamento de espaços melhorará. Evidentemente uma questão delicada será decidir o que diminuir e de que forma fazê-lo.
Gozação à parte não há como protelar durante muito tempo a situação atual. A tragédia do crescimento da população humana já atinge níveis deploráveis. Nosso Projeto Vida Básica mostra o que perdemos. É triste constatar quão distante estamos da maravilhosa natureza. Alguém poderá dizer que dentro dessa natureza existe a morte, as doenças. Podemos também lembrar que temos um sentimento de afeição atávico à natureza. Alguém poderia afirmar o próprio desprezo pelas cores e cheiros das florestas, campos e mares sem a nossa presença? Reduzir o tamanho é a única solução antes da proposta de vida maior sempre apresentada pelo MBI. Outra "solução" seria estimular guerras, epidemias, "acidentes" que exterminassem uma parte da Humanidade, tremo só de pensar... O controle da natalidade é a prática tradicional que mostrou resultados relativamente bons. Infelizmente essa é uma prática mais aceita pelas populações mais desenvolvidas. Enquanto os mais inteligentes controlam a geração de filhos, os mais idiotas os têm sem qualquer limitação.
Acredito que a redução do tamanho das pessoas é algo perfeitamente realizável e eficaz, sem grandes traumas se acontecer gradativamente.

- Vocês estão ficando doidos. Acreditam que povos atrasados aceitarão tratamentos neste sentido? Muitos dirão que representam a vontade de seus deuses e só eles poderão alterar parâmetros tão importantes.

- Ou mudam ou morrerão da pior maneira.

- Vocês irão matá-los?

- Não. Mergulharão no lixo, na falta de ar, de energia, de espaços...

- Vai ser divertida a discussão do que diminuir. Você já escolheu?

-  Falando tecnicamente o principal seria reduzir a altura e o peso. Assim o consumo de alimentos e de espaços diminuiria. Estaríamos criando novos conceitos de beleza.
O cérebro humano não poderá diminuir, já é pouco para os desafios existentes... Braços e pernas diminuindo voltaremos, talvez, ao que éramos há poucos séculos, ajustando-se desta forma as pessoas às estruturas físicas daquela época. Seria importante, contudo, chegarmos a dimensões menores...

- A verdade é que poderemos rever padrões e economizar uma fábula de recursos, desperdiçados atualmente para sustentar tantos indivíduos desnecessariamente grandes.

- Fico imaginando a forma física de nosso povo futuro. Até que é divertido pensar a respeito. Talvez algum esforço e processos de mídia sejam usados para convencer principalmente as mulheres de que o "pequeno é bonito"....

- Pelo que vejo realmente poderemos estar mergulhando na manipulação genética. Desse jeito logo seremos iguais às formigas, existirão as operárias, o zangões, a rainha procriadora. É apavorante imaginar a Humanidade se transformando num aglomerado de pessoas hiper controladas, em que até o desenvolvimento genético venha a ser planejado.  Há tecnologia para isso.

- E esse negócio de Ets não seria pura fantasia?

- Os "ETs" devem existir, é minha teoria. Nesse universo infinito é ridículo imaginar que a Humanidade seja a única espécie inteligente. As limitações físicas, as imensas distâncias é que impedem maiores contatos. Talvez eles estejam acontecendo, não temos certeza. Os registros de comunicação existentes não são de domínio público exceto aqueles que "escaparam" do controle das autoridades.



- E os banqueiros? Eles pouco a pouco estão acumulando força, não apenas pela riqueza mas pelo volume e utilização de seus depósitos. Se utilizados adequadamente serão computadores formidáveis à disposição de seus acionistas. O mais incrível é a semelhança impressionante deles com o mais comum dos seres humanos. A mesquinharia parece conquistar suas lógicas. Seus chefes conseguiram a perfeição, os banqueiros parecem seres humanos comuns.
 Vamos para nossas fantasias. A triste verdade é que aqueles que pagam salários governam consciências.

- É, a figura do acionista, do controlador das grandes empresas está crescendo sempre. Quem manda no Mundo atual são esses grupos de indivíduos que dominam tecnologias e milhões de trabalhadores, a serviço de seus interesses. Como saber o que decidem em seus escritórios? Isso faria alguma diferença?

- Conversa pesada gente, estou preocupado é com o que será necessário diminuir para sobreviver no mundo futuro. Dá para imaginar a figura que seremos.
Pegando uma caneta começo a desenhar figuras com hipóteses de formação.

Aos poucos as gargalhadas tomam lugar dos sentimentos mais pesados...

E este foi o início de uma grande conversa. Em um clube próximo, devidamente protegido do ambiente externo, perigoso sob diversos aspectos, continuamos a falar.

A cerveja, este maravilhoso invento de tantos milhares de anos de vida, é um grande estimulante a conversas intermináveis, confissões ousadas, idéias que se esquecem rapidamente. O álcool solta a língua, permite-nos dizer coisas que escondemos.

Ponderamos sobre os aspectos negativos do planeta em que vivemos, falar mal é contagiante, traz assuntos polêmicos e apaixonantes. Com mais coragem resolvemos fazer algumas análises.

Eu comento:
- O Mundo, superpovoado, despersonaliza-se. Multidões, edifícios gigantescos, sistemas de transporte furando a terra em todos os sentidos criaram um ambiente atordoante. Parecemos minhocas atômicas.  Nos países mais desenvolvidos tudo está construído para resistir ao frio, suportar grandes concentrações humanas, reduzir o consumo de energia, administrar lixo, água, esgoto e gente. Vive-se dentro de embalagens de toda espécie. Estamos empacotados, etiquetados, carimbados. Com prazo de validade e instruções de uso e nossos governos administrando-nos como se fôssemos pacotes de objetos perecíveis.

Alfredo continua.
- Um aspecto delicado é a exacerbação do individualismo. O gigantismo das cidades fez dos seres humanos pessoas solitárias dentro de imensas multidões. Na reação ao formigueiro tornaram-se indiferentes às questões sociais. Cegos que nem as formigas, trabalham para sustentar a rainha.
Além de todos os sistemas de formação de opinião, propondo posturas alienadas, verifica-se o movimento instintivo em direção ao isolamento, à indiferença. Cada um vive em seu grupo de amigos. A baixíssima fertilidade, residências minúsculas e o medo de se abrirem fez dos clubes os locais de vida social. Fora isso apenas a indiferença e quase hostilidade.

Preciso lembrar:
- Por outro lado nunca tivemos um período tão longo de paz.  A violência dos exércitos felizmente acabou. Realmente preocupa a redução de espaços sociais, físicos, culturais. Mundo estranho em que vivemos. Todos querem existir mas aceitam tão pouco...

Alfredo desafia:
- Com tantas dificuldades você apenas nos mostra que agimos certo. Fugimos para nossas ilhas, afastamo-nos dos formigueiros. E lá não perdemos muito pois, aqui, o esgotamento das fontes  de energia e a poluição praticamente acabaram com a mobilidade individual. Ir e vir, tão fácil há alguns séculos, agora é algo cheio de restrições.  Até o transporte coletivo é caro e limitado. Assim as pessoas vivem, trabalham, divertem-se, estudam e tudo o mais  próximas de seus lugares de residência. Voltamos às condições de vida da Idade Média, quando o homem comum vivia e morria em um espaço de poucos quilômetros de raio.

- Pior que isso, somos pássaros em gaiolas tecnológicas.

- O transporte aéreo inviabilizou-se há muito tempo. Agora é restrito às principais autoridades. As viagens passam por controles crescentes. Lugares históricos estão cercados por imensas cúpulas de aço, vidro, alumínio e cristal. A poluição e a destruição pelo simples acesso obrigaram as autoridades mundiais a tomarem essas medidas. A graça do contato físico com os grandes monumentos e lugares históricos tornou-se impossível, diminuindo ainda mais os poucos e valiosos espaços de reflexão. O turismo é controlado rigidamente. Os programas de longas viagens precisam ser submetidos a diversas formas de análise. Leva-se meses para se ter uma simples resposta a uma proposta de programa de viagem de lazer a longa distância, mesmo tendo-se dinheiro para pagá-la. Praças e jardins também entraram na condição de lugares inacessíveis. Só se utiliza aqueles internos. Raios ultravioletas e o excesso de pessoas exigem programações rígidas para a visita a esses lugares. Felizmente o conceito desenvolvido para os "shopping centers" mostrou ser a solução para nossas cidades atuais. O ambiente externo é de uso restrito e perigoso.

- O mais impressionante é o formato das cidades. Prédios gigantescos e interligados de inúmeras maneiras são o padrão médio das grandes concentrações urbanas, principalmente nos países com pouca incidência de terremotos. Em volta delas e de cidades de menor porte,  centrais de energia, estações de tratamento de lixo e água e barreiras diversas controlam pessoas e seus produtos e consumos.

Mas a ciência evolui dando-nos alternativas.

Pondero que:
- A engenharia genética é usada de muitas formas. A produção de alimentos é seu grande alvo. A produtividade cresceu enormemente. A dificuldade é manter o consumo em níveis compatíveis com a produção sem maiores destruições ambientais, ecológicas. Talvez possamos encontrar soluções para outros problemas sem a simples fuga. A redução do tamanho dos seres humanos é nossa maior esperança...
Em órbita da Terra diversas estações satélites mantém milhares de pessoas em pesquisas permanentes. Lua e Marte contém estações de solo. Estas, maiores, têm pessoas há muitos anos, principalmente em Marte, cuja gravidade evita os danos da baixa atração exercida pelo Lua. A favor de Marte existe a utilização de água e transformação gradativa desta substância em oxigênio, vital à vida humana, e hidrogênio, combustível extremamente importante às atividades marcianas, quando se recompõe com o oxigênio em atividades essenciais, produz água. Nesse planeta a agricultura começa a tomar forma. Acredita-se que em futuro não muito próximo Marte terá atmosfera aproveitável por seres vivos e grandes plantações. A recomposição de sua atmosfera é uma questão de tempo, muito tempo mas importante para nosso povo. O sistema solar é um ambiente conhecido e dominado. E de fora da Terra muitas mega empresas desenvolvem seus projetos mais secretos. O dinheiro, o poder de troca de trabalho e inteligência, é voto, vontade e matéria desse universo, com pouquíssimas exceções.

- Falando em dinheiro, vocês têm percebido o crescimento do WIB?  Prometendo felicidades eternas o Banco faz a festa dos seus acionistas. A impressão que eu tenho é de que o WIB está indo longe demais. Há questões éticas que eles nunca respeitaram mas estão abusando, ultrapassando todos os limites. O que será que seus acionistas pretendem?

- O WIB é um instrumento poderosíssimo de alívio de tensões em nossa sociedade medrosa, tímida. As facilidades, as promessas de viver sem maiores preocupações são o grande desejo de uma população a cada dia mais medrosa e passiva. Seus corpos e mentes não servem para nada.

- Quanta loucura! Mais e mais vamos nos transformando em peças de máquinas gigantescas. A vida e a morte confundem-se nas telas dos computadores.

- Fazer o quê? A superpopulação e o esgotamento ambiental impuseram restrições inimagináveis há alguns séculos. A tecnologia procura, cria situações que ajudam a imobilização das pessoas. Principalmente as nações mais desenvolvidas vivem imersas em uma gama variada de sistemas de compensação. E o período glacial em que a Terra está mergulhada agrava esta situação. Para o controle da população, começamos pelo disciplinamento da copulação. Drogas de toda espécie inibem o desejo sexual ou a fertilidade dos casais. A vida média aumenta sem parar. Obviamente o aumento da idade média dos seres humanos é um fator agravante. Mais gente, maior a necessidade de alimentos, energia, espaços. Felizmente as mulheres engravidam mais tarde e têm menos filhos.
Todas as disciplinas técnicas e culturais não existem ou simplesmente oferecem menos eficácia nos países menos desenvolvidos. O dilema é a opção entre o mundo monitorado, controlado, disciplinado e dentro de limites razoáveis contra o mundo livre e desregrado, caminhando para pesadelos monumentais porquê as pessoas não se contém em limites razoáveis. Mas, o que seria razoável atualmente?
O frio intenso, além de reduzir áreas antes ocupadas, mesmo criando outras com o abaixamento do nível dos oceanos, reduz a produtividade das plantações. As maiores temperaturas estão longe, muito abaixo daquelas que há alguns séculos mantinham florestas tropicais tão ricas em espécies vivas.
A produção de muitos alimentos agora depende de estufas imensas. Nelas o consumo de energia é grande. E a energia é um problema onipresente, até na purificação do ar, em alguns lugares extremamente poluído. A grande fonte é o Sol. Por processos de transformação direta, obtém-se eletricidade que, entretanto, precisa ser transportada. E o transporte para as regiões de menor insolação, justamente as mais desenvolvidas, é um pesadelo nessa época em que a superfície da Terra se transforma diariamente pelo avanço das geleiras. E outros fenômenos têm gerado mudanças razoáveis tais como terremotos, furacões, maremotos e outros acidentes típicos de um planeta em mudança permanente de roupa. A sensação é que nossa terrinha está com pressa, quer trocar de roupa com muita rapidez.

Conversar com esses dois amigos sempre foi algo especial. Longe das trivialidades irritantes da maioria das pessoas, tem graça mostrar o que se sabe, o que se pretende, idéias e sonhos.
Não tenho paciência para ouvir a repetição infinita  de temas egoístas, primários.
Eles têm vida e propostas. Assim a conversa avança.

Não resisti, a bebida solta a língua, minhas palavras procuram a filosofia, as razões da vida,  entre outras divagações próprias do indivíduo alcoolizado:

- Ser ou ser. Eis o desafio de quem pretende existir. A vida se confunde com a existência sob normas, padrões. Até na revolta existem formas estereotipadas. O Mundo acontece em padrões, disciplinas, caminhos pré - estabelecidos. Não quero nenhum deles, apenas pretendo existir. E em pleno terceiro milênio cobram-se comportamentos antigos. Sou homem. Não posso chorar. Sou uma máquina. Preciso vencer. As competições prosseguem. As formas são tão antigas quanto a própria história da Humanidade. O que existe afinal? A disputa pelas fêmeas? O espaço vital? A maior parte dos seres vivos simplesmente caiu em circuitos rígidos, ao sabor dos poderosos. E quando o ser humano foi diferente? Ainda não tiveram a coragem de escrever, falar, gritar sobre as verdadeiras motivações de quem vive. O medo, o desejo de segurança e a luta pela sobrevivência nivelam a todos. Os idiotas porque simplesmente não enxergam, os inteligentes porque têm medo de ver...

Alfredo não resiste:
- Quem diria, meu amigo cientista falando politicamente.
Parece-me que você pretende dizer algo mais. Desde quando você se preocupa com essas coisas mais abstratas?

Pedro Luiz, um terceiro amigo aproxima-se. Senta-se à nossa mesa, ouve-nos com atenção e acaba colocando suas opiniões políticas. Especialista em história, comunicação e sociologia, tem muito a dizer:
- A democracia nos Estados Unidos das Américas deu lugar a um regime de governo ideologicamente permanente, coerente, imutável. Quando antes da união dos países americanos havia uma multiplicidade de cores e ideologias em gestação, agora de norte a sul pratica-se a mesma forma de governo e instituições. Sob o manto filosófico da liberdade e democracia, vive-se um ambiente de pura dominação das classes mais ricas. A democracia americana ganhou características extremamente eficazes de dominação das elites sobre a nação. Os povos desses três continentes vivem sob controles elaborados. Não percebem o quanto são dominados por suas famílias mais ricas.
Sempre é bom lembrar, contudo, que a Humanidade é uma espécie animal que tem por características deixar-se comandar por um animal, algum tipo de macho dominante. O ser humano detesta responsabilidades. Foge a qualquer risco maior. O líder é escolhido entre aqueles que darão maior segurança ao rebanho. E entre os seres humanos comuns prevalece a eugenia, a procriação em condições favorecidas pela aceitação das regras da tribo. O resto é eliminado ou se transforma em nova elite dominante. O que vale para borboletas, plantas e cavalos vale para o homem, ou seja, a restrição ou estímulo a certos tipos de reprodução inibirão ou multiplicarão espécies definidas pelo poder. E os governos atuais sabem muito bem disso. Querem manter-se no comando sobre povos submissos.

- Não está sendo radical ? comparar pessoas a animais comuns?

- Alguma dúvida a respeito? Se vocês observarem os países onde a escravidão durou mais tempo verão nações fatalistas, submissas, indolentes. Elas são o resultado de séculos de seleção negativa para reprodução. Seus melhores líderes foram eliminados, impedidos de se reproduzir. Que tipo de gente você esperaria encontrar?
Vejam também a tecnologia, é a grande arma a serviço dos poderosos contra o cidadão comum. Os controladores dos sistemas eletrônicos de influência operam para que o povo seja convencido a aceitar determinadas lideranças.
A propósito, já ouviram falar dos sistemas SEI? São altamente eficazes.

- SEI? Existem realmente?

- O que são exatamente não posso dizer, até porquê não tenho contato direto com esta tecnologia, mas tudo indica que estão operando algo com esta sigla.  E somando-se a essa ferramenta de poder imensurável existe a eterna mídia, compondo uma estrutura de condução imbatível da opinião pública. Notem que as constituições de muitos países além dos Estados Unidos das Américas, dentro da esfera de interesses das grandes empresas, foram modificadas para, entre outras coisas, evitar eleições. Os cargos tornaram-se praticamente vitalícios. E como dificilmente as pessoas poderosas morrem, as eleições, autênticas farsas, rareiam-se.

- E quando as eleições não foram uma pantomima para o exercício do poder das elites? Nos países que tiveram revoluções simplesmente outros pequenos grupos assumiram e ocuparam o lugar dos anteriores. A verdade é que a grande maioria da população não quer responsabilidades, adora a submissão. Prefere o chicote ao comando. Freud talvez explicasse. É puro sadomasoquismo.

- O grande paradoxo da Humanidade foi desenvolver-se cientificamente para ter condições de sobrevivência, conforto, lazer e perder a liberdade mais íntima. Os inúmeros sistemas de monitoramento e influência escravizaram os povos mais desenvolvidos. A liberdade mental agora só existe em ilhas e florestas distantes.

- Os efeitos dos diversos sistemas de influência, dos tradicionais aos mais secretos e modernos, existentes nos locais mais importantes, principalmente, certamente  de acordo com a estratégia de consórcios de empresas que os desenvolvem, são tão eficazes que em alguns países muitas leis foram mudadas, dando explicitamente aos representantes dessas companhias poderes ilimitados.

- É muito grave  o que você está dizendo. Será que realmente estamos nesta condição? E a Justiça não faz nada?

- A Justiça, mais do que nunca, é instrumento da classe dominante. Juizes escolhidos criteriosamente defendem leis, que foram feitas para garantir a permanência no Poder legal e material daqueles que lá estão. Sob um manto de legalidade, vive-se uma civilização inerme, morta.
Simplesmente, da época dos imperadores e presidentes ditadores que governavam por decretos, chegou-se ao império desses consórcios, sutis, discretos, tecnológicos e absolutamente eficazes.
Multinacionais, ocultos, gradativamente ajustam as leis e comportamentos a seus interesses. Felizmente não atingiram com plena potência muitos lugares da Terra. São, contudo, capazes de governar povos considerados desenvolvidos.
A Humanidade não conseguiu desenvolver uma relação de poderes que garantisse uma existência realmente livre e consciente. Sempre dirigida, submeteu-se a forças que a lideram ao preço do estabelecimento de padrões de vida alienados.
Os políticos são os melhores executivos das grandes companhias. Escolhidos entre os gerentes mais fiéis, passam por um processo de popularização maciço. As eleições, quando acontecem, têm nos países mais desenvolvidos e sob o controle dessas empresas, candidatos que simulam disputas. Eleitos, seguem lealmente e sob inúmeros controles as ordens das associações patronais. Não é uma novidade desta época. A diferença é a eficácia atingida.
Os grandes líderes, eternizados por processos de reeleição e pragmaticamente com prazos crescentes de permanência no poder, lá acabam ficando sem maiores questionamentos. Como sempre, foram o resultado de armações dos mais ricos. Agora, mais do que nunca, e pelo que diz meu amigo e tudo parece indicar existir, com  equipamentos eletrônicos de influência direta, só são substituídos por efeito da disputa de poder entre as grandes empresas.

- E dentro das empresas? Não há disputas?

- Os grandes gerentes e futuros políticos são o resultado de inúmeras seleções e cursos. À medida que sobem na hierarquia ganham treinamentos severos onde, o principal, é o espírito de lealdade aos maiores acionistas. Muitos séculos de aprimoramento nas técnicas de formação “profissional” agora selecionam, produzem e desenvolvem autênticos bonecos, sem qualquer vontade pessoal. Dedicados inteiramente e fanaticamente a suas empresas, criaram espaços ajustados a seus interesses, ou melhor, a de seus patrões.
Desenvolvidos durante muitos séculos, os programas de formação de executivos geraram sacerdotes de uma religião que se impôs às demais. Os maiores gerentes são perfeitos autômatos. Falam, riem, bebem, procriam e trabalham dentro da cartilha de suas companhias. As ideologias foram substituídas pelos regulamentos e planos de carreira. Aliás, em muitas empresas os robôs começam a tomar o espaço dos humanos. Para que arriscar?

- Há coisas que não entram na minha cabeça. Certas atividades, processos e comportamentos deixariam qualquer cidadão do século vinte assustado ou indignado. Empresas exploram atividades altamente discutíveis do ponto de vista ético.

- A coisa não deve ser tão ruim. O World Intelligence Bank (WIB) destaca-se até pela grandeza de seus depósitos. Além da tecnologia de comunicação, dispõe de estoques vitais, estratégicos. Seus acionistas ganham uma fortuna e exercem poderes inimagináveis. Por sua vez, os candidatos habilitados a usar o WIB sentem-se eternos, sobre humanos.

- O povo vive em um mundo de ilusões. Na impossibilidade de existir em um planeta Terra com espaços, florestas, campos, mares e ares livres e naturais, sobrevive dentro de fantasias, imagens artificiais e todo tipo de distração eletrônica.
Tudo é pintado, formatado, construído para gerar fantasias. No jogo das ilusões o verde, o azul, o amarelo, cada cor tem seu significado e resultado esperado. Nada é fortuito. Nas paredes de edifícios e muros, painéis com todo tipo de imagens dão a ilusão de riquezas e sentimentos de viver-se em um Mundo com florestas, animais e plantas, a maioria já extintos. A ecologia é simples produto da imaginação.
As lideranças formais aparecem com cuidados especiais. São perfeitas, belas, queridas e tudo o que interessar às elites dominantes e agradar ao povo. Representantes fiéis dos grandes conselhos das maiores empresas, lá estão porque cumprem à perfeição os interesses desses grupos. As grandes cidades, em museus e memoriais riquíssimos, mostram imagens daqueles que defenderam à perfeição os interesses das elites. Apresentados como heróis, geram paradigmas que o povo “precisa” respeitar e procurar imitar.

- E o povo, sempre  massa de manobra, tem no comando pessoas que lhe fazem justiça. E povo não é o coletivo de gente? E não é desse rebanho que saem os líderes? Os machos alfa?

- Os seres humanos desperdiçaram infinitas oportunidades de transformar positivamente seus ambientes. A evolução tecnológica rápida foi mais veloz que suas capacidades de aprimoramento cultural e comportamental. O ser humano comum resiste à idéia de pensar. Seu estado natural ainda é o dos tempos imemoriais, das florestas, da simples caça e pesca e rústicos amores.

- Desta maneira vive-se um Mundo de altíssima tecnologia, cultura inútil e lugar de processos de dominação sutis e extremamente eficazes.

- Um Mundo virtual sem virtudes.

- Estamos muito pessimistas mas, onde melhoramos? Doenças terríveis deixaram de existir. Em muitos lugares deste planeta já é possível uma existência com liberdades que não sonhávamos há alguns séculos. O sexo é algo natural, sem os traumas de antigamente. A segurança nos países mais desenvolvidos é razoável. Temos problemas com as nações mais atrasadas mas elas simplesmente vivem o que desejam.
A expectativa de vida aumentou muito nos países mais ricos. Neles  morre-se por efeito de acidentes ou vontade própria. Há sempre uma forma de prolongar a vida. A tecnologia já permite a preservação da vida de formas não convencionais, oferecendo prolongamentos fantásticos.

- Que vida? Você chama aquilo de vida? Você entende que vale a pena existir, nos casos extremos, simplesmente pensando?

- Sim, afinal o que importa? Em que parte do corpo humano está a essência da vida?

Assim fui desafiando o espírito crítico de meus amigos. Queria ver como defenderiam suas posições.

Falamos alto, bebemos muito, descuidamo-nos, saímos felizes e entorpecidos daquele encontro.



5.            Reunião de emergência no AO


Em ambiente de emergência os diretores do AO discutem os acontecimentos recentes. Assustados, esses velhos profissionais mostram sinais de pavor apesar de tanta inteligência. Talvez por isso mesmo estejam tão preocupados. Sabem que podem ter dado início a um processo catastrófico.

- Tivemos um acidente grave, senhores. Não acreditávamos que algo dessa espécie pudesse acontecer. Afinal estamos aqui, neste trabalho, graças a uma série meticulosa de testes e afinidades. É difícil explicar. Wolfgang, por favor, apresente a todos nós o que houve.

- Um erro de avaliação. De alguma forma o vírus escapou. Não entendo pois as medidas de segurança eram de altíssimo nível mas algo de errado aconteceu.
Arthur, um dos cientistas que trabalhavam no projeto, morreu e parece que contaminou outras pessoas externas ao AO. Parece até suicídio. Ele não nos informou de qualquer sintoma, simplesmente passeou pela cidade, recolheu-se a seu alojamento e morreu. Se foi assim o canalha deu início a uma catástrofe imprevisível. Não tivemos tempo para desenvolver qualquer vacina ou medicação eficaz. Os estudos só começavam. O pior é que seus companheiros retornaram ao laboratório, não sabemos quando houve o contágio e quem será a próxima vítima. Eles já estão apresentando febre e se encontram em isolamento total.
Na cidade o que poderá acontecer?

- Infelizmente o povo desta região corre o risco de desaparecer do mapa. Não há o que fazer se a doença escapar ao nosso controle, fora de nossas instalações. O risco existe, afinal Arthur esteve fora pouco antes de morrer. Ele tinha um relacionamento íntimo com algumas pessoas da região. De qualquer forma já informei nossos superiores. As ordens não são tranqüilizadoras, moralmente falando.
Falei com o Presidente do Conselho de Acionistas. Ele exige silêncio. A companhia não teria como indenizar, muito menos explicar o que fazíamos aqui. A partir de hoje ficaremos dentro de nossas instalações. Seções isoladas entre si tanto quanto possível.
Precisamos acelerar análises do comportamento do vírus que desenvolvemos. Agora poderemos ser as próximas vítimas dessa peste provável.
Enviei todos os dados para nossa central nos EUA. O problema é que não querem desenvolver o vírus na sede pois agora o demônio apenas mostrou os chifres, seria extremamente perigoso qualquer iniciativa sem maiores informações. Precisamos trabalhar muito e rapidamente para tentar alguma solução antes que a doença fuja de controle. De qualquer modo logo descobrirão sinais da doença se ela já tiver contaminado pessoas externas ao AO. A partir daí autoridades regulares iniciarão trabalhos para combate à provável epidemia que surgirá nesse país. Tomara que não associem a doença ao AO.
Teremos a possibilidade de acompanhar ao vivo e a cores o resultado de nosso trabalho. Se não encontrarmos uma solução, estaremos entre as vítimas e ninguém jamais saberá de nosso "sucesso"...




6.           Pensando


Vida estranha. Tenho tudo o que um homem solteiro e mais velho poderia desejar. Liberdade para conduzir meu trabalho, a oportunidade de conhecer todas as civilizações, de viajar para onde quiser, e isto é um grande privilégio em nossa época.
Cansei de muitas coisas, contudo. Há dias em que a tristeza domina. Nesses momentos em que me sinto de mal com a vida, pesa-me a melancolia de uma juventude mal vivida. Minhas limitações eram grandes, se comparadas àquelas cobradas de meus amigos. Entre eles ficava parecendo retardado mental. Eles se destacavam em tudo que a época exigia, eu restava parado em algum canto pensando, tentando entender.
Por ironia ou conveniência dos mais poderosos talvez tenha conquistado os cargos que ocupei por ser considerado idiota, meio inteligente e muito ingênuo. Esperavam poder me  controlar.
Sei que sou um simples retardado mental, nos parâmetros dos gênios à minha volta. Vivo cercado de pessoas extremamente inteligentes, capazes das lógicas mais sofisticadas e aproveitando recursos de memória incríveis. Por Natureza e pelo efeito de muita química, são autênticos computadores ambulantes. A verdade é que nem a ciência foi suficiente para me colocar ao nível mental desses companheiros.
Por exemplo, não tenho grande memória. Que desastre quando encontro alguém muito querido. Falo, converso, troco idéias e não consigo me lembrar de seu nome. Estudei muito, vi muitas coisas, não me lembro da maior parte delas. Vivo em conflito comigo mesmo. Tenho medo de encontrar um amigo e cometer uma gafe, a pior delas, não me lembrar do nome do amigo apesar de saber muita coisa a respeito dele. Digo para mim mesmo que o nome não diz nada. O nome não é um compromisso com o que sabemos ter diante de nós. Existem códigos. Arquivos imensos classificam as pessoas. Não posso, entretanto, chamá-los pelo código. Pânico, caso de análise.
Vivi limitações mentais. Aprendi a admirar aqueles que julgava serem inteligentes. Quanto a vida me ensinou...
É interessante notar a reação das pessoas. De que adianta terem altos QIs se não souberem reagir de forma adequada diante de situações difíceis? Inúmeras vezes tive ao lado gente respeitada, festejada como autênticas sumidades. E perplexo vi que elas não reagiam de forma adequada. Simplesmente desperdiçavam oportunidades, paravam diante de coisas simples. A confusão mental dos gênios leva-os à mediocridade. Gênios desconhecidos, dos quais a Humanidade possui em número infinitamente superior àqueles que conquistaram o respeito de todos nós, morrem desconhecidos porquê lhes falta algo que desafio nossos amigos a dizerem. A verdade pura e simples é que algo distingue os seres humanos. Talvez os ocultos no manto da omissão estejam certos, afinal eles usufruem da luta daqueles que expõem, que se arriscam às humilhações da crítica.
Minha outra vida, já adulto, desenvolvendo alguns projetos científicos naquela distante cidade do Paraná, Brasil, mostrou-me muita coisa. Seria a experiência de Curitiba que me permitiu existir agora? Vivi algumas lutas contra deuses daquela época, deuses em meu espaço reduzido pela mediocridade de todos. Naquele ambiente vivi o peso de divindades de barro, gente que eu sabia serem moralmente insignificantes mas que estavam no lugar certo, na hora certa, saboreando sucessos que não eram deles. A vida é cheia de paradoxos, de uma série infinita de ironias. O Grande Arquiteto do Universo tem suas lógicas.
Minhas limitações estimularam outros recursos mentais. Hoje sou um ser acima da média. A visão holística cresceu, minha auto confiança mais ainda, apesar das limitações que às vezes parecem tão grandes.
De qualquer forma ganhei algo. Os grandes chefes não querem sombra. Sabem que, se os seus subordinados forem menos inteligentes do que eles, estarão mais seguros. Esqueceram-se, contudo, que o idiota aqui tinha capacidade de desenvolver algoritmos, que podia deduzir, comparar, analisar e gerar opiniões ainda que suas conclusões logo se perdessem na bruma do tempo. Mas o palerma sabia e sabe escrever, registra e vê com surpresa o que pensou ontem. Assim avancei, descobri detalhes que escaparam aos melhores. Trabalhei com muita  disciplina. Compensei minhas deficiências acrescentando horas de esforço diário. Tirei proveito das minhas limitações.
Voltando às considerações existenciais: na média de intermináveis momentos percebi que não sou feliz. Afastei-me de pessoas que amava para conduzir meu trabalho. Deixei-me dominar por propósitos filosóficos, políticos, preocupações muito distantes daquelas que teriam me dado uma família, filhos e amigos. Até os idiotas amam. E sabem, talvez melhor do que ninguém, como o amor é importante. É preciso muito amor para aceitar um deficiente mental. Eu tinha, tenho uma tara. A ciência é minha tara. Quero aprender. Procuro entender a Natureza. A falta de certos padrões de inteligência é meu grande desafio. Olho, contudo, o Universo sem telescópios. Vejo-o simplesmente. E minha vista tem assim um ângulo enorme. Vejo as estrelas juntas. Sei que elas existem. As constelações estão lá. Posições relativas mas tão magníficas que mostram a imensidão do Universo. Só os bobos conseguem ver constelações tão grandes. Os muitos inteligentes vêem estrelas, pedaços de estrelas, eu vejo constelações. Assim, sem saber quanto eu via, meus chefes me nomearam para diversos cargos. E eu cresci dentro da organização. Conquistei espaços. Talvez pela inconsciência do perigo, avancei quando meus colegas pararam. Se algo protege alguém, quem me protege deve estar cansado. Meu anjinho certamente está com as penas tortas, auréola quebrada. É um vitorioso. Defendeu-me, deixou-me ser alguém. Assim, em nome dos idiotas tenho um compromisso com a vida.
Muitos companheiros são pessoas queridas. Algumas amigas até um pouco mais. De qualquer forma talvez a vida seja assim mesmo. Após algum tempo vem a cobrança do que não fizemos. A frustração aparece até para aqueles que realizaram muito. Profissionalmente sei que fui bem sucedido, fui muito além do que poderia imaginar. E daí? Sempre falta algo.
A religião é um conforto para muitos, infelizmente não consigo ter nenhuma. Acreditar em algo  para mim é assunto sério. Posso enganar muita gente, nunca conseguirei, entretanto, mentir para mim mesmo. Sei que tenho dúvidas imensas sobre tudo o que vejo e ouço. Com todo o progresso da Ciência há lacunas gigantescas, que não possuem explicações convincentes.  Para as pessoas mais simples basta dizer que a vontade de Deus determina isto ou aquilo, eu, contudo, não me satisfaço com uma afirmação tão trivial. Prefiro simplesmente dizer que não sei, não entendo.
Não gosto do Mundo em que mergulhamos. Disto tenho certeza. O excesso de  população agride-me. Para todo lado vejo gente, máquinas e paredes. Terminamos escravos de nossos excessos em um planeta crescentemente hostil. Não soubemos, no passado, evitar muitas situações, que agora assustam e são potencialmente perigosas.

A Ciência é nossa aliada. Com a tecnologia criamos sistemas extremamente complexos e produtivos. Mas a complexidade e dependência de inúmeros aparelhos, materiais e inteligências estão construindo um castelo de cartas. Tudo poderá desmoronar-se e o estrago será grande. E agravando esta situação, as facilidades da tecnologia contribuem para a desatenção dos principais riscos que a Humanidade está correndo. Oferecem inúmeros divertimentos, jogos e programas de toda espécie. Quando dão notícias, as ênfases caem naqueles temas menos sérios. Os maiores problemas, os grandes perigos à sobrevivência da Humanidade são do conhecimento de todos mas o excesso de informação sem um tratamento qualitativo conduz a população ao alheamento, à insensibilidade. Pior ainda, a Ciência da Informação transformou-se em arma de dominação extremamente poderosa. Tenho dúvidas se a liberdade ainda exista conforme nossos antepassados queriam, lutaram, sonharam. No paradoxo do progresso, regredimos talvez à condição de escravos de sistemas que nos atingem de diversas formas. Que tipo de Humanidade existe? E no futuro, seremos partes de uma máquina, simplesmente?
A ciência e a tecnologia, produtos principalmente da capacidade de memorização e processamento artificiais, frutos da engenhosidade humana, tornaram-se um edifício em que não sabemos viver. Nossa inteligência agora é pequena para tanta informação. Seu desenvolvimento prossegue, nosso cérebro é uma máquina maravilhosa, precisa, contudo, ser estimulado de forma adequada. Isto não está acontecendo. Tudo contribui para um processo letárgico de condicionamento de mentes e corpos humanos que estranhamente está tirando a graça da vida.

Precisamos fazer algo para evitar um desastre.
E me sinto triste, só.

Divido-me em meus pensamentos. Estaria disposto a lutar realmente? Meus companheiros têm me cobrado decisões mais enérgicas. Discutimos muito. Organizamo-nos. E quando sairemos das palavras? É isto que eu realmente quero? E se estivermos errados?

E além das preocupações políticas tenho questões pessoais.
Os seres humanos comuns não percebem que as diferenças entre os indivíduos são muito menores do que imaginam. Por maior que seja o homem ele sempre terá suas necessidades básicas como qualquer outro. E as afetivas também. Sente-se falta do aconchego de um lar, do riso de uma criança, do amor de uma esposa. E estamos em um mundo onde isto se torna impossível. Os filhos são um problema social. A população precisa diminuir e não aumentar. Alternativas ao casamento são propostas pelo próprio Governo. Como conciliar essas questões?
A inteligência é um peso. A consciência das responsabilidades pessoais tiraniza aqueles que a possuem. A visão ética e altruísta é extremamente difícil. No deserto moral em que vivemos, percebe-se a necessidade de atuar sem cooperação. Compreendendo-se a gravidade de certas situações e sentindo-se a omissão covarde e egoísta da maioria, parte-se para lutas difíceis, normalmente desprezadas pelo rebanho que, ao final das contas, é o que se pretende defender.
Vejo-me no eterno dilema de optar entre aquilo que aprecio e o que devo fazer.
A política, arte tão denegrida pelos seus atores, agora transforma-se em subversão em nossos planos. Meus companheiros e eu não vemos outro caminho. As multidões agem hipnotizadas pelos meios de comunicação. Não percebem os erros de administradores e políticos. Grandes empresários só querem mais dinheiro. Não sei o que fazem com tanto dinheiro. E os políticos são instrumentos desses senhores. E eles sempre querem mais. Os psiquiatras talvez expliquem tal situação como uma compensação por algumas disfunções orgânicas ou psicológicas. E eles mandam, decidem sobre as vidas de nações inteiras... parece que quanto mais loucos melhores. O político em seu egocentrismo insano acaba sendo o instrumento perfeito dos grandes grupos econômicos, infinitamente mais fortes. A lógica é simples, quem paga manda. 
E os amores?
Que saudades de algumas amigas. Talvez com algumas delas agora meus sentimentos seriam completamente diferentes.

Ana tinha paixão, sabia amar... A bandida me abandonou antes que eu pudesse dizer-lhe que realmente a queria. Ela era alegre, bonita e sensual, e eu? A timidez atrapalhou um bocado.

Vivi muitos anos com Marina. No começo existia amor. Com o tempo eu, grosseiramente, a tinha pelo sexo e pouco mais. Ela queria carinho. Era uma diferença lógica mas difícil de sustentar. Eu a amava. Eu sentia amor. Ternura e afeto, cuidados, muitas vezes paixão. Inexperiente e cheio de preconceitos, incapaz de me ajustar a seus jeitos, expressava este sentimento de forma mecânica, sem os sinais que ela esperava, creio.
De que jeito a amava? Talvez de uma forma sadomasoquista quisesse sofrer, sentir culpa por rompê-la, mergulhar em um sexo de onde saíra. Com o tempo a rotina fez do amor de Marina ato que ela expressava com repugnância. O beijo era um sacrifício, a boca semi cerrada que ela só abria a custo de muito pedido dizia com clareza que ela não me suportava. Não bastasse isto os olhos fechavam, só abrindo quando ela percebia que eu gozara, que não precisaria mais fingir. Que saudades, entretanto, dos primeiros tempos quando alternávamos amor sexual, forte, selvagem, com horas de ternura. Havia até violência. Afinal é impossível duas pessoas medianamente inteligentes concordarem em tudo. As diferenças de opinião eram uma rotina mas sentíamos amor. O trabalho, os desafios da vida nos separaram; felizmente não tivemos filhos. A liberdade se impôs, em prejuízo da convivência e do amor.

Agora, solitário, tenho certeza de que a desejo, seria ótimo tê-la ao meu lado. Marina, Júlia, Tereza, Ana e outros nomes sempre voltam à memória. Algumas já não são jovens. Quase todas encontraram um caminho próprio. Estão longe...
Afinal o que é o amor?
A paixão, parte fascinante desse sentimento, dizem que dura pouco, que não suporta o tempo. A atração sexual, componente essencial  na formação de pares apaixonados, confunde e dá uma forma mecânica ao amor. A mútua admiração expande as possibilidades de amor. Permite-nos transcender o sexo. A dependência também gera amores, muito comum entre áulicos e líderes. O grande amor, contudo, existe entre casais apaixonados.
O amor é uma armadilha da Natureza. Apaixonamo-nos. Queremos alguém. Os compromissos e os efeitos naturais soldam uniões nem sempre duradouras mas extremamente agradáveis enquanto sustentam sentimentos poéticos.
E depois de algum tempo? O que resiste à rotina quando ela se impõe?
Conheci muitas mulheres. Sei que por algumas delas o tempo de saturação seria grande. Talvez na dimensão de meses. Anos? E a eternidade é a promessa dos jovens casais. Desconhecem os efeitos do tempo. Sei entretanto que gostava delas, que teria imenso prazer em sumir entre seus carinhos.

A solidão é terrível. A intimidade com uma companheira é a oportunidade de fugir a muitas pressões. No mínimo tem-se com quem conversar, trocar idéias e carinhos. E brigas também. Um casal vive um espaço de amores e lutas em que um pode valorizar o outro, ou destruir. De qualquer forma hoje acredito, tenho convicção de que não nascemos para viver sozinhos.

Estranho, sobre o relacionamento de um casal escreveu-se montanhas de livros. Até remédios, drogas de toda espécie foram desenvolvidas. Há algo de sutil, contudo, que faz falta. Esse algo mais só a experiência mostra existir. Muitos descobrem tarde demais; espero ainda ter tempo para encontrar alguém para uma relação estável, afetuosa e acima de tudo, com amor.
Mas em que mundo estamos?
Máquinas, fios, antenas e diversões estranhas, compromissos e vidas programadas, ambientes monitorados, planos para todo lado. O Mundo esgota-se e a Humanidade perde-se entre paredes.



7.           Uma cobrança


Recebo a visita de um grupo estranho. Munido com todo tipo de equipamento de registro de informações inicia um grande interrogatório. Quer saber o que estou fazendo, o que penso, o que pretendo.
Eles sabem o que faço melhor do que eu. Têm sistemas de monitoramento eficazes e não precisam de qualquer tipo de informante exceto ler relatórios, que máquinas muito bem instaladas produzem quando acionadas.
O que realmente não conseguem, ainda, é ler pensamentos. E estou subordinado à ONU. Meu governo é o Mundo. Não é fácil me atingirem. Meu trabalho tem agradado a muita gente poderosa, até pelo prazer de fazer comparações. Admiram-se das maravilhas que produzimos, dos efeitos sobre seus liderados, dos lucros que sempre recolhem ao final. Afinal, um gênio não seria um burro especialmente capaz de andar em determinada direção?
Mas não posso desprezar o poder de seus chefes, daqueles que mandam na ONU. Quando quiserem saberão agir para me destruir. Não será fácil, impossível nunca.
E após apresentações formais e algum palavreado idiota, o chefe do bando começa:

- Meu amigo, que conversa foi aquela com aqueles ecologistas malucos? Por quê vocês se encontraram naquela praia? Era um dia bonito, seus amigos certamente estavam apenas passeando. Apreciaria saber, contudo, as razões do encontro. O senhor sabe que Alfredo e Gilberto estão sob supervisão especial do nosso Governo?

Tremo ao ouvir o que este indivíduo asqueroso fala. Mais uma vez sinto a falta de liberdade, o patrulhamento ideológico, a censura. E estamos no país da liberdade!

- Não havia a mínima intenção de qualquer ato ilícito. Apenas conversamos sobre amenidades. Família, prazeres, esportes etc.

- Desculpe-me doutor. Não é o que registramos. Vocês conversaram sobre o abandono de nossa sociedade, a vida em ilhas distantes. Afinal o que lhes incomoda?

Percebo que estávamos muito mais vigiados do que imaginava. Ingenuidade burra, a minha. A distância não é mais obstáculo para a escuta de conversas. Também desconhecia esta característica de meus amigos, ou seja, a de que incomodam o poder estabelecido. Procuro desculpá-los.

- Conheço-os há muito tempo. Sei que são pessoas pacíficas. Cientistas, tornam-se diferentes até pela profundidade de suas análises. Inteligentes, trabalhadores e estudiosos, querem simplesmente viver em lugares onde possam evoluir em seus trabalhos. Optaram por viver isoladamente, o que é bom para seu Governo.

Meu inquiridor responde alertando-me sobre os riscos de responder falsamente. Lembra-me as últimas leis aprovadas e as mudanças na Constituição dos Estados Unidos das Américas, aumentando os poderes do Governo Central. Essa famosa Constituição tornou-se um documento mutante, ajustável às conveniências de alguns indivíduos que não aparecem mas são suficientemente poderosos para dominar todos os instrumentos de poder.

Eu insisto:
- Sou gerente de um projeto da ONU. Enquanto nesta situação tenho imunidades diplomáticas. Recuso-me a responder a um inquérito de um Governo ao qual não estou submetido.

- Não é um inquérito. Estamos apenas cuidando para que nosso país não seja destruído por um grupelho de subversivos. Apesar de isolados e distantes das Américas, quando nos visitam trazem idéias e propostas perigosas. Tentamos inibi-los mas eles têm esquemas de proteção eficazes.

- Inibi-los como?

- Somos a nação mais poderosa do Mundo, nosso Governo sabe agir. Já desmontamos muitos países que pretendiam competir conosco, não seria um grupo de indivíduos que iria pôr em risco a nossa segurança. Não devemos expor nosso povo a bandidos que simplesmente não enxergam a importância da nação americana e sua maneira de ser.

- Pelo que sei o grande risco que as Américas teriam com eles seria perdê-los para o oceano. Não são mais ativistas que qualquer cidadão lúcido e sincero deste país.

Meu interlocutor, amarrando a cara:
- Seria importante uma visita sua a nossos escritórios. Lá eu poderia lhe mostrar um pouco do que temos registrado desses seus amigos...

- A ONU sustenta programas de pesquisa do comportamento humano. Através de meu trabalho sei da diversidade ideológica, comportamental, cultural, das muitas tendências de nossas sociedades. A multiplicidade de padrões gera um belo mosaico cultural. A tolerância a esses modelos é importante. Em todos eles nunca vi nada que pudesse pôr em risco os Estados Unidos das Américas. É um país colossal, riquíssimo, super organizado e controlado. Não seria meia dúzia de filósofos que destruiria esse colosso.

- Cumpro ordens, é meu trabalho. O que devo fazer é verificar suas opiniões a respeito e registrá-las. Elas serão analisadas.

E nosso bate boca vai longe até que, entendendo que não lhe direi mais nada de substancial, meu interrogador decide despedir-se.

Meu “amigo”, antes de se retirar, muito polidamente lembra-me:
- Meu caro doutor, não se esqueça de que nosso governo também manda na ONU...






8.           Filosofando em grupo


O interrogatório deixou-me abalado.
Conversar com amigos mais próximos é uma forma de relaxar e repensar certas questões.

- Joel, a liberdade existe?

- Creio que avançamos de forma estranha. Ganhamos confortos, brinquedos e distrações. Até para transar não precisamos de mais ninguém. Nesse mundo de máquinas e químicas estamos cada vez mais automatizados, insensibilizados e enlatados. A companhia é mais uma questão de conforto, carinho e parceria do que a satisfação de um desejo sexual pois o sexo encontra mil formas diferentes de satisfação. Será justo e saudável?

Fátima intervém.
- Graças a isso, nos países mais desenvolvidos, a população está sob controle. Vocês, homens, são completamente dispensáveis. Sempre foram uma porcaria, agora podemos escolher com muito mais critério, se a necessidade for tão grande e justificar o sacrifício.

- E agora? O que faço com meu equipamento?

- Em muitos países a tradição é mais forte que o progresso. Vão para lá, bolas! E suas bolas também.

- É, nossas bolas estão ficando sem função.

- Pior ou melhor, não sei, é a vida alternativa. Terá sentido real sobreviver assim?

- Os banqueiros, empresários, profetas e pastores são convincentes. A mídia sustentada por eles promete uma eternidade de prazeres. A vida eterna, os primeiros na Terra, os últimos no além.

Fátima questiona.
- Para quê muitos insistem em viver muito? Não entendo porquê se sujeitam às condições propostas pelos banqueiros. Afinal o que as pessoas procuram? Não estariam protelando descobertas melhores e maiores? Somos uma civilização muita apegada a esta vida. Deve existir algo mais. É inacreditável vivermos tão pouco. Ou melhor, vivermos, pensarmos e estarmos limitados a isso.

Aproveito para colocar minhas fantasias filosóficas.
- O grande paradoxo da Natureza é colocar a imensidão do Universo contra a fantástica complexidade da vida. No infinitamente grande espaço temos a incrível complexidade de qualquer bactéria. Sua existência é mais incrível do que a soma de todas as pedras de nosso Universo. E até podemos pensar que tudo o que nossa vista alcança seja apenas uma molécula de um corpo em outro universo. Olhando pelos telescópios ficamos surpresos com fronteiras cada vez maiores de nossas galáxias. Com um microscópio, entretanto, podemos constatar a vida, a espetacular capacidade de reprodução e transformação de nossas células. Temos inteligência e capacidade de auto multiplicação. Nosso planeta cobre-se de gente, plantas e animais. Pensando já sentimos nossos excessos. Vemos, entretanto, o poder regulador da Natureza. Milagrosamente ela destrói e constrói. Ganhamos o prazer mental e físico. Aprendemos a simular o segundo estimulando o primeiro. Os banqueiros e seus cientistas que o digam.

Joel, pensativo, procura estimular um debate.
- Mas, que eternidade pretendemos? Não seremos parte de um circuito, de um ser maior?

Não resisto.
- Precisamos desta esperança. Não podemos acreditar que, apesar de toda a tecnologia, a vida se resuma a isto. Temos prazeres limitados pela nossa função biológica. Os mais inteligentes e sensíveis desenvolvem outras formas de satisfação. Com tudo isto, entretanto, percebemos um afundamento ético, uma perda  de substância. A vida tem um ciclo. A inteligência exige outros. Não existiria algo intrínseco à inteligência, algo que os mais simplistas denominam espírito?

Fátima gosta de minha abordagem.
- As mulheres são mais sensitivas. Elas por qualquer razão que toda a ciência desconhece, percebem melhor certas coisas que os homens têm dificuldades. Talvez nossa função biológica equipe-nos com recursos de sobrevivência superiores. Graças a isso sinto, isso mesmo, sinto que posso afirmar que existem espíritos, que há muita coisa que desconhecemos.

Gosto de associar idéias.
- Talvez muitos já possuam provas que desconhecemos. Talvez não interesse às elites transmitir certos conhecimentos. Quanto saberíamos do que existe acumulado nos melhores arquivos?

Joel intervém fugindo da filosofia, entrando na política e mudando de assunto.
- As classes dominantes conhecem bem os prazeres do poder. É uma forma de se chegar a orgasmos intelectuais. Quando te submeteram a interrogatório sentiram prazer, com certeza. Um grande cientista submetido a policiais, respondendo a questões pessoais, à pressão dos seus chefes. Com certeza eles acreditam na necessidade de controlar gente como tu és, além, é claro, do controle pelo prazer de mandar. 

- O problema maior é a necessidade de disciplina diante das dificuldades de sobrevivência pelas quais a Humanidade está passando. O crescimento das geleiras, o frio está diminuindo espaços e fontes de alimentos. E nos países mais atrasados o nível populacional cresce sem parar, apesar de todas as dificuldades. A promiscuidade, a miséria é algo assustador. E eles perdem tempo comigo?

- Vivemos uma situação paradoxal. Quem vive melhor? Lá eles passam fome e frio mas têm mais liberdade do que nós. Somos escravos de nossa cultura, mídia,  inteligência, tecnologia, ciência e instituições. O interrogatório foi apenas mais uma demonstração da dominação ideológica e comportamental a que chegamos.

Fátima:
- E das mulheres.

- Lógico, agora vocês podem nos manobrar com mais facilidade. Conquistaram espaços e aprenderam a dominar-se completamente. As frivolidades de alguns séculos atrás são coisa do passado. Perderam, também, muito do encanto que possuíam...
Há, entretanto, uma vantagem fantástica. A mulher atual não tem mais a antiga e terrível TPM. Como é bom conviver com mulheres sem crises periódicas.

- É, e os homens afrescalharam de vez. Creio que andam exagerando no controle hormonal da moçada.

- Falando sério, o controle da natalidade afetou com profundidade uma série de padrões. O mais atingido foi a própria família. Sem poder ter filhos com a liberdade de antigamente, sob o efeito de toda a mídia negativa e da própria realidade estamos deixando de sentir a necessidade do relacionamento duradouro, da sustentação de casamentos antes tão festejados. Nosso ambiente produz outros paradigmas, outros comportamentos e crenças que confundem completamente quem pretenda analisá-lo sob uma ótica antiga.

Joel provoca:
- Creio que podemos e devemos atuar para mudanças neste quadro. Afinal somos ou não inteligentes? Temos coragem para assumir alguma proposta mais enérgica?

Fátima:
- Joel, lá vem você outra vez com as suas idéias violentas. Precisamos entender a vida, não destruí-la.

- Ótimo, mas e as soluções?

- A verdade é que estamos virando bichos de proveta. Nascemos e vivemos dentro de paredes de vidro e aço, sob temperatura e atmosfera controladas, sem qualquer espaço natural razoável. Este problema é evidente, forte e onipresente nos países mais desenvolvidos. "Consumindo" tecnologia abundantemente, com pessoas não adaptadas ao ambiente natural, sempre protegidas, teremos um povo artificial, incapaz de voltar à Natureza. Nosso país, por exemplo, apesar de suas dimensões e riquezas, não nos oferece condições sensatas de sobrevivência. Excesso de gente, luxo para alguns, limitações enormes para outros, poluição e violência, uma série de coisas não combinam.

- Entender a vida é difícil, mais ainda à medida em que ela se prolonga de forma estéril, inútil.

- De qualquer forma as pessoas parecem felizes. Muitas apresentam um ar idiota apesar de serem capazes de grandes trabalhos. São cultas e tolas à medida que não transformam seus conhecimentos em algo razoável.

- Talvez exista outra explicação para tudo isso. A mídia é extremamente eficaz, o aprisionamento das pessoas em seus quartos por falta de alternativas espaciais deixa-as muito vulneráveis, sensíveis ao que os sistemas de comunicação aplicam. E não existiria algo mais?

Fátima
- Se existir gostaria muito de ver essas técnicas adicionais devolvendo o sentimento de amor. Que inveja do que vemos em nossas experiências com as comunidades isoladas...

- Fugiram da minha primeira pergunta, a liberdade existe?

- Creio que a Humanidade nunca viveu em liberdade. Todo animal existe preso a uma série de limitações. O ser humano não é diferente. O que assusta é a manipulação para satisfação de interesses menores. Até onde os grandes e incrivelmente poderosos grupos tecnológicos e industriais já não possuem meios de controle total? Estamos sob a tutela da ONU. Ela nos dá esta tranqüilidade e talvez alguma segurança. E os cidadãos comuns deste país? Andando por aí tem-se a impressão de que todos são quase autômatos. Riem, falam, comportam-se, entretanto, de acordo com padrões bem definidos. Parece que estão sob  controles invisíveis. E nós, o que nos impede de estarmos sob os mesmos sistemas? Sabemos das estações orbitais, das bases na Lua e em outros planetas. O que se faz nesses locais? De lá muito poderá estar sendo produzido para maior controle de nossas vontades.

- E após essa experiência policial, como você vê a Justiça no nosso país?

- Graças à tecnologia a Justiça mudou muito nos EUA. Não é mais um instrumento de vingança, atento a qualquer espécie de crime, procurando bandidos e colocando-os em cadeias. Agora é um sistema que analisa o comportamento das pessoas, encaminhando-as para ajustes elementares. Os crimes diminuíram substancialmente, são em quantidade irrisória se compararmos nossas estatísticas às do século vinte, por exemplo. Os seres humanos vivem comportadamente, sem mútuas agressões. A velha pergunta se o indivíduo é inocente ou culpado foi substituída pela questão: como recuperar, o que fazer para ajustar o seu comportamento? Assim os presídios foram substituídos por clínicas e escolas especiais de onde as pessoas saem "recuperadas".
Paradoxalmente evoluímos em relação ao passado, quando pensamos no clima de ódio existente há algum tempo.
Na situação atual é possível aceitar a tese de que ninguém tem culpa de nada, dentro do que , por exemplo, a Igreja Católica definia como sendo um pecado grave. Afinal quando o ser humano teve plena liberdade de decisão e total consciência do que fazia?
Tenebrosamente, entretanto, caímos nas mãos dos donos do poder. Nesses reformatórios muita coisa deve ser feita sem que saibamos exatamente o que é. Há segredos demais em nossa sociedade.

- Ou seja, você talvez venha a ser "reeducado" pelos seus vigilantes. Em certos casos eles conseguem "reajustes" rápidos. Seria importante mais cuidado para não ser preso em qualquer delito. Ou melhor, ser reeducado.



9.           Comentários sobre as comunidades isoladas


A transformação tecnológica, a superpopulação e homogeneização cultural de grandes nações levou a Organização das Nações Unidas a implantar um projeto (Projeto Vida Básica - PVB) de acompanhamento paralelo de comunidades segregadas. Entre elas algumas voluntariamente aceitaram, ou melhor, procuraram o isolamento e já há muito tempo vivem separadas do mundo mais desenvolvido. A ONU tem interesse em estabelecer análises e verificar os efeitos do isolamento sobre os seres humanos em sociedades fechadas. Além disto servem de registros de ambientes passados, de grande sabor para estudiosos da história da Humanidade. Evidentemente serão também depósitos de padrões genéticos que talvez venham a ser necessários no futuro. Sofremos tantas mudanças artificiais que, de repente, talvez estejamos mais semelhantes a grandes animais padronizados do que ao que deveria se chamar "ser humano".
As restrições ao turismo foram muito importantes para nosso trabalho. O ambiente de moscas voando por todo lado, pousando e pisando em tudo, deixando sempre alguma pequena mas perigosa sujeira,  em que a Humanidade viveu durante quase um século, era terrível. Para todo lado, pelo que notamos nos registros da época, havia alguma turba, um monte de gente entrando, saindo, caminhando, mexendo e estragando o que podia. A maioria absoluta dessas pessoas, armadas de máquinas de todo tipo, viam e aprendiam cultura inútil. Em muitos casos voltavam maravilhados com o esplendor de obras gigantescas, feitas sob o peso do chicote, censura e fanatismo de povos passados. Raramente esses indivíduos sentiram o prazer e a dimensão das melhores obras. Infelizmente é mais fácil assimilar coisas supérfluas a procurar entender as verdadeiras grandes obras da Humanidade. Estas são etéreas, mentais, sublimes.
Para compensar, uma das vantagens da tecnologia de nossa época é o turismo virtual. Pode-se ter todos os prazeres e muitos dos efeitos das visitas dentro de um quarto com alguns aparelhos.

Sou, Paulo, o responsável por esses trabalhos. Pesquisador de carreira, tenho fama de ser inteligente e bem sucedido. Comando uma estrutura enorme. Milhares de cientistas, bases navais  (antigamente usadas pela Marinha de Guerra), muito dinheiro e autonomia acima da média são os recursos de que disponho para estes projetos.
Meu tipo físico, sul-americano, atarracado, cara de índio, cabelo preto e liso, talvez ajude em nossos propósitos. Diferente da média, tenho, talvez, mais autenticidade e capacidade de percepção quando desenvolvo críticas à sociedade em que vivemos. Minhas origens são distantes das grandes cidades.
Nossa reunião para acompanhamento da vida nas comunidades isoladas já avança noite adentro. Os filmes, apresentados em três dimensões, dão o mesmo efeito de presença, exceto pela falta dos cheiros e ventos típicos das regiões bisbilhotadas. E como são lindas. Analisamos vidas em florestas distantes e em vilas de ilhas no meio de nossos oceanos. A cor dos mares e florestas encanta e apaixona. Meus companheiros, dedicados ao acompanhamento e análise desses pequenos povos, não conseguem esconder a emoção nessas horas em que observamos a vida dessa gente distante e tão próxima.
Aparelhos de toda espécie e muito bem camuflados acompanham suas atitudes, prazeres e deveres. Muito longe de suas vistas, sistemas óticos extremamente poderosos complementam as informações de que precisamos. Tudo isto além de raros contatos diretos permitem-nos uma visão privilegiada de pequeníssimas nações, que ainda conseguem manter suas culturas e padrões econômicos.
É uma reunião de trabalho. No anfiteatro cheio de especialistas de toda espécie, muitos fazem anotações para discussões posteriores.
Entre as muitas imagens do dia, sensivelmente mexeu com o pessoal um encontro amoroso de um casal, habitantes de umas ilhas distantes. Na praia, ao entardecer, despiram-se, fizeram-se carinhos de toda espécie e se amaram como nunca tínhamos visto antes. E já vimos muita coisa. Creio que muitos colegas sentiram inveja daquela dupla quase selvagem, naquele momento de amor simplesmente natural. Na minha retina e em outros cantos de meu corpo ainda lembro os beijos, abraços, a forma carinhosa e selvagem com que ele penetrava em sua mulher, fêmea até o último centímetro quadrado de sua pele. E a ternura após aquela hora de exercício sexual era a prova de um verdadeiro amor, sentimento extremamente esquecido ou confundido simplesmente com o ato sexual. Foram momentos em que me lembrei de um grande amor desperdiçado...

É uma reunião de trabalho. É muito importante discutir opiniões, pontos de vista. A visão emocional é necessária pois acima de tudo procuramos entender e avaliar os efeitos do progresso sobre a vida afetiva, os sentimentos e comportamento das pessoas. Vendo uma sociedade tecnologicamente atrasada, devemos estimar o que perdemos dentro de nós, habitantes de um mundo super desenvolvido.

Tomo a palavra para falar-lhes de nossas metas:

- Nossa sociedade mergulha em um mundo virtual. A tecnologia domina todos os nossos momentos e dá-nos quase tudo o que precisamos. Com todo o progresso, apesar dele e por efeito dele, a Humanidade tem problemas e desafios gigantescos à sua sobrevivência. Procuramos superar essas dificuldades recorrendo a todo tipo de artifício. A maior preocupação é perdermos identidade, senso de humanidade, capacidade de discernimento e participação em um mundo que se torna hostil à nossa sobrevivência. Corremos sérios riscos de fragilização e perda súbita de condições de resistir a uma catástrofe eventual. E elas têm acontecido em dimensões quase críticas. Ainda agora uma doença estranha está matando muita gente no sul da Ásia. É cedo para avaliar a gravidade da situação mas é um exemplo dos riscos que corremos.
(paro um pouco, inicio nosso principal tema)
Vimos imagens e relatórios de grupos de pessoas que vivem em ambientes isolados. Nessas comunidades, salvo algum controle da fertilidade, não deixamos a “Ciência” avançar além do mínimo expontâneo, natural em suas lutas. A vida média de suas populações é bem inferior à nossa. Não dispõem de nenhum recurso de sobrevida total ou parcial. Escolas e filosofias, que eles consideraram aceitáveis há muitos anos, quando este trabalho começou, são o que dispõem para uma evolução cultural lenta e muito limitada. Agora, após tanto tempo, podemos começar a tirar conclusões, fazer comparações e propostas.
Como provocação gostaria de fazer algumas divagações. Diante de cenas apaixonadas como as que tivemos oportunidade de observar, obrigamo-nos a questionar a validade de nossas instituições, ideais e paradigmas. Estaremos preparados para os desafios do futuro? A felicidade daquele casal mostrou-nos como ela existe nos padrões simples em que vivem. Esses padrões são perdidos o meio de nossas cidades e aparelhos de toda espécie.

Da platéia Joel comenta:
- Dr. Paulo, realmente concordamos com suas colocações. Temos visto o suficiente para desenvolver uma crítica sobre tudo o que temos estudado. Infelizmente as propostas poderão desagradar a muitos. Corremos o risco de sofrer reações de setores mais poderosos e organizados de nossa sociedade.

Esta observação estimula comentários paralelos e reações em muitos dos presentes. Assim retomo a palavra:
- Realmente há riscos a considerar. Poderemos subverter-nos. (Joel sabe o que pretendo insinuar). Qualquer pesquisador sabe que está sujeito a todo tipo de pressão. A verdade incomoda aos dogmáticos, sacerdotes e principalmente aos donos do poder. A ilusão é grande aliada daqueles que comandam povos.
Temos a oportunidade de estudar e, quem sabe, melhorar um pouco nossa Terra tão desgastada. Usufruímos do privilégio de participar de um projeto de pesquisas excepcional, o que nos dá condições de melhor análise. Precisamos mostrar resultados que ajudem nosso povo a sair dos padrões a que se submeteram. Não vemos felicidade real nas atitudes do homem civilizado, avançado, moderno.

Joel insiste:
- A alienação de grande parte de nossa população a leva a ignorar outras condições de sobrevivência. Nosso planeta tem limitações e seus espaços, antigamente compartilhados com muitas espécies de vida, agora estreitam-se em prejuízo de um equilíbrio perdido há muito tempo. E nossos irmãos esquecem os riscos que correm ao desprezar certas condições elementares de existência.
O mais grave é vermos todos os sistemas de comunicação apresentando programas que só contribuem para iludir nossa população. À medida que o tempo passa, os programas tornam-se mais e mais alienantes. Lideranças formais não falam outra coisa que implantar este ou aquele recurso para distração e encantamento de nosso povo. Enquanto isto a temperatura de nosso planeta diminui a cada ano, as geleiras avançam, os mares recuam, campos e florestas desaparecem sob o gelo ou pela construção de novas cidades. Estamos próximos à saturação total e não percebemos nada a favor de uma discussão profunda sobre o futuro da Humanidade.
As nações mais ricas praticamente afundaram nos prazeres oferecidos pela tecnologia. As mais pobres insistem em filosofias que as fazem mais miseráveis e criam espaços para todo tipo de degradação.

A reação às suas palavras é forte. Muitos cientistas têm medo de discutir política, como dizem. Para eles este é assunto proibido. Qualquer menção direta ou indireta a direitos e deveres humanos parece-lhes falar de algo estranho e proibido.

José Marcos, sempre defendendo os mais poderosos, parte em defesa dos “poderes constituídos”:
- Graças à tecnologia, à mídia e ao Governo Central temos vivido em paz. Não encontramos nas Américas quem esteja passando fome. As pessoas já não nascem com problemas graves. A Ciência permite-nos um padrão de vida excelente.
Não temos culpa se algumas nações insistem em costumes retrógrados. As diferenças são naturais.
A superpopulação é uma ficção. A tecnologia irá permitir-nos sobreviver com segurança.
Querer viver em padrões como os que vimos em nossos relatórios é uma utopia. Antes de criticar o Governo, deveríamos cumprimentá-lo pelo sucesso.

Manoel, ecologista fanático comenta:
- Estamos destruindo a Natureza. Restam poucas espécies de animais em relação às que viviam sobre a Terra há pouco mais de mil anos. A poluição gradativamente torna a vida impossível em muitas regiões da Terra. Onde está nosso Governo? O que ele realmente tem feito a respeito, exceto muita mídia e perfumaria? Ecologia não é pintar tudo de verde e construir museus com animais e plantas artificiais.
A educação formal é flagrantemente alienante. Os principais temas, as diretrizes, a forma com que todos são instruídos, educados, são para a preparação de autômatos humanos. Há um processo de dominação que se torna dia a dia mais eficaz na dominação das pessoas. As desculpas são eventualmente apresentadas. O excesso de população exige disciplina, aceitação de limitações severas. A vida está se tornando algo superficial, para muitos pura ficção.

Aproveito o gancho para colocar a essência de nosso trabalho:

- Nosso projeto Vida Básica pretende exatamente avaliar sob parâmetros técnicos o que a Humanidade ganha realmente. Precisamos comparar modelos, reações, medir até sentimentos. A Ciência permite-nos coisas inimagináveis há pouco tempo mas também poderá nos conduzir para espaços vazios, vidas perdidas. Felizmente ainda temos boas amostras de diversos estágios anteriores da civilização humana e da fauna animal e vegetal. Até sem pretender filosofar, simplesmente, deveríamos perguntar, o que é viver?

Joel intervém:
- Corremos o risco, entretanto, das nações consolidarem filosofias aparentemente desenvolvidas mas absolutamente alienantes. Talvez nossas propostas cheguem tarde. Na busca de confortos as pessoas se perdem em facilidades perigosas. Um bom exemplo é o WIB? Será que o nosso destino é este?

Alfredo responde:
- Graças ao WIB muitos agora podem viver com certa tranqüilidade. Que vida teriam sem o Banco?

- Mas como? Precisamos de vida natural, humana. As condições do WIB são violentas. E a propaganda que se faz para adesões maciças...

- A solução não é esta. É pura loucura.  Loucura é viver confinado e consciente de limitações tão violentas quanto estamos agora sujeitos. O estranho é a passividade da maioria da população. Não reage, faz o que os líderes querem. O que está acontecendo realmente?

O debate radicaliza-se.
A reunião é suspensa.



10.        Reunião do World Intelligence Bank


Dallas, Texas, 50o andar do prédio sede do World Intelligence Bank (WIB). O Conselho Gestor do WIB, reunido, discute suas prioridades. Em frente de cada conselheiro um painel informa os resultados “on line” do grande arquivo, fluxo de depósitos, consumo de energia, etc. As entradas são assinaladas com todas as características do contribuinte. Condições financeiras, relações familiares, idade, sexo, instrução, saúde e potenciais produtivos aparecem em planilhas tridimensionais. Tudo é apresentado de forma organizada, inteligente. A tecnologia nesse terceiro milênio é uma questão séria, imprescindível  pois o Mundo, imerso em um clima glacial, oferece muito pouco para as dezenas de bilhões de pessoas tecnicamente vivas. A poluição e o frio são um pesadelo a desafiar as melhores inteligências.
O arquivo principal gera idéias para enfrentar o clima glacial. Paralelamente uma equipe de apoiadores desenvolve estudos detalhados sobre as condições operacionais do banco. O mais importante é enfrentar acidentes, como a falta de energia. Outra grande preocupação é a qualidade dos elementos de sustentação dos depósitos. Qualquer variação gera perdas ou mudanças comportamentais enormes. No momento o principal é descobrir formas de neutralizar o frio crescente. O processo é lento mas tem sido contínuo. Estudos que não preocupam muito os próprios banqueiros, afinal resistem a temperaturas mais baixas. Mas até eles dependem de energia, de peças importantes, de inteligência.

O líder, de nome código John, já com muitos sinais da idade, expõe os grandes desafios.
- A manutenção dos arquivos é o principal. Os depositantes não querem se preocupar. Acostumados com inúmeras facilidades tecnológicas, não mais percebem os excessos. A vida é um desafio complexo. O potencial da tecnologia e as restrições naturais levaram a indústria a desenvolver inúmeras formas de distração eletrônica. Nos países mais desenvolvidos tecnologicamente não há mais interesse em outro desafio do que ser e estar dentro dos circuitos culturais e lúdicos do grande sistema de sobrevivência passiva.
Grande parte da Terra está coberta por geleiras. As temperaturas terrivelmente baixas fizeram das grandes cidades do Hemisfério Norte ambientes subterrâneos ou fechados em inúmeros complexos de conservação de energia. As centrais foto voltaicas, instaladas na região tropical, produzem quantidades imensas de energia. Dependem, contudo, de sistemas de transmissão extensos. Qualquer falha deve ser compensada pelos equipamentos locais de geração de energia. Mais complexos e muito mais caros, são usados com muita cautela. A vida depende de tudo isso.
E o nosso negócio é este, simplesmente. Nosso Banco é a grande esperança de grande parte de nossa população. Querem garantir a vida que conhecem, ainda que sob as limitações que oferecemos. Não podemos falhar.

John, fala. Transmite informações. Discute resultados.

O time ali reunido é um prodígio da tecnologia. Os cientistas tiveram como maior desafio fazer com que esses banqueiros tivessem sentimentos, reações quase humanas. Fazê-los compreender a lógica da tolerância, das ponderações naturais e das filosofias maiores não foi fácil. Tinham como principal instrução governar depósitos, não sabiam avaliá-los moralmente.
John tinha muito a dizer. Vinha de grandes análises. A principal preocupação residia na manutenção dos arquivos não produtivos. Custavam caro e as taxas pagas não estavam compensando. Um grande problema é que muitas dessas taxas na época do depósito eram únicas e estabeleciam sustentação permanente. O tamanho de cada unidade também era uma variável importante. Os maiores exigiam muito para serem mantidos. E a produtividade era semelhante aos mais reduzidos.
O tempo passa, os critérios mudam, as discussões e questionamentos surgem.
Aquele time em volta da mesa estava programado para analisar e discutir com frieza a importância de seus estoques. E John coloca no circuito algumas questões éticas. Esse time pode fazer análises holísticas. Novas lógicas e recursos de processamento permitem um padrão de decisões muito mais elaborado, desenvolvido.
Ética, a eterna dúvida entre o bem e o mal, é sempre um desafio. Compreendê-la com profundidade é um desafio até para os grandes pensadores. Os banqueiros têm sua própria ética, diferente da existente entre as pessoas do mundo natural. Ela será exigida ao extremo, estão sendo cobrados, precisam acertar, decidir rápido. Podem desaparecer apesar do imenso poder que exercem.

John coloca as questões:
- Como manter arquivos e garantir espaços para novos depósitos? Estão ficando muito caros e complexos. Precisamos abandonar alguns? Nem todos, ou melhor, grande parte é absolutamente improdutiva. E os compromissos assumidos? Cada arquivo opera sob compromissos pré definidos, muitos deles estabelecidos quando as condições externas eram completamente diferentes. Quanto devemos gastar para respeitá-los? A rentabilidade diminuiu. Ou seja, temos menos apoio na manutenção e operação deles. Podemos? Há necessidade de melhorar muitas instalações. A tentativa de sustentar a todos poderá levar-nos a perdas maiores.
Diante de tudo isso seria importante mantê-los a custos tão elevados? Terão alguma utilidade algum dia?
E a reação dos povos mais selvagens? Suas religiões estimulam a sabotagem. A segurança dos arquivos se deteriora (e o pior, dos próprios banqueiros). Em alguns lugares a confiabilidade das fontes de energia é muito baixa. Não tivemos maiores acidentes por pura sorte.
O avanço das geleiras é preocupante. Teremos um longo período, sabe-se lá quantos milhares de anos, com severas restrições de espaço e elevadíssimo consumo de energia. E elas destroem cidades, arrasam campos, derrubam linhas de transmissão, mudam completamente regiões inteiras.
Ganhamos importância à medida que a vida normal se inviabiliza. Será extremamente difícil, contudo, manter nossas agências. Algumas já estão sob risco iminente de desativação. Como faremos para ajustar-nos às condições do planeta? Quais serão as nossas prioridades e em que escala de valores?

Estas questões são transmitidas com sons, números, imagens e tudo o que é necessário a uma mensagem completa. O movimento e as expressões de John são captados integralmente pelos seus parceiros. É importante uma comunicação perfeita, completa. E esta conquista tecnológica ali materializada pelo padrão de comunicação e análise dos banqueiros era o que havia de melhor. Pela responsabilidade que possuíam, não podiam desprezar nada. Tudo existia à volta deles para completar o arsenal de informações ideal às decisões, que rotineiramente são obrigados a tomar.
A reação é imediata. Pensar no futuro fora dos projetos antigos é algo novo. Todos iniciam um processo de análise, que demorará algum tempo. Felizmente para esses banqueiros o tempo não é tão crítico. O maior risco corre a população externa. Quando eles começam a rever posições o mundo treme.
E além de tremer, não raro tem se assustado amargamente com as decisões deste time.
A amplitude do WIB é mundial, em alguns lugares mais efetiva do que em outros.
Seus serviços têm sido pretendidos por todos os povos. Nem todos, contudo, têm sido capazes de sustentá-los. Atuam mais eficazmente nos países mais ricos e, dentro deles, apenas onde há como sustentar toda a estrutura necessária a seus arquivos. E eles já são enormes. Durante muitos anos receberam uma quantidade significativa de depósitos. Agora, com os problemas ambientais, o custo de operação cresceu muito. Administrar este universo de problemas é um desafio gigantesco, nem sempre valorizado devidamente pelos usuários. O WIB tem explorado formas de gerar recursos, aproveitando seus depósitos. É uma forma de compensação importante pois esse arsenal guardado em suas prateleiras tem um potencial gigantesco. Aproveitá-lo, entretanto, não é simples. Manter é fácil, fazê-lo interagirem, produzir, gerar projetos, idéias, é algo que a ciência ainda carece de alguns desenvolvimentos. A tecnologia evolui, provavelmente logo teremos hiper computadores com a base fornecida pelo WIB. É inimaginável o que eles serão capazes.
Felizmente para o WIB estamos em uma época em que a mídia é uma ciência extremamente desenvolvida. Assim fica mais fácil trabalhar e evitar reações negativas a falhas eventuais.



11.        Grupo Mundo Novo


Em um ponto de uma grande cidade, procurando fugir a todos os sistemas de escuta e rastreamento implantados pelos poderes regulares e empresas de toda espécie, nosso Grupo Mundo Novo discute filosofia. Todo cuidado é pouco. Pensar é perigoso em nossa sociedade "livre". Chegamos não raro a pensar em ações mais contundentes mas sabemos que a violência é o pior caminho, ou melhor, a maioria de nosso time ama a não violência, a maioria, bem entendido, pois sempre alguns companheiros mais exaltados acabam se deixando levar pelo romantismo bélico. Além disso tememos a repressão. Já vimos a inibição de muitos ativistas. Agindo sem muitos cuidados caíram nas mãos das forças policiais. Submetidos a tribunais e leis feitos sob medida para a defesa dos grandes grupos de poder existentes, acabaram condenados a ajustes especiais. Considerados subversivos, foram presos e submetidos a processos de reeducação e intervenções estranhas, que os deixaram completamente alienados. São agora simples robôs nas mãos das elites dominantes. Aliás, nossa sociedade mais parece um parque de máquinas. Aparelhos para todo lado e em torno deles coisas, que poderíamos entender como sendo seres humanos, transitam sem grandes expressões emocionais. O bom comportamento dessas multidões contrasta totalmente com aquelas de antigamente. Com raríssimas exceções, em nosso país, os americanos são agora indivíduos previsíveis, ajustados ao que se espera deles.
O mundo mais desenvolvido não tem espaços para cadeias e elas são absolutamente desnecessárias, quando se pode transformar os “criminosos”, deixando-os de acordo com os modelos estabelecidos pelo Poder. E há vantagens nesse processo quando lembramos que, ao final do segundo milênio de nossa era, só os Estados Unidos da América do Norte tinham mais de um milhão de presidiários, gastando bilhões de dólares para mantê-los em autênticas universidades do crime. Em todos os países americanos as penitenciárias transbordavam de gente, vivendo em péssimas condições e custando fortunas ao estado. A questão negativa é pensarmos no direito que as elites exercem de mudar a personalidade das pessoas sob o pretexto de corrigi-las. Pior ainda, será que essas mudanças são razoáveis? Dentro dessa tecnologia poderemos estar caminhando para a ditadura absoluta.

O Grupo Mundo Novo, nós,  é um pequeníssimo time de cientistas sociais e técnicos de alto nível. Todos ligados ao também nosso Projeto Vida Básica, onde desenvolvemos pesquisas sobre o comportamento humano, acabamos convencidos de que haveria necessidade de mudanças radicais nas diretrizes culturais da Humanidade. Por diversas razões sentimo-nos responsáveis e capazes de promover mudanças, perigosas mas necessárias na nossa visão. Em nossas atividades profissionais devemos limitar-nos à emissão de relatórios, que têm sido arquivados sem muita discussão, apesar do altíssimo custo. A frustração de vermos pouca ressonância ao que temos feito levou-nos à formação deste grupo. Clandestino por razões óbvias, é o ambiente em que podemos discutir idéias menos convencionais e hipóteses de ações mais enérgicas. Repudiamos, em princípio, o uso da força mas até ela poderá a vir ser uma proposta que um dia talvez formulemos.
Discutimos a perda de vontade, a alienação política, a desatenção social. Como promover as mudanças ? De que forma a Humanidade, apesar do aparente sucesso, de todos os progressos, mudará seus rumos? Temos o direito de agir nesse sentido? Existe algo que poderíamos fazer para que nosso povo voltasse a ter mais liberdade, criatividade e felicidade genuína?

Reflito sobre o ensaio, que estava lendo, a respeito dos meios de comunicação. É difícil de acreditar em tudo o que diz. Preciso conversar com seu autor para avaliar a credibilidade de suas fontes, de suas afirmações. O texto permite conclusões assustadoras.
Sobre ele rememoro, penso.

Grande paradoxo! A liberdade e a tecnologia foram e são o instrumento de fortalecimento das classes mais ricas e organizadas. Com o uso de seus recursos criaram instrumentos de dominação surpreendentes. No princípio era a simples mídia. Programas de toda espécie propagavam as maravilhas de uma liberdade fictícia. Fictícia pois dependia de dinheiro, de recursos que a maioria da população não dispunha. Sempre com o sonho de escalar a montanha do poder, da riqueza, aqueles que percebiam os efeitos da mídia entendiam que era uma condição natural explorar a ignorância alheia, a ingenuidade, a desonestidade de pessoas que pretendiam sempre lucrar algo pelo uso esperto de alguma informação. A grande maioria simplesmente não se preocupava com o que acontecia à sua volta.
O que poucos notaram é que a ciência e a liberdade de expressão de qualquer pensamento nos sistemas de massa existiam para servir àqueles que podiam pagar seus custos. Esses privilégios eram de poucas pessoas. Usando-os conquistaram poderes imperiais sobre a sociedade. Monopólios diretos e indiretos, apoiados em leis induzidas pelos grupos dominantes, completaram o quadro de controle da opinião pública. E souberam usar tudo o que a tecnologia oferecia para induzir e dominar pessoas. Paradoxalmente souberam também  usar muito bem direitos que se entendiam universais para dominar e restringir a própria liberdade. Os meios de comunicação procuraram degradar sentimentos, vulgarizar comportamentos, supervalorizar instintos. Assim tiraram a atenção da população sobre as questões mais básicas da vida. Nesse ambiente de falta de cuidados as grandes empresas aprimoraram recursos de dominação cultural. As guerras passadas foram exemplos eloqüentes dos piores e mais evidentes efeitos da propaganda, do controle de mentes pouco desenvolvidas. Agora sentimos o risco da escravidão total.
Com os conhecimentos aprimorados durante muitos séculos sobre o comportamento humano, sabe-se com extrema precisão como corromper, aliciar, envolver e dominar.
A sociedade da comunicação permite o trânsito de arquivos de toda espécie. Deles um dos mais eficazes na dominação humana é o rastreamento de fichas de análise médica e psiquiátrica. Algoritmos e lógicas sofisticadas classificam as pessoas, orientando os donos desses sistemas sobre o que fazer para dominá-las. Com o apoio de inúmeros diagnósticos, acessíveis às elites (aqueles que podem pagar) a partir de exames médicos e psiquiátricos aparentemente inocentes, devidamente analisados por centros de processamento sofisticadíssimos, dão os elementos necessários ao estabelecimento de estratégias de mídia e diretrizes de comando quase infalíveis. Só não são perfeitos porque há pessoas que conseguem fugir a qualquer padrão.
A absoluta maioria da população dos países mais desenvolvidos materialmente vive sob controles indiretos extremamente eficazes. Usando a propaganda e somando o poder de empregar, distribuir riquezas e prestígio, as elites poderosas cativam-nas, envolvem-nas, dirigem-nas. Essa é uma forma tradicional de dominação, que apenas se aperfeiçoa ao longo do tempo.
Desde épocas distantes o aliciamento dos seres humanos baseou-se na exploração de suas fraquezas intelectuais e materiais pelos mais fortes.
A Ciência deu sua contribuição. Bilhões de horas de estudos e pesquisas acumuladas, metodizadas, organizadas e aproveitadas pelos mais modernos sistemas de processamento de dados permitiram, dentro de uma lógica pré definida, chegar a esquemas e bases de dominação inimagináveis poucos séculos atrás.

Os meios de comunicação são complexos, variados e censurados de diversas formas. Apesar de leis a favor da liberdade de expressão, sob o pretexto de racionalizar os circuitos existentes, diversas formas de controle da transmissão de qualquer espécie de informação foram implantadas. As grandes empresas dominam politicamente as maiores nações. Para não perderem seus poderes conseguiram desenvolver técnicas de controle do conhecimento extremamente eficazes. A vontade, o dinheiro e a tecnologia juntos geraram condições para uma tirania de elites jamais vista.

A globalização da economia, conquista do início do século 21, permitiu aos poderosos penetrar em todos os recantos da Terra. No mundo sem fronteiras, perde-se espaços de preservação cultural e política. O império dos donos formais e indiretos dos meios de comunicação consolidou-se com novas tecnologias. Houve um período de quase perda de controle graças aos sistemas à época denominados INTERNET e similares. Quando perceberam os riscos que correriam, estimularam sociedades conservadoras a, com medo de irem para o inferno, autorizarem o estabelecimento de limitações ao uso dos meios independentes de comunicação. Assim como aconteceu com rádios e televisões, viraram concessões com regras muitos detalhadas de forma de uso.

O próprio desenvolvimento da eletrônica e informática viabilizaram a implantação de controles mais e mais eficazes. O que menos interessa às grandes empresas é a liberdade política. Seus grandes acionistas assumiram o lugar dos grandes reis e presidentes. Com o infinito poder do capital e capacidade de articulação, criaram sua própria democracia. Restrita a eles. Regularmente elegendo líderes perfeitamente sintonizados com seus interesses, é dentre eles que escolhem os grandes chefes, chefes depois exportados para a área política. Comandando, paralelamente, associações patronais de megaempresas decidem tudo o que importa a seus interesses.
Os governos nacionais e o entendido como multinacional são liberalidades concedidas ao povo sob inúmeras condições ideológicas. A ditadura do capital aliado à tecnologia é quase perfeita. Só não contavam com a própria Natureza. O frio crescente, as geleiras avançando e falhas de comunicação até nos melhores sistemas têm criado situações extremamente graves e permitido o surgimento de rebeldes perigosos.

Grandes empresários, aliando conhecimentos sobre a mente humana e a eletrônica, começaram a investir em sistemas de dominação direta. E de que forma atingir este objetivo?
A principal descoberta foi dominar o controle químico e eletrônico dos cérebros. Assim descobriu-se muitas formas para se satisfazer os desejos de qualquer pessoa. Afinal a própria continuidade da matéria é uma ilusão. Dentro de fantasias,  imagens e sentimentos governados pelo metabolismo e processos culturais pode-se ter reações completamente diferentes de tudo o que afeta o comportamento humano.
O conhecimento da dinâmica alimentar do corpo humano e do funcionamento do cérebro e sistema nervoso, o altíssimo nível da Química e o aproveitamento dessas ciências na sustentação e estimulação dos seres humanos abriu espaços para aplicações incríveis, inimagináveis no final do segundo milênio. Agora, com todos os recursos de processamento de informações, tem-se um potencial gigantesco de aplicações sobre o ser humano. E elas são usadas de formas as mais diversas. Dos antigos e destrutivos vícios de antigamente, agora tem-se uma coleção de estimulantes e inibidores extremamente eficazes. Esses "produtos" são consumidos dentro de programas estabelecidos pelos governos mais ricos.
As nações pobres esbarram na própria indigência, continuam brigando entre si, matando-se por credos rudimentares e interesses imediatos. Têm mais liberdade que os povos mais ricos, por enquanto. Mostram em comportamentos estúpidos os instrumentos naturais implantados no ser humano pela Natureza, ou seja, a tremenda agressividade e capacidade de aceitar qualquer proposta beligerante. É interessante como a teoria do comportamento dos animais aplica-se rigorosamente ao ser humano. O macho dominante, a necessidade de ser o maior e mais forte, a imposição do líder aos demais e as lutas pelas fêmeas, a disputa de espaços. No mato disputava-se a flechadas, agora é com os artifícios que a indústria bélica oferece dentro das regras das grandes potências. O teatro vive procurando atender a platéia.
Nos países ricos, contudo, o poder manifesta-se de forma mais sofisticada, sutil e eficaz. Harmoniza e submete a todos os seus sem os sinais extravagantes das sociedades mais atrasadas. E a tecnologia continua a aprimorar os métodos de dominação intelectual.
Nosso Grupo Mundo Novo sente o desafio de encontrar uma alternativa. Não podemos aceitar essa situação de dominação comportamental, cultural e moral a que percebemos estar mergulhada a Humanidade, em especial os países mais "desenvolvidos".  Sabemos que é difícil, muito pouco provável que venhamos a conseguir algo relevante. Tendo consciência de tudo isso, contudo, sentimo-nos responsáveis, obrigados a agir de alguma forma. Nossa responsabilidade em nossos cargos a serviço da ONU é fermento para pretensões revolucionárias. A questão maior será encontrar uma forma de agir. Talvez nosso alvo maior venha a ser encontrar formas de inibição dos piores meios de dominação intelectual da Humanidade. Desativando diretamente ou indiretamente esses sistemas estaremos devolvendo às pessoas afetadas o direito de pensarem por conta própria.

Prosseguindo a análise do relatório que nosso pesquisador desenvolveu, percebo a extensão da estrutura existente.
Sucessivamente aos processos químicos e orais, os grandes centros de pesquisa a serviço de algumas grandes empresas perceberam que o ser humano poderia ser influenciado por campos eletromagnéticos. Mensagens eletrônicas imperceptíveis aos ouvidos mas captáveis pelo cérebro poderiam ser irradiadas em locais super bem camuflados, discretamente. Duas grandes multinacionais conseguiram sucesso no desenvolvimento de sistemas dessa espécie. Aproveitaram experiências secretas já feitas no distante século 20, acrescentaram informações posteriores (óbvio) e finalmente atingiram domínio sobre técnicas de influência eletromagnética. Produziram equipamentos e lógicas de comunicação dentro deste potencial. É um projeto relativamente recente. Tem algumas décadas de serviço. Não atinge todos os países.
Centrais gigantescas foram construídas por essas empresas nos países de maior interesse, coincidentemente os mais ricos. Laboratórios extremamente secretos produziram equipamentos e instalações ainda mais escondidos. Note-se a ironia. Agora são as nações mais ricas as principais vítimas de suas riquezas. Por serem tão cobiçadas, tornaram-se o principal alvo dessas mega empresas. Essas nações estão gradativamente perdendo o próprio controle. Toda a tecnologia disponível está sendo usada pelas mega empresas e seus executivos para controlá-las.

Em princípio utilizados para estimular subliminarmente o consumo de produtos dessas empresas, os sistemas de influência eletrônica (SEI) logo despertaram a vontade de manipular politicamente as pessoas. Desta forma grande parte da Humanidade age, sem perceber, dentro dos padrões políticos e sociais dessas companhias, ou melhor, de seus maiores acionistas.
Organizados no MEI, um sindicato de poderosos, dominam politicamente as grandes nações.
E há outros métodos de dominação e outros grupos de poder. Produtos alimentares, bebidas, estimulantes, calmantes e uma série de equipamentos eletrônicos, que têm por principal objetivo submeter a população aos projetos das elites dominantes, formam um arsenal extremamente eficaz.
Seus maiores investidores, para se organizarem melhor, criaram associações patronais, autênticas máfias, onde discutem estratégias e ações comuns. Em prédios luxuosíssimos, decorados por artistas famosos e mercenários, edifícios projetados e construídos dentro das melhores técnicas, exercem seus poderes sobre a Humanidade.
Esses bilionários (se é assim que se entende quem possui patrimônios fantásticos) geraram famílias com sobrenomes e espaços genéticos bem definidos. Não podem mais correr o risco de perderem o controle de suas empresas e do povo, principalmente. Informações e segredos brutais são transmitidos sob extremo cuidado a seus descendentes quando, a despeito de todo o poder e tecnologia, sentem estar próximo o fim.
Concluindo o relatório o pesquisador diz que estamos sendo escravizados, simplesmente. A Humanidade caminha para o controle total, a dominação sutil e extremamente eficaz oferecida pelo conhecimento profundo do cérebro humano e das formas de submetê-lo à vontade de quem maneja os sistemas de influência eletrônica e outros recursos de monitoramento e controle da vontade humana.

Diante de tudo isso sinto a indignação aumentar, a disposição para a luta ferve. Sinto, contudo, o receio do comportamento apaixonado, da estupidez da certeza, da disposição para lutas inúteis.
Nosso Grupo Mundo Novo precisa conversar muito mas sempre com a dúvida, só falar?



12.         Analisando planos


Em volta de uma mesa, falando baixo e com todos os cuidados típicos daqueles de épocas distantes, nas piores ditaduras, conversamos.
Ainda tenso após as últimas leituras, começo minha pregação diária. E falo com uma base excepcional. Sou o gerente do maior projeto de pesquisa do comportamento humano em desenvolvimento, a nível mundial. Minha função e características pessoais me possibilitaram ser o chefe de um time complexo e afinado em torno das principais teses. Isso tudo me permite ver o mundo de forma diferente. Meus companheiros do Grupo Mundo Novo, todos arregimentados dentro de meu espaço de controle, ouvem com atenção minhas palavras:

- Talvez tenhamos escapado dos eletrodos, das antenas, da mídia e sistemas diretos de lavagem cerebral. Se isso é verdade, provavelmente possamos agir de forma independente, talvez tudo o que estejamos dizendo seja nossa vontade e opinião real. Descobrimos, por muita sorte, as muitas armadilhas existentes em nossa sociedade, talvez não todas.
A liberdade e a consciência dos problemas existentes são compromissos com a vida. Ter consciência dos grandes riscos existentes obriga-nos a agir. Não temos o direito à omissão.
Nosso mundo não tem mais guerras mundiais, conflitos violentos só nos países mais atrasados e distantes. Grande parte da Humanidade organizada e mais rica sobrevive a paz dos cemitérios. Todos têm o que precisam. A dúvida é se existem. Grande parte desta multidão vive mutilada, ligada a sistemas de controle comportamental, monitorada. Populações inteiras estão sendo conduzidas, administradas por forças desconhecidas delas próprias. São uma massa estranha. Se antigamente deixavam-se entorpecer por distrações de toda espécie, agora trabalham, estudam, rezam e divertem-se de forma excessivamente disciplinada. E os objetivos desta disciplina são muito discutíveis. Vivem para um trabalho do qual tiram muito pouco para o próprio desenvolvimento, conforto e diversão. Se no passado as elites usavam o discurso da competitividade, da necessidade de baixar custos, aproveitavam-se das altas taxas de desemprego, agora todos têm suas ocupações, todos se alimentam e vivem de acordo com padrões muito claros, limitados e suficientes a um modelo medíocre. É um autêntico comunismo, da pior espécie. E tudo isso para que excessos de produção sejam aproveitados por uma minoria, que vive a níveis assombrosos, se é que também não sobrevive com limitações que desconhecemos
A diferença é muito pequena em relação à situação vivida pelos povos ditos socialistas. O estado totalitário voltou a sê-lo com outro aspecto. O grande partido único é aquele formado pelas associações patronais. As vaidades são idênticas. A diferença é o acesso ao Poder. A escalada segue cartilhas não escritas mas evidentes. O eterno cerco aos poderosos, o jogo hipócrita da bajulação, a acumulação de riquezas por qualquer meio. Entre os ricos o que importa é ter, possuir. Tendo são poderosos, mandam no resto da Humanidade. Uma dúvida maior me angustia. Poderíamos realmente qualificar desta maneira o povo americano, considerado mais desenvolvido? Talvez o que vemos seja o resultado de uma forma de escravidão sutil. Não é a vigilância a maior força daqueles que decidem sobre a vida de todos? Formas mais inteligentes de comando transformaram cada cidadão em um boneco totalmente controlado. Esta é a impressão que me deixa angustiado. Inexplicavelmente escapamos a esses processos de influência. Alguns escapam. O impressionante, contudo, é a forma passiva, cordata, disciplinada de comportamento do famoso cidadão "livre".
Convencemo-nos de que nossos governos são simples representantes de elites poderosas. Instrumentos desses sindicatos do poder, líderes políticos têm agido tenebrosamente, estritamente dentro das conveniências dos mais ricos. Pouco lhes importa a evolução real do povo. Quando não, são pessoas comprometidas com a manutenção desse estado de coisas pois nossos cidadãos assim o “desejam”. E por quê o desejam? O que os faz tão alienados?
Preocupa-nos o futuro dessa civilização. Estamos longe de um ponto de equilíbrio com a Natureza. A poluição, a destruição de outras espécies de vida atingiu níveis terríveis. E dentro de uma visão de extremo apego à vida as pessoas ocupam espaços, que deveriam ceder a seus descendentes.
Quem manda? Como? O que realmente queremos ser?
A Terra mais parece um queijo suíço, de antigas épocas em que era feito. É um planeta que navega pelo espaço com seres que se dizem vivos. A ciência, a tão decantada ciência, de tão grande levou-nos à construção de autênticos cérebros eletrônicos. Ninguém mais consegue afirmar que a conhece. Os humanos tornaram-se fontes genéticas de chips muito bem montados em computadores de toda espécie. Sociedades cibernéticas, colocamo-nos em ambientes dirigidos por homens e máquinas. E transformamo-nos em robôs, seres programados, monitorados.
O que é a vida? Para que nascemos? Queremos viver? Para apreciação de vocês fiz algumas análises que peço estudarem com calma. Esses documentos estão cifrados e só vocês poderão lê-los, por favor. Vocês têm os códigos, os sistemas de interpretação que lhes entreguei na última reunião.

Maria, nascida na província peruana, grande psicóloga, índia bonita e guerreira, ainda sentindo em suas entranhas os desejos de mulher, retruca:
- Ótimo, ainda há coisas a serem ponderadas mas a angústia é grande. Vale sempre perguntar, acrescentando ao que você disse, ainda que sob a pecha de um romantismo arcaico:  O amor ainda existe? Será que ainda conseguimos perceber a importância do puro e simples amor clássico? e o Sol? A Lua? As grandes planícies? E as florestas e flores? A poesia, a beleza, existem? Onde? Em placas de computador?
E elas são o resultado da luta pela sobrevivência. Sobrevivência estranha em que alguns podem estar e ser gente, muitos trabalham sem saber para o quê e outros vegetam com prazeres intermináveis. Existência terrível, à medida que o tempo passa destrói outras vidas, faz de nossas planícies e florestas imensas plantações. Os animais só sobrevivem em gaiolas e jaulas ou em lugares onde são vistos como fontes de proteínas.
E os seres humanos, também engaiolados, param entorpecidos por produtos químicos e eletrônicos.
E Deus? Existe? O que pretende? Que vida é esta em que encontramos a Humanidade? O ápice de sua obra seria isso?
(O romantismo de Maria esconde um pouco seu caráter. É dura e violenta quando assim o deseja.)

- É por isto que nos reunimos. Precisamos lutar pela retomada de uma lógica, da ética e pela vida como Deus a colocou sobre a Terra. Não podemos nos transformar em objetos de uma minoria iluminada. Pior ainda, objetos de máquinas. É difícil acusar alguém. Simplesmente a sociedade foi se transformando, assimilando tecnologias, tornando-se um aglomerado de tecnologias em que o ser humano é simplesmente uma peça. De alguma forma é urgente recuperar condições de sobrevivência sem essa estrutura tecnológica, pelo menos na forma em que se encontra.
Nosso planeta carece de um equilíbrio biológico. A imagem de  Deus é antes de mais nada ética, moral. Que natureza é esta? Tudo menos o que se poderia imaginar resultado de uma visão divina.

Interessante, falo mencionando a existência de um criador, Deus. Toda a tecnologia e inteligência levaram-me a questionamentos e conclusões metafísicas. Assim como a maioria das pessoas que ainda consegue ver a Natureza, suas flores e animais, e olha para os céus e lá percebe luzes que há milhões de anos saíram de suas estrelas, é difícil não acreditar em Deus. De alguma forma Ele existe. Religião, contudo, parece-me impossível ter alguma (Seria muita arrogância aceitar tanto conhecimento). E, dentro desta lógica, acredito ter sentido alguma mensagem, parece-me existir uma espécie de missão. Na hipótese de que tudo na Natureza teria alguma razão de ser, talvez a nossa seja lutar contra o que vemos por aí. E nas hipóteses de ação não desprezo a possibilidade de desenvolver lutas violentas.

Joel, barbudo como antigos guerrilheiros, mais jovem e ainda cheio de hormônios, toma a palavra:
- E nossos planos, o que realmente faremos? Discutimos muita filosofia mas pouco mudamos, praticamente não avançamos em nossos objetivos. Quando tentamos simplesmente convencer nosso povo a mudar de comportamento, a reação tem sido frustrante. Tudo o que fizemos até agora teve pouquíssimos resultados. Nossos relatórios dentro do Projeto Vida Básica são desprezados. A ação pacífica parece-me inútil.
Não entendemos. As pessoas parecem não ouvir. Maravilhadas com detalhes esquecem o conjunto. Ou algo as faz não perceberem em que nos transformamos. Acredito que algo deva ser feito de violento. Precisamos destruir a base tecnológica que sustenta esse mundo. Muitos morrerão mas retornaremos a um nível realmente suportável e compatível com nossa Natureza. Ou queremos ser apenas cérebros abastecidos de impulsos lúdicos? Temos um grupo razoável de companheiros que, por alguma razão desconhecida, parecem fora do padrão normal. Com eles discutimos, trocamos idéias. Em todos nós encontramos a mesma angústia. A Humanidade é numerosa. Somos dezenas de bilhões de seres vivos. Quantos a Terra suporta e quantos nós desejamos?
A mídia matou o ser humano racional. Ele é uma raridade. Filosoficamente parece que não existe mais. Ou melhor, nunca nasceu.
Modismos de toda espécie conduzem a Humanidade, governando comportamentos, vidas e sentimentos.
Agravando a situação parece-nos que muitas pessoas deixam-se instrumentar. Acreditamos que aparelhos são instalados em seus corpos. Assim pais levam filhos para ajustes que, no dizer de muitos sacerdotes, garantirão a santidade, uma vida no paraíso. É impressionante a sobrevivência de tantas religiões com idéias e propostas tão retrógradas. Elas são uma demonstração inequívoca de que muitos seres humanos simplesmente são incapazes de pensar. Não há evidência que mude certos indivíduos. E têm adeptos. As pessoas procuram no mundo imaginário as razões que não encontram na Terra, concreta, dura, severa.
Precisamos agir para devolver à Humanidade um pouco de decência, de existência digna. Organizamo-nos para ações políticas. Temos certeza de que podemos contribuir. Essa estrutura tem pontos falhos.
Em breve deveremos estar discutindo um plano de ação mais efetivo. Muito pode ser feito com muito pouco. Basta conhecermos os pontos fracos do sistema em que vivemos. A questão é pesar e medir as conseqüências. Nosso sentimento revolucionário não é apenas o de simples rebeldia ou luta pelo poder. Todos aqui reunidos têm inteligência privilegiada e esperam transformar a sociedade pela forma mais pacífica possível. Há necessidade, contudo, de uma mudança nos rumos de nossa civilização. A transformação pacífica parece-nos impossível. Por qualquer razão que desconhecemos as pessoas não entendem nossos discursos. Não vêem, não ouvem e não falam. Quando o fazem é para discutir tarefas rotineiras, trabalhos comuns, atividades esportivas ou culturais lúdicas.
Pela nossa formação e experiência conhecemos principalmente os sistemas de energia. Sabemos como a sociedade atual é dependente dela. Qualquer descontinuidade poderá causar a morte de milhões de pessoas mas, em contrapartida, fará com que os sobreviventes pensem um pouco, retornem às lutas e sonhos antigos e revejam valores. A evolução humana permitiu um maior desenvolvimento de suas inteligências. Elas agora precisam de um novo padrão de motivação para uma reconstrução mais saudável.

- Gente, o principal é não nos perdermos e, cedo ou tarde, chegarmos à nossa meta, ou seja, devolver à Humanidade condições para uma vida livre, pensante, decente. Precisamos ser competentes e não perdermos o objetivo principal, ou seja, encontrar um caminho que devolva a dignidade à vida humana. Não é nosso objetivo destruí-la. Estudamos a hipótese de adoção de formas violentas mas as conseqüências são imprevisíveis. Não havendo alternativas, seguiremos o caminho sugerido pelo Joel. Talvez com maior conhecimento de detalhes da estrutura tecnológica de dominação possamos atuar com um mínimo de agressões.
Devemos observar com atenção a epidemia que parece desenvolver-se na Ásia. Talvez a Natureza esteja nos ouvindo e tenha decidido conter nossos excessos ou o Grande Arquiteto esteja revendo seus projetos.

- É, e os religiosos começarão séries infinitas de rituais e pregações de bajulação a seus deuses.

- Como assim Joel?

- O que é uma religião? Não é uma sociedade organizada de bajulação a um ser superior? Normalmente os crentes esperam, agradando a Deus com rezas e rituais intermináveis, compensar suas falhas mais do que prazeirosas e voluntárias.

_ Já disseram que as religiões são o ópio do povo. Talvez elas sejam absolutamente necessárias àqueles que não têm coragem ou inteligência para entender a simples existência de um ser superior, do que poderíamos denominar "o Grande Arquiteto do Universo". Nas mentes simples ou apenas oportunistas da imensa maioria das pessoas Deus é uma muleta extremamente oportuna, quando alguma desgraça ou disputa acontece. É divertido ver como acreditam que repetindo frases e poses esperam conquistar a simpatia de um ser superior. A verdade é que o fanatismo e a alienação de muitas religiões já causou imensos sofrimentos à Humanidade.

Maria intervém:
- E se não acreditassem em Deus e não tivessem suas religiões? Sacerdotes, templos e bíblias tiraram a Humanidade de seu estado selvagem primitivo, criaram condições para uma vida em sociedade sem a presença de soldados ao lado de cada indivíduo. Anjos e demônios substituíram exércitos no disciplinamento de multidões.

Joel intervém:
- Agora ajudam a escravizar...

Coloco um ponto final em um debate que poderia ter consumido muito tempo. Precisamos discutir  detalhes de ações que, imagino, possam ser o começo desse processo de transformação. Ações que poderiam ser violentas mas estritamente dentro do mínimo necessário. Já me disseram que todo revolucionário pensa desta forma. Talvez estivessem brincando mas a verdade é que algo precisa ser feito. Entendo que a violência é um direito daqueles que lutam pelo bem da Humanidade.

Saíram cada qual para seu lado. Permaneço com alguns companheiros mais técnicos. Especialistas eletrônicos, a maioria deles, perceberam em suas atividades profissionais que certos recursos estavam criando condições de dominação acima da média. Eles próprios, inteligência superior à da grande maioria da Humanidade, conscientizaram - se da importância de mudanças de rumo.
Estranho foi a formação deste grupo. Atuando em nossos projetos, encontramo-nos em um grande seminário. A tecnologia era o tema maior. A política surgiu por descuido. Meu discurso, após uma noitada de estimulantes, assustou. Comecei a denunciar o progresso e a propor mudanças radicais. A maioria não deu atenção ao que eu falava. Maria, contudo, talvez até em razão de ter sido minha amante,  registrou cuidadosamente minhas observações e elas foram o pretexto para novas conversas.
O amor sexual transformou-se em paixão política. A cama é uma boa escola. Juntos procuramos mais aliados. O grupo foi crescendo lentamente. Após alguns anos de cautelosa seleção e envolvimento o Grupo Mundo Novo tomou forma. Pessoas ainda idealistas uniram-se a nós. Passar da teoria para a prática é o desafio maior.
Maria já não é minha companheira de cama e mesa; continua, entretanto, presa a nossos ideais. Em seus conflitos segue linha própria. Seus sentimentos femininos marcam suas propostas. Minha preocupação é unir pessoas tão inteligentes e com um potencial tão grande, para o bem e para o mal. E Maria é um vulcão que ilumina caminhos. Ela tem me ajudado muito com sua capacidade de liderança, comando que só era chato quando ela pretendia me governar...




13.        Banqueiros discutem depósitos


A reunião dos banqueiros prossegue há dias. A questão de como garantir a sobrevivência dos arquivos mais antigos não converge. Todas as hipóteses testadas deram resultados muito ruins. A substituição de certas peças é difícil e há milhões delas nesse estágio. São componentes com metais nobres, cada vez mais raros. E sobre tudo paira a lembrança de que parte desses arquivos é totalmente improdutiva.
Agravando a situação vem a constatação de que este período glacial é para valer. As geleiras avançam destruindo cidades e empurrando multidões para as antigas regiões tropicais. As cidades nessas regiões crescem sem parar.
O frio, por sua vez, poderá ser um aliado na conservação dos depósitos. O tempo para reversão do processo talvez traga outra solução.
Enquanto isto os banqueiros discutem como obter mais recursos. A idéia de cortar despesas, contudo, é forte e começa a ser considerada nas simulações.
Tendo agora capacidade para compreender a violência de suas decisões, esses banqueiros, outrora frias máquinas, percebem a dificuldade ética das decisões que provavelmente tomariam.
Os elementos depositados nos arquivos estavam sujeitos a desligamentos desde o momento do depósito. Até assinaram, antes, documentos em que reconheciam esta condição. A expectativa de prazeres fáceis, entretanto, superou o medo e todas as demais restrições. Outros simplesmente não tinham opção. Ou aceitavam ou desapareceriam.
Mas os banqueiros agora têm sentimentos, procuram, de todas as formas, alternativas para sustentação das centenas de milhões de unidades depositadas.
Precisam usar todo o potencial de seus cérebros. Querem encontrar alguma solução antes de acionar o Governo Central e seus ministros. Sabem que lá estão pessoas que há muito deixaram de sentir. Humanos mais frios que as máquinas que criaram.
E ainda para agravar a situação foram informados de que grupos de anarquistas, que fugiram ao controle do Governo Central, querem destruir os bancos. Para eles essas instituições são o símbolo de um mundo indesejável. Apesar de todos os benefícios para muitos, que entendem que o fim material deva ser evitado a qualquer custo, existem pessoas que acreditam na necessidade da morte para poderem migrar para outros mundos onde serão julgadas e premiadas ou penalizadas. Para outros morrer é um momento de passagem para uma vida melhor ou, simplesmente, de descanso. Um bom número de pessoas, entretanto, agarra-se à vida não importa como. Assim os banqueiros discutem como manter seus ativos e resistir a todas as pressões estabelecidas por líderes e liderados.
As hipóteses são colocadas. E a transferência de depósitos? É muito cara. Não há veículos suficientes. Onde instalar ? Segurança? Justamente nas regiões mais quentes os anarquistas têm mais liberdade. Podem viver fora dos ambientes protegidos e alimentar-se nas áreas abertas. Assim fogem das antenas, dos rastreadores e sistemas de influência eletrônica.
Nessas análises um membro da diretoria do Banco apresenta problemas. É imediatamente encaminhado para o grande hospital. Salas brancas, irrepreensivelmente limpas, autômatos de toda espécie e estoques de equipamentos incríveis estão permanentemente à disposição do comando do Banco. Lá dentro um outro diretor passa por um “check up” completo. Enquanto isso a diretoria, sem dois membros importantes, perde velocidade. A discussão e simulações demoram mais.
Do Governo Central chegam mensagens.
A ordem é cortar despesas. Planejadores da nova equipe de gerência do Governo Central querem aplicar uma política de austeridade. As perspectivas são ruins. O resfriamento implacável da Terra, aliado à falta de energia, exige ações drásticas e redirecionamento de investimentos.

Diante da diretoria do WIB, Thomas, representante do Governo Central, coloca suas teses:
- O Presidente determinou redução de despesas. Estamos gastando muito na reconstrução de cidades e deslocamento de pessoas em direção a regiões mais quentes. Nossa prioridade é atender as pessoas normais, operativas.

John reage:
- O WIB tem contratos, compromissos que são sua razão de ser. Como alterar tudo sem prejudicar aqueles que confiaram em nossos propósitos?

Thomas insiste:
- A situação é muito grave. Não adianta respeitar contratos e processos antigos se por efeito desses propósitos viermos a perder tudo. Trouxe arquivos e programas para análise de vocês.

Álvaro, o diretor mais técnico do WIB levanta-se, pega os módulos e os coloca nas gavetas para processamento.
John retoma a palavra e começa a avaliar as possíveis reações a medidas de contenção de despesas.
O povo é fácil de administrar. Os sistemas de controle eletrônicos induzem a população a agir de forma menos ativa. Há até a desconfiança, entre aqueles poucos que sabem da amplitude dos controles através deste recurso, de que o número anormalmente elevado de suicídios seja uma inspiração eletrônica.
Já não é segredo que a atividade sexual nos países mais desenvolvidos esteja sendo inibida de propósito. Por agradar formadores de opinião, é um projeto divulgado, defendido pelas autoridades. Os governos sempre procuram as soluções fáceis e esta tinha o apoio de religiões milenares. Seus sacerdotes defenderam entusiasticamente as propostas de menos relações sexuais. O céu ficava garantido. O que poucos sabiam é que, mais eficientemente que as campanhas e discursos de igrejas, os sistemas eletrônicos de influência (SEI) têm esta programação e efetivamente agem inibindo a sexualidade, dirigindo a libido para outros áreas de interesse da MEI.
As elites vivem como sempre viveram, usufruindo da economia feita sobre os mais produtivos. Sabem como escapar e neutralizar os inúmeros controles, assim nada impede que tenham uma vida de  fazer inveja a muitos reis. A grande dúvida é se realmente são felizes. A vida alucinante que levam esgota sentimentos e sensibilidades. Fragilizados diante da Natureza, assustam-se ao perceber os desafios gerados por um Universo muito maior que suas insignificâncias. Incapazes de se respeitarem, acabam desprezando a si mesmos. Nas facilidades em que vivem, perdem forças. Sentem a pressão das mudanças. A infelicidade não é difícil de perceber em muitos rostos. A Terra muda rapidamente.
Muitos decidem desligar-se da vida normal, ligar-se aos bancos e “viverem” dentro dos padrões estabelecidos em discussões seculares. O problema é como entrar nos arquivos, se inteiros ou parcialmente.
O acesso aos bancos, desde que foram inventados há poucos séculos, é algo polêmico. Os bancos já foram considerados pecado, crimes contra certas religiões.
É interessante notar que muitas seitas organizadas, que antes condenavam tal atividade, agora têm seus próprios bancos. Assim podem administrar seus depósitos de acordo com seus critérios. Demoraram para entender esta possibilidade.
Agora, entretanto, é momento de racionalizar serviços, cortar despesas e rever prioridades.


14.         Marta


Que saudades de Marta. Era uma pessoa otimista, corajosa. Ajudou-me muito. Em momentos difíceis ela me encorajava. Era a companheira, o estímulo para o passo seguinte. Não era fisicamente bonita mas envolveu-me por muito tempo. Vivemos momentos maravilhosos. Quem disse que somos fortes? Sem uma companheira sentimo-nos iguais a vira latas, cachorros que diziam existir nas ruas das cidades antigas, ainda freqüentes nos países mais atrasados. Não luta, come lixo, vive de qualquer jeito. Elas são nossa bússola. Ruins, muitas vezes perdidas, mas ponteiros que nos dão alguma indicação de rumo.
Quantas mulheres um homem poderá ter? Por quê homem e mulher deveriam se limitar a um par? O Mundo avança mas certos critérios de três mil anos passados continuam dominando nossa cultura. Que inferno. Tivemos excessos. O amor livre era tudo menos amor. O amor pode ser "não livre"? Deve ser restritivo? Em nossa época química e eletrônica fica difícil até saber o que é o amor. Talvez eu esteja em ambiente privilegiado. Sei, mas se algo conheci foi o amor. É fantástico ter alguém que lhe quer junto, que deseja seus lábios, que lhe procura pelo prazer do contato, da voz, do cheiro, do calor, que simplesmente gosta de você.
A rotina faz esquecer. O desejo da novidade embrutece, afasta, estiola sentimentos. Marta foi sendo perdida ao longo de um tempo de rotinas, de encontros estereotipados. Flor sem qualquer fertilizante, terra cansada, definhou e afastou-se. Agora, mais do que nunca, sinto sua falta. O pesadelo das novidades, das crises, exige um apoio otimista. Ela se foi, contudo. Nesse Universo imenso, quem sabe onde estarão amores tão perdidos?


15.         A epidemia


Países menos desenvolvidos vivem a eterna miséria material e humana. Perderam a oportunidade de serem independentes, enfraqueceram-se diante dos mais ricos. Escravos dos esquemas de poder das nações mais poderosas, tornaram-se produtores de matéria prima e artigos de alta densidade de mão de obra. Com a automatização das indústrias, a miséria consolidou-se. A superpopulação e o atraso intelectual criaram cenários terríveis há muitos séculos, cenários que só pioram.
O sul da Ásia explode de miséria e gente. Grande parte de seu povo, preso atavicamente a religiões milenares e resistentes a mudanças essenciais de hábitos, vive em condições de promiscuidade, subnutrição e alienação incríveis. Alimentos sintéticos são rejeitados. Propostas de planejamento familiar esbarram na ignorância. A terra exaurida pouco acrescenta a seus pratos. Toda a tecnologia é insuficiente para produzir os alimentos necessários. Mesmo os espaços ganhos ao mar pela diminuição do nível dos oceanos não têm acrescentado o suficiente para uma geração de alimentos capaz de sustentar um povo tão numeroso.
O frio é outro problema grave neste continente. Grandes territórios agora estão cobertos por geleiras improdutivas. As terras ganhas com o rebaixamento dos oceanos não compensa as imensas áreas cada dia maiores esterilizadas pelo frio. As conexões desse continente com o norte da África, grande área geradora de energia, são precárias. Depende muito, demais, da geração de energia nuclear em usinas já antigas.
Uma epidemia dá seus primeiros sinais. De uma maneira estranha milhares de pessoas começaram a morrer. Cidades foram cercadas. Cordões de isolamento procuram impedir a saída dos sobreviventes. Do mundo inteiro cientistas chegam para analisar as causas dessa praga e discutir soluções. Infelizmente a velocidade de propagação é maior que a inteligência desses senhores. O problema é que muitos desses especialistas já morreram mesmo com os cuidados estabelecidos e utilizados em experiências anteriores. Estranhamente uma pequeníssima parcela da população não é atingida pela doença. Diante das imagens violentas da morte, contudo, a maioria enlouquece ou foge para os lugares mais isolados.
Como controlar multidões? Como evitar a disseminação de uma doença desconhecida e tão veloz?
Os dirigentes desses países parecem não se preocuparem muito. Vêm do pesadelo da sustentação de seu povo. Na esperança de encontrarem uma solução, entendem que as mortes verificadas talvez abram espaço para uma  nova civilização. Mas a tão esperada cura não aparece e eles próprios começam a perceber que poderão estar na lista dos mortos por essa praga...
As classes mais ricas estão mandando suas famílias para lugares mais seguros. Antes que as fronteiras sejam bloqueadas milhares de pessoas partirão para lugares mais tranqüilos. E nessas viagens provavelmente levando a doença para mais longe.

Por enquanto seus arquivos estão seguros. O World Intelligence Bank oferece seus serviços garantindo um padrão internacional. Mesmo sem assistência direta o banco consegue operar por um bom tempo desassistido, desde que tenha estoque de certos materiais e abastecimento de energia. Os gerentes determinam o isolamento de suas agências. Seus clientes não gostam. A dificuldade para muitos é afastar-se de seus depósitos. Neles existe a esperança de um retorno querido. Um retorno melhor, em condições muito diferentes dos existentes no momento da aplicação. Mesmo sabendo que toda a tecnologia dá um amparo razoável, não é fácil para aquela gente, tão apegada a suas tradições, abandonar seus entes queridos. O MBI gerou novos hábitos, criou esperanças de sobrevivência, e agora?
O crédito conquistado pelos banqueiros teve no passado momentos de grande dificuldade. Muito foi perdido como resultado da aplicação de teorias erradas e displicência dos controladores. Aos poucos o MBI ganhou tecnologia de comunicação e qualidade na própria mídia. Todos os recursos possíveis e imagináveis foram usados para cativar clientes. E o treinamento dos gerentes, o aprimoramento deles ajustando-os para todo tipo de ambiente foi um desafio vencido pelos especialistas. É importante lembrar que as grandes empresas multinacionais esperam desenvolver produtos a partir do aproveitamento dos estoques do MBI. No início falharam no controle de suas agências principalmente por efeito de diretrizes equivocadas, diretores mal preparados. Os novos banqueiros diretores, contudo, eram tudo o que se imaginava de padrão de qualidade. Essa epidemia, contudo, é algo que estava fora de programação. Os agentes precisam de mais instruções, melhores comandos, que confusão!

E a epidemia ameaça contaminar outras regiões. Nas áreas atingidas o pesadelo é indescritível. Pessoas mortas e conservadas pelo frio, mortas em suas camas e casebres, permanecem quase mumificadas, secando gradualmente.
O pânico atinge milhões de pessoas. Os líderes espirituais mais convictos divulgam explicações incríveis para as causas do problema. Em muitos casos até ajudam a manter a ordem. À medida que as pessoas se resignam e aceitam com mais tranqüilidade a hipótese de uma desgraça, diminuem os riscos de violência e excessos típicos de multidões descontroladas. Em outros lugares a violência se instala pois seus líderes espirituais apontam “pecadores” como responsáveis pela vingança divina. Inquisições renascem por algum tempo em cidades e vilas mais atrasadas, linchamentos de pessoas que apresentam qualquer detalhe que lhes pareça desagradar aos deuses é rotina. E a violência dura até que a vontade de Deus determine a morte dos inquisidores.
Nos países mais desenvolvidos o medo desta epidemia aciona governos e lideranças de toda espécie. A doença começa a preocupar seriamente as autoridades. Os bloqueios são instalados e as discussões em cima dos relatórios dos melhores especialistas ganham força.
Lideranças políticas surgem propondo ações de toda espécie. Os sistemas SEI foram acionados para inibir reações piores. Parece que começam a ter efeito sobre o comportamento da maioria. Nada resiste à tecnologia e às propostas religiosas quando unidas para controlar o povo. E muitas religiões entendem que finalmente o apocalipse chegaria, que Deus surgiria das nuvens para receber os melhores  etc. Outras versões para o fim do mundo começaram a ser apresentadas.
E na Ásia a doença progride com uma severidade implacável.


16.        Os banqueiros discutem a redução de custos


Os banqueiros continuam a discutir seus problemas. Indiferentes à tragédia asiática, mais preocupados com os sabotadores, procuram formas de manter seus arquivos. Discute-se a hipótese de falta de condições de preservá-los diante da carência de energia. E essas discussões geram, automaticamente, infinitos cálculos, simulações incríveis. Pode-se dizer que nada lhes escapa.
A austeridade pretendida significará não reforçar sistemas de transmissão de energia. Inúmeros fatores, em especial a necessidade de encontrar outras rotas e vencer obstáculos técnicos conseqüentes da queda gradativa de temperatura, estão inviabilizando instalações antigas e tornando as novas muito complexas e caras. Todos os esforços de pesquisa e desenvolvimento técnico e industrial não impedem o encarecimento crescente de qualquer obra de infra-estrutura.
Os volumes de energia a transportar são imensos. A energia elétrica é agora a principal base para a sobrevivência da Humanidade. O frio gigantesco, o esgotamento dos combustíveis e os problemas ainda não resolvidos de fontes de energia mais potentes fazem com que a energia solar, transformada em elétrica pelas células fotovoltaicas, seja a mais abundante no uso comum e a que oferece mais segurança. Lamentavelmente as áreas mais ensolaradas estão muito distantes das maiores civilizações. As grandes cidades precisam de muita energia e a faixa tropical está muito longe, com raras exceções.
O saudoso petróleo agora é insuficiente até para as aplicações mais nobres. O plástico, que a princípio tinha alternativas vegetais, até isso perdeu com a necessidade de transformar qualquer coisa em alimento. Nossa prioridade é calor, precisamos de combustíveis para sustentar imensas regiões. Sempre imaginaram poder usar o petróleo indefinidamente mas as guerras do início desse milênio e o domínio político das maiores reservas atuais impedem o uso adequado.
E os radicais daquelas regiões não precisam de dinheiro, basta-lhes a lealdade de seus povos. O que temos de combustíveis fósseis está com este compromisso, ou seja, compensar as mudanças ambientais, o frio. Apesar do efeito poluidor são indispensáveis. O efeito estufa, tão combatido antigamente, era positivo à medida que protelou o início deste período glacial. Ele ajudou durante um certo tempo, agora, infelizmente a temperatura cai sem que possamos impedi-lo.
As centrais atômicas dão suas contribuições mas os riscos crescem à medida que o frio atua nas estruturas das centrais mais antigas, como desativá-las?

E John coloca a questão;
- O que desligaremos primeiro se não tivermos condições de sustentar nossos arquivos? A questão a ser simulada matematicamente é descobrir qual é a menor perda, como otimizar os recursos existentes, e, dentro desses programas, quais são as prioridades.
Temos arquivos imensos. Alguns, absolutamente inúteis, usam recursos valiosos. Outros contribuem. Estão no circuito produtivo. Parte deles, contudo, não tem capacidade para oferecer algo significativo. Artificialmente já temos muito conhecimento acumulado.
De qualquer forma os riscos de descontinuidade aumentam diariamente. Existem, tecnicamente, alternativas energéticas, mas são caras e de instalação demorada. Nenhum grupo empresarial interessou-se pela exploração delas. Os lucros seriam muito pequenos.
Temos sentimentos e capacidade de avaliar eticamente esses problemas. Assim nos fizeram após muitas pesquisas. Agora podemos dizer que vivemos. As decisões ficaram mais difíceis. Era fácil ser banqueiro quando não tínhamos essa capacidade.
De qualquer forma vamos estabelecer plano de redução de despesas, considerando, inclusive, a desativação de alguns depósitos. Poderemos transformá-los em “arquivo morto”. No futuro talvez possamos reativá-los.  Assim devemos estudar quem, quando, como, onde, quanto e a que custo faremos as mudanças. Nas atuais perspectivas verificamos não haver outra alternativa a curto prazo.

Álvaro faz seus alertas:
- A desativação de qualquer arquivo exigirá medidas sanitárias, cuidados especiais de destruição dos depósitos. Talvez venhamos a gastar mais inibindo-os do que mantendo-os. Precisamos estudar cuidadosamente como fazê-lo. Qualquer descuido será terrível. O ideal será começar pelos mais próximos das geleiras, das regiões mais frias.

John intervém:
- Acontece que exatamente esses são os mais importantes. Pertencem aos grupos humanos mais ricos, poderosos. Essa é uma questão muito séria, precisamos avaliá-la com profundidade. Quero que nosso diretor de relações públicas desenvolva uma estratégia minuciosa de mídia e convencimento popular sobre o que fatalmente acontecerá.



17.        Júlia


Júlia brinca em um quarto no centésimo vigésimo andar de um prédio de aço no centro de Miami. As paredes eletrônicas, telas de sistemas de comunicação e de quadros de jogos e desenhos são sua maior distração. As praias raramente são visitadas. A superpopulação exige escalas e a poluição é um problema. Freqüentemente estão impraticáveis. As pessoas, de tanto viverem segregadas, já não têm defesas naturais suficientes para resistir aos problemas ambientais. Precisam de proteções até porque o ar contém elementos químicos perigosos, precisando de filtragem. Os adultos, mais resistentes, têm maior liberdade nessas grandes cidades americanas. As brincadeiras de povos distantes agora são impossíveis.
Criança de um povo sem crianças, vive a infância de uma vida que lhe dará, quando muito, alguns controles, telas e compromissos que lhe estabelecerão as grandes empresas.
Nasceu em um mundo que não sabe mais o que é liberdade, pelo menos ali, império da tecnologia a serviço não se sabe mais de quem.
Júlia brinca esperando a hora para se deitar sob luzes, que lhe compensarão a falta de Sol.
Sua mãe se prepara para encaminhá - la a um hospital. É hora de implantar dispositivos em seu corpo que ela mal conhece. No processo a que se submeteu para engravidar concordara em aceitar recomendações dessa espécie.
Assim como seus pais e avós, ela entende que é sua obrigação seguir os costumes de seu povo. Afinal a igreja de que participa enaltece permanentemente as maravilhas dessa civilização bem comportada. Graças à tecnologia os fiéis já não pecam, seguem disciplinadamente as leis do Senhor. A felicidade é total, as pessoas vivem mostrando sorrisos. Ninguém reclama de nada.
Os povos dos Estados Unidos das Américas têm um apreço muito grande às religiões originárias do Oriente Médio. Assim a população ainda se divide entre as três linhas tradicionais: cristã, judaica e muçulmana. Todas elas pregando muito puritanismo, rigor sexual e, até há alguns anos antes, filhos. Agora toleram o controle da fertilidade, restrições à procriação. Mais rigoroso, resistindo a pressões de seus sacerdotes, o Governo Central desenvolve um plano de reprodução otimizada. Aqueles que se submetem a este programa têm uma série atraente de benefícios. Ana faz parte deste processo.
E Ana, a mãe de Júlia, teve uma gravidez perfeita.
O pai de Júlia, foi decisão de um sistema complexo. O plano de manutenção da espécie humana, de caráter multinacional e sob a liderança dos Estados Unidos das Américas,  operando nos países mais desenvolvidos e, portanto, preocupados com a saturação ambiental, estabeleceu um número muito pequeno de nascimentos para aquele ano. É muito importante otimizá-lo. Assim o pai veio de uma seleção enorme. Seu esperma, devidamente analisado, foi introduzido em Ana com muito cuidado. Assim Júlia é uma bela menina, inteligente, bem comportada, sem qualquer traço de agressividade.
O implante que será feito em Júlia é um recurso que se mostrou muito mais eficiente que outros menos diretos. O problema tem sido induzir as pessoas a fazê-lo. A mãe de Júlia está controlada, aceita sem maiores resistências as orientações do Centro de Vigilância Demográfica. O comando central quer, entretanto, ampliar este recurso de dominação. Propagandas constantes e promessas de todo tipo são apresentadas. Gradativamente as pessoas estão aceitando e mergulhando neste novo mundo de absoluto controle.

Impressionante como os seres humanos se deixam dirigir. A inteligência é algo de uso restrito. As necessidades básicas dos indivíduos dominam suas preocupações. Os esportes e diversões de toda espécie desviam-nos das questões principais, acima das mais elementares. Sacerdotes, capitalistas, lideranças sempre existiram porque é mais fácil delegar decisões. A responsabilidade incomoda. A vida parece melhor se apenas lúdica. Assim o ser humano comum procura quem lhes diga o que fazer...
As religiões propõem disciplina e obediência total a seus livros sagrados. Capitalistas propõem a liberdade do prazer. Esses dois grupos se completam. Quem não se enquadra ao primeiro modelo adere ao outro acreditando, muitas vezes,  ser um rebelde.  Usando ao limite suas fantasias afastam-se da realidade, que lhes escapa sem maiores traumas aparentes.
E Júlia brinca. Sentadinha em um tapete manuseia sua pequena boneca. Sua vozinha de criança cria um ambiente infantil, frágil. Seus brinquedos, típicos de toda menina, espalham-se pela saleta. Naquele mundinho ela imagina salões, florestas e bichinhos que nunca viu.
Ana a observa um pouco preocupada. Seu instinto maternal lhe diz que algo está errado. Seus pensamentos, contudo, sempre voltam a convergir para a idéia do implante. Preocupa-a menos a instalação daquele minúsculo aparelho do que o risco de uma inflamação, alguma espécie de rejeição. Ela sabe que há algum perigo e isto a incomoda. De qualquer modo, em sua visão feminina, quer segurança para sua filha. E, assim procedendo, acredita que lhe dará benefícios maiores. O preço não percebe, afinal, quem fala em filosofia, ética, liberdade intelectual neste mundo em que vive?


18.        Em uma ilha


No meio do Pacífico pessoas vivem felizes com seus problemas. A temperatura baixa agora exige roupas, quando antigamente calções eram suficientes. Ilhas pobres, não despertaram interesse maior. Há muitos séculos eram pólos turísticos. Nessa época chegaram a ter um padrão consumista, integrado ao grande mercado mundial. Com as restrições ecológicas, ambientalistas, políticas e energéticas voltaram a isolar-se. Religiões e hábitos antigos ocuparam espaços antes dominados pela cultura ocidental.
No isolamento de suas vidas voltaram à pesca, plantações, tristezas e prazeres já esquecidos pelos povos mais desenvolvidos.
Para os cientistas essas ilhas devem permanecer como laboratórios, testemunhos de épocas antigas. Isolando-as sustentarão padrões e bancos genéticos a serem aproveitados no futuro. Assim como as famosas reservas indígenas, pouco mais são que gaiolas em um grande zoológico. Mantidas nessa condição artificial para a curiosidade de alguns estudiosos e expectativas de ganhos materiais em momentos oportunos, são também objeto de pesquisas de entidades mais sérias, ligadas à ONU. São cobaias para avaliação dos efeitos da mudança ambiental em progressão, são diversos.
A Terra nesses últimos séculos passou por transformações aceleradas. Paralelamente, os efeitos dessas mudanças em grandes cidades, campos cultivados, instalações de geração de energia, regularização de rios e outros ambientes críticos algumas vezes produziram acidentes monumentais, afetando a vida de imensas populações. O óbvio também aconteceu como a quase extinção da camada de ozônio e as transformações na fauna e flora por efeitos químicos e radioativos. Muitos depósitos submarinos de rejeitos radiativos romperam-se, criando áreas de mutações genéticas que têm surpreendido os cientistas.
Interessa aos técnicos também observar a capacidade de sobrevivência do ser humano em diversas alternativas de composição de ar, radiatividade, poluição química etc. Essas ilhas ainda possuem condições naturais bem conservadas, servindo de referência de padrões antigos. Por diversas razões ficaram longe de grandes acidentes ecológicos e ambientais. A fauna e flora também apresentam padrões antigos, o que é extremamente importante para o futuro da Humanidade. Comparando-se o passado com o presente torna-se mais fácil prever o futuro.
Outro aspecto que os cientistas acompanham é a evolução dessas ilhas com a diminuição do nível dos oceanos pelo aumento das geleiras. Algumas delas aumentaram substancialmente de tamanho, outras uniram-se formando conjuntos maiores e espetaculares. As novas terras transformam-se produzindo novas condições para plantas, peixes e animais terrestres. Nesses locais o efeito é particularmente sensível onde, antes, grandes corais e bacias sedimentares existiam a pouca profundidade.
O lado positivo deste processo de isolamento foi estarem longe dos sistemas de controle comportamental convencional, ou seja, das civilizações mais desenvolvidas. O negativo é que se tornaram perigosos para as classes dominantes dos países ricos. O fim do turismo teve este benefício para as elites dominantes. Os visitantes questionavam-se quando observavam como outros viviam. Pessoas aparentemente mais atrasadas eram mais felizes, saudáveis. Subversivos, foram mais e mais isolados pelos que os governavam de longe.
Em suas ilhas e sem remédios e outros recursos a população local mantém-se em níveis compatíveis com os recursos existentes. A tristeza das mortes freqüentes é compensada pelos nascimentos, pelo amor produtivo, fértil. Vivem o que a Natureza lhes permite e o tempo necessário para serem felizes, terem descendentes e se prepararem para a morte. Morte que vem, dentro de suas religiões, como uma passagem para uma vida ainda melhor. Assim não é raro os moribundos darem sinais de felicidade diante do fim próximo. Os enterros são, então, festivos. Os falecimentos saudados como um degrau na escala de aperfeiçoamento rumo à felicidade eterna.
O castigo para os menos perfeitos seria renascerem neste mundo. E assim o fariam até atingirem um grau maior de perfeição, quando migrariam para outro mundo. A influência da cultura indu é forte.
Aquele povo praticamente abandonou o cristianismo. No isolamento imposto pelas lideranças mundiais e até na conveniência delas, retornaram a suas religiões antigas. Não totalmente. Tiveram a sabedoria de aprimorá-las. A idéia da reencarnação e da progressão para um mundo melhor foi uma das "seqüelas" culturais do convívio com os ocidentais e orientais mais próximos. O resultado foi desenvolverem uma seita religiosa com poucos sacerdotes e muita felicidade. Sem as promessas brutais de castigo mas, cultivando inteligentemente o fascínio por uma vida melhor, conseguiram estabelecer limitações éticas e comportamentos saudáveis. Talvez muito disso tenha sido a conseqüência da convivência com alguns filósofos que ali se instalaram em séculos passados. Uma geração de pensadores mudou-se para aquelas ilhas na preocupação de fugir de um mundo mais e mais alienado e hostil a quem pensava. Junto com a população local estruturaram idéias que agora são a base filosófica desse povo.

Marcos é um pescador. Inteligente e saudável, mostra bem como os habitantes daquelas ilhas venceram mil dificuldades. Sua vida é uma alternância de dias sobre ondas em um barco antigo, feito com a melhor madeira de suas ilhas, e o barraco onde encontra sua esposa, Ângela, para juntos manterem uma existência de amor e lutas pela sobrevivência. Nem sempre a pescaria é suficiente para o sustento de um time pequeno mas dependente de alimentos para sobreviver, como qualquer ser humano. As dificuldades são superadas com criatividade e paciência. Respeitando a Natureza, dela tiram o suficiente para uma existência digna.
Nessas ilhas a única distração externa possível é ouvirem transmissões musicais de alguns países mais distantes. Era impossível impedir que isto acontecesse. Afinal o rádio sempre permitiu que as pessoas furassem barreiras. A língua desses povos distantes está fora da compreensão da grande maioria da população mas as músicas e sons sempre foram um padrão de contato mantido com prazer.
Ouvindo pequenos rádios, percebem que algo estranho acontece em um país não muito distante. As músicas são interrompidas freqüentemente com mensagens que eles não entendem. A língua falada por aquele povo é muito diferente da que usam no arquipélago em que Marcos e Ângela têm raízes milenares.
A música, entretanto, agrada-lhes muito. Assim, com muito pesar, notam que mudaram de tom.
Marcos comenta:
- Que pena, o som dessas rádios é estranho. Parece que algo de ruim está acontecendo muito longe. A alegria não existe, só tristeza. Alguma coisa não está bem.
Há dias que a programação normal não acontece. Quando alguém fala, sente-se que se expressa de forma dramática.
- Você tem razão. Sinto que algo de muito ruim está acontecendo. É bom agradecermos aos deuses não estarmos por lá.
- Em breve deveremos fazer contato com o pessoal da base. Aí poderemos descobrir alguma coisa.
- E a pescaria?
- Foi fraca. Os peixes diminuem de tamanho a cada ano. Os melhores já não aparecem. Precisamos rezar muito. Nossas plantações são pequenas e há muita gente com fome nesta ilha. Temo pelo futuro de nossos filhos. Felizmente são saudáveis e não nos incomodam.
- Querido, você está aqui. Teremos uma bela noite. Ouça o som das ondas e a cor dessas águas. Nossos filhos viverão e serão felizes. Talvez tenham problemas mas, com certeza, estarão respirando, tocando, sentindo a própria Natureza.
- Nossos ancestrais decidiram viver aqui. Muito tempo já se passou. Vivemos isolados. Nossas ligações com o resto do mundo são pequenas. Aqui não temos muitas facilidades lá de fora. Apenas vivemos como podemos. Sobrevivem os mais fortes.  Nosso futuro depende das águas deste imenso mar. Mas existimos. Conversamos, rezamos. Eu quero você, estou a seu lado. Nós nos sentimos de mil maneiras. Simplesmente vivos, sem sons e imagens artificiais. Apenas somos.

Marcos, pensativo,  relata seu dia no mar:
- O céu estava azul e confundia-se com o oceano. Pequenas ondas não me deixavam esquecer que estava montado em um barquinho. A brisa aumentava o frio. Está ficando difícil agüentar sem muita roupa, o que não combina com a água. Voltando para a praia a vista estava muito bonita. Os coqueiros e as dunas formavam um traço lindo. Eu só pensava em você, em chegar logo em casa. Teremos Lua cheia, logo que jantarmos vamos para a praia, será uma noite muito bonita. O céu limpo mostrará as constelações que mais gosto, em terra terei minha estrela mais querida...
Abraçando Ângela, beija-a com ternura. Naquele mundinho, a vida de um casal é muito. No sentimento de companheirismo, o amor aparece facilmente.

A noite se aproxima com as luzes de milhares de estrelas. A Lua nasce mostrando-se brilhante e inspiradora de paixões. Vaidosa, com seu brilho esconde muita estrela. Rainha da noite só aceita as mais brilhantes ao lado.
Ângela abraça Marcos enquanto seguem para a praia. Junto ao mar os dois têm inúmeras recordações e lá o amor ganha estímulos, que farão da noite um momento de longo prazer.

Não resisto e comento:
- Vocês estão vendo um casal de animais felizes, denominados gente. Seus rostos mostram alegria, felicidade, amor. A inteligência dá-lhes traços definidos. Suas expressões são lúcidas e lúdicas. E as nossas? A maioria absoluta de nosso povo parece imbecilizado. Alegres? Sim, mas idiotas. O prazer é regra com todo tipo de artifício. A Humanidade está se transformando numa massa disforme, sem graça.
 Vejam como se amam, vivem.
Selvagens ou inteligentes? O que o progresso tecnológico nos propiciou? Peças de engrenagem de máquinas imensas? Precisamos desenvolver nossas análises. Temos condições de avançar. Temos condições excepcionais.
Como a Humanidade deverá evoluir?


19.        Reunião dos planejadores do projeto “Vida Básica”


Convoquei uma reunião com os gerentes dos diversos subprogramas do Projeto Vida Básica para uma análise dos riscos de contágio da epidemia asiática sobre algumas das comunidades sob nosso controle.
- Senhores, há sérios indícios de estarmos diante de uma epidemia extremamente letal. Os relatórios das regiões atingidas é assustador. Precisamos analisar cada ambiente sob nossa responsabilidade e tomar providências, quando possível, para evitar maiores contatos com os povos em condição de risco. Quero de cada setor uma análise minuciosa da possibilidade de contágio e indicação de medidas de isolamento maior.
As comunidades isoladas poderão vir a ser a base de um repovoamento de muitos países em processo de destruição pela doença. A questão seria acompanharmos os estudos dos especialistas, que estão pesquisando causas e efeitos deste fenômeno, para podermos ter idéia de quanto tempo será necessário para um processo de esgotamento da epidemia e de que forma aproveitaríamos esse estoque genético em um repovoamento desses países. Infelizmente a contaminação dos grandes continentes parece inevitável.
Talvez possamos viabilizar o renascimento da Humanidade graças ao estoque de gente existente em nossas reservas. Controlamos comunidades isoladas de diversas raças e culturas. Se tiverem sorte e escaparem do contágio intactas, estarão livres dos traumas que observamos nos sobreviventes desta epidemia. Precisaremos, também, de alguma forma encontrar uma vacina, algum produto que nos dê segurança. Assim como aconteceu com a gripe espanhola no século 20, agora em termos relativos muito menos gente mas alguns parece que estão sobrevivendo. Eles ou seus descendentes poderão ser a chave para o retorno de quem conseguir se isolar dessa epidemia. Somos cientistas, entre nós há especialistas de toda espécie. Precisamos rever nossos planos e estratégias.

Minhas palavras chocam alguns companheiros. Parecem, alguns deles, não acreditarem na possibilidade de serem, eles próprios, atingidos pela doença. Afinal vivem dentro de uma civilização altamente instrumentada e protegida, científica.
Mário, um indivíduo turrão, alto, gordo e dono da verdade faz declarações agressivas e pretensiosas.
- Esses cientistas são todos muito burros. Falta-lhes capacidade. Poderemos, nós mesmos, descobrir alguma solução. Infelizmente não nos dão recursos para este tipo de trabalho. Temos laboratórios e pessoas de altíssimo nível entre nós. Só precisamos de uma oportunidade para trabalhar.
Respondo-lhe:
- Felizmente não estamos neste barco; muitos cientistas, mal se aproximaram das regiões afetadas, morreram pela doença. Todos os cuidados tomados não foram suficientes. De qualquer forma alguns de nós talvez venham a colaborar com a solução para o que sobrar de nosso povo.
Joel comenta:
- Vemos agora os efeitos da alienação de muitas autoridades. Acreditavam estarem acima dos poderes da Natureza. Agora são incapazes de encontrar uma solução para uma epidemia que, a princípio, parecia ser apenas uma questão de tempo conter e extinguir.
- A verdade é que os bolsões de miséria transformaram-se em excelentes ambientes para o desenvolvimento de novas doenças. A má distribuição de renda a nível mundial e a absurda ignorância de alguns povos só poderiam levar a esta situação. Agora estão a caminho do extermínio, silenciosamente, sem armas e capacidade de resistência.

Vejo o debate estender-se a muitos aspectos de nossa ciência e cultura. Diante da tragédia as pessoas se revelam .
Alguns companheiros querem simplesmente que se abandone os trabalhos e o mais rapidamente possível cada um procure um lugar para se esconder. Outros propõem iniciarmos estudos em torno da doença. Um deles até veio com afirmações religiosas, dizendo simplesmente que deveríamos aceitar o que estava para acontecer como um desígnio divino.

- Lembro-lhes que estamos subordinados à ONU. Temos autonomia e a responsabilidade de manter determinados programas de interesse mundial. De qualquer modo a progressão desta epidemia deve ser acompanhada criteriosamente.
Olhando para Joel acrescento, vendo sua excitação:
- Tudo tem seu lado positivo. Talvez estejamos diante do fim de uma era e o início de outra fase da Humanidade.
Mário retruca irônico:
- Sim, a dos animais selvagens. O Paraíso antes do sexto dia.
Ao final da reunião, sob uma temperatura baixíssima, considerando que estávamos em Miami e a noite deverá chegar aos 20 graus negativos, saímos para conversar em minha sala. Nosso time, Joel, Maria e mais alguns companheiros ainda discutem um bocado quando entramos em meu gabinete, no momento em que informes mais detalhados aparecem na painel/parede mostrando dados do sul da Ásia.
Vemos, assustados, imagens da Índia que melhor teria sido não conhecê-las.

A tragédia não para aí. Uma queda de energia tinha causado imensos problemas à costa leste. As instalações do WIB em Los Angeles tinham sido bastante afetadas. As perdas eram significativas.
O sistema de geração e transmissão de energia daquela região teve interrupções severas. O frio intenso e algumas geleiras ao norte romperam linhas que levaram a um desequilíbrio energético e queda do sistema na área. A recomposição fora delicada pois procurou-se dar prioridade de abastecimento às áreas mais frias, mais dependentes de energia para sobreviverem. Salvaram o norte e causaram enormes prejuízos ao sul.


20.        As primeiras falhas graves no WIB


John alerta seus colegas para a informação de que uma grande unidade do Banco foi destruída. Por sobrecarga energética houve necessidade de reduzir o consumo de energia e a decisão tomada seguiu a lógica clássica, ou seja, abandonar o menos produtivo e mais antigo. A demora na recuperação do sistema foi longa, o suficiente para a destruição total da unidade C do Banco. A  perda dessa unidade, apesar de tudo, foi uma decisão difícil.
A preocupação é com as pessoas externas, interessadas nos depósitos. Os sistemas SEI foram acionados para diminuir o impacto. Na mídia a notícia padrão é a necessidade de austeridade, de redução do consumo. Tudo isso é muito bonito mas ninguém gosta de perder.
A questão energética mostrou uma de suas piores faces. Algo precisa ser feito para compensar a falta de investimentos em energia.
O Governo Central decidira investir mais em obras ornamentais. Monumentos, museus e livros foram feitos mostrando ao povo como seus chefes eram e são maravilhosos. Dentro do processo de dominação intelectual é muito importante este tipo de investimento. Cria imagens que as pessoas mais novas apreciam e, não tendo participado dos fatos históricos usados como temas desses ornamentos, aceitam-nos como apresentado.
A propaganda, arte milenar, é um assunto de altíssima eficácia. Independentemente dos meios subliminares de influência, é uma ciência aprimoradíssima. Assim os sistemas SEI e a mídia tornaram-se instrumento imprescindíveis aos governantes e demais detentores do poder.
Obras de infra-estrutura super dimensionadas e desnecessárias foram construídas, consumindo recursos importantes e gerando despesas permanentes. Elas também estavam dentro da preocupação de iludir o povo. As pessoas exigem imagens, movimento, mudanças. Grandes obras encantam a todos. As pirâmides do Egito são um bom exemplo. Toda a criatividade e recursos dos egípcios foram consumidos na construção daqueles sarcófagos gigantescos, cuja única utilidade real para a Humanidade foi servir de depósito de múmias, estátuas e outros objetos que, estudados, mostraram como o povo era iludido e escravizado. Na atualidade despertam a admiração das pessoas mais ingênuas. Elas esquecem que tudo aquilo significou uma perda monumental de tempo e recursos.
É bom que se diga que talvez para o ser humano daquela época, há milhares de anos,  mais selvagem, ignorante e carente de imagens simbólicas, o poder absoluto dos faraós e seus sacerdotes e generais fosse importante para distrair a população e a visualização daqueles monumentos ajudasse na  organização social. O grande desenvolvimento da Humanidade só aconteceu a partir da união estável de muitas pessoas onde a divisão de tarefas permitiu a alguns exercerem o raciocínio produtivo (e não em fantasias mortuárias ou de outro mundo), aplicando a inteligência em estudos que calçaram a estrada da Civilização.
Voltando a nossos problemas atuais, vamos pensar no passado recente. A energia, antes tão natural e fiel, não suscitava maior atenção. De tão tranqüila levou os planejadores a relaxarem, a aceitarem riscos maiores. E o que parecia impossível aconteceu. O resfriamento contínuo e rápido da Terra a limites inesperados e a necessidade exponencialmente crescente de mais e mais energia mostrou a inércia e incapacidade de tomada de decisões importantes, até porquê muitas obras exigem tempo para serem implementadas. Tempo precioso que agora mostra-se insuficiente.
Um aspecto delicado nas empresas, e as empresas de energia não são exceção, é o império dos chefes. Só tem emprego quem se ajusta perfeitamente às idéias do alto comando. As associações patronais unidas têm como norma não empregar pessoas que tenham sido demitidas por qualquer empresa associada. Assim mantém controle ideológico e harmonia filosófica entre seus funcionários. Dentro de suas fileiras, pessoas sem opinião, incapazes de qualquer reação, simplesmente cumprem ordens.
Na harmonia da covardia com a mediocridade perde-se qualidade. As empresas de energia, principalmente, vazias de indivíduos capazes de enfrentar diretrizes erradas, vivem sob um clima de falta de inteligência. E qual é a novidade? O Mundo sempre foi o reino dos mais fortes, devidamente cercados pelos bajuladores, alimentado pelos fracos. O problema é a falta de crítica, a perda de sensibilidade. Até os mais inteligentes erram.
Mas a queda do sistema deveu-se a um movimento inesperado de uma geleira, derrubando uma grande linha entre Montreal e Toronto. Sem alternativas o banco C foi desligado, destruindo milhões de células em poucas horas. A não existência de recursos de contingência foi desastrosa. Nos trópicos a energia é abundante mas nessas regiões mais frias uma série de restrições têm feito delas áreas supercríticas em termos energéticos. E é nelas que encontramos a base de nossa civilização ocidental. As cidades mais poderosas há pouco tempo agora estão mergulhando na neve e no gelo.
A polícia foi alertada para o risco de manifestações violentas por parte dos interessados nos depósitos.


21.        Discutindo prioridades


Surpreendentemente John coloca uma questão impensável até há pouco tempo. Mudar de atividade, de estratégia. O Banco poderia deixar de manter todos os depósitos improdutivos e trabalhar apenas com aqueles que estivessem contribuindo positivamente. Tal atitude, contudo, só poderá ser levada avante se o Conselho de Administração, os acionistas, aceitarem essa proposta. Eles têm os grandes SEI em ação e só eles poderão inibir reações negativas e induzir simpatia por uma decisão tão drástica. Afinal sempre existe a esperança de um dia se reviver alguns desses elementos depositados.
A situação internacional é muito grave, gravíssima. Todos os recursos necessários à pesquisa de uma solução devem ser utilizados. O MBI tem inúmeras cabeças privilegiadas. Elas precisariam ser organizadas, ajustadas ao novo desafio. O problema é que essa forma de trabalho ainda é recente, sem grandes sucessos. Não é fácil encontrar uma maneira de coordená-las. É preciso desenvolver sistemas de controle sofisticadíssimos. Por em paralelo tanta inteligência poderá gerar resultados contraditórios, afinal não são elementos totalmente passivos.  De qualquer jeito toda a inteligência disponível e colaboracionista será necessária para a pesquisa de soluções diante do agravamento das condições ambientais. Banqueiros e associações patronais sentem-se em perigo de sobrevivência se a Terra continuar nos rumos mantidos até então.
John e seus colegas de diretoria reagem, piscam, tremem, soltam gases e pensam. Os banqueiros pensam. Não apenas reagem, raciocinam. Pensam e sentem-se crescendo, agigantando-se à medida que tomam consciência do poder de vida e morte sobre tantos seres humanos. O desafio gigantesco impõe análises especiais, fora de padrões existentes. Seus cérebros, hiper programados para a rotina, ainda têm dificuldades para enfrentar novidades.
A decisão de destruir um arquivo, se necessário, desenvolve nos banqueiros um sentimento até então inexistente. Suas redes neurais mostram o potencial da lógica com que foram feitas.  Reagindo como devem tê-lo feito os grandes generais alemães ao pressentirem a guerra, naquele distante século 20, dão sinais de prazer ao perceber que poderão conduzir uma destruição tão grande. O prazer de matar por matar é um sentimento próprio dos humanos. Agora (perfeição!) os banqueiros têm este sentimento ou dão a impressão de senti-lo.
Infelizmente um processo começa a surgir em torno daquela "mesa" do World Intelligence Bank. Com os argumentos da necessidade de maior austeridade, de aprimoramento de atividades, de racionalização do uso da energia, aqueles gerentes iniciam uma lógica tenebrosa, muito comum no passado. A lógica da morte.
Algoritmos de decisão são a base de qualquer processo que exija posicionamentos, ordens. Muitos banqueiros, apesar dos esforços dos cientistas, ainda têm aqueles algoritmos que foram base de raciocínios de épocas sem preocupações sentimentais. Assim o custo social de suas decisões ainda é de avaliação difícil, para eles. Têm como principal diretriz manter e explorar seus arquivos. Sempre foram cobrados ou substituídos pela qualidade e rendimento dos imensos depósitos que administraram. Níveis inferiores cuidavam das questões mais humanas e naturais. Dentro da lógica de toda a existência da Humanidade, os gerentes ao topo apenas vêem as grandes diretrizes e, principalmente os balancetes, resultados, lucros e prejuízos.
A mudança de software pode até ser simples, direta, mas drástica. Muda-se sinais. Avaliações filosóficas estão em um nível de raciocínio muito superior, ainda longínquo. John, o mais aprimorado deles, já tem uma base. Infelizmente faltam elementos para uma análise completa. E o pior, seus programas geram propostas radicais, simplistas. É mais ou menos o que vimos no final do segundo milênio. Povos cultos e inteligentes empunharam as bandeiras fascistas e totalitárias. Nações inteiras renunciaram à liberdade. O que estava errado em seus pensamentos? Na análise desses momentos os cientistas procuraram estabelecer modelos e equações, que permitissem aos centros de decisão encontrar propostas melhores. A questão maior é que as elites também têm seus interesses e nem sempre são os mais louváveis. Os esforços nesse sentido são pequenos e pouco produtivos por falta de recursos suficientes a um bom ritmo.
É interessante ver banqueiros discutindo. Só números pesam em suas decisões. Agem de forma simplista diante de situações graves, complexas. Fica fácil entender tantos fracassos. O poder afasta esses "indivíduos" dos problemas comuns. Em suas salas vivem noutro mundo com os problemas deste. Aprendem, entretanto, a tratar os seres humanos como sendo coisas contábeis, objetos descartáveis.
Com um pouco de sentimento podem, paradoxalmente, ser piores. Na lógica desenvolvida anteriormente, agregando-se sentimentos, as conclusões eventualmente mostram desvios brutais.
Nesses momentos seus criadores deveriam estar presentes, analisando o resultado dos seus trabalhos.
Na sociedade atual qualquer produto, equipamento, qualquer proposta é o resultado de inúmeras outras, muitas sem qualquer relação aparente. A Humanidade atingiu um nível de criatividade impressionante mas é algo estranho, já não lhe pertence. Tudo é o resultado automático de pólos de decisão aleatórios, é como se todas a pessoas, computadores, centros de lógica fossem parte de um grande cérebro cheio de neurônios com o tamanho das pessoas, cidades, estados.


22.        Primeiros planos, Grupo Mundo Novo


A destruição do banco C despertou nossa criatividade (do Grupo Mundo Novo). A fragilidade das estruturas de sustentação da sociedade foi demonstrada de forma direta, chocante. O que nosso time ainda não compreende é a passividade de muitos que lá perderam bastante. De qualquer forma agora Joel tinha uma proposta.
- Posso estar ficando louco mas não seria o caso de destruir as linhas de transmissão? É impossível protegê-las. Têm milhares de quilômetros e, se interrompidas em qualquer ponto, causarão problemas semelhantes. No mínimo, após a restauração, encontrarão outro cenário. A Humanidade precisa ajustar-se a seu ambiente. A falta de cuidados no passado levou-nos a essa prisão metálica, tecnológica.
Sem energia elétrica muitos morrerão por absoluta dependência dela. Em compensação todos que sobreviverem poderão, durante algum tempo, pensar na situação em que nos encontramos. Nossos militantes terão a oportunidade de conquistar novos companheiros e, desta forma, alavancar um processo político de transformação.

- Maria, temerosa, pondera:
É uma proposta assustadora. Milhões de pessoas morreriam, inclusive companheiros nossos. Arquivos do WIB seriam destruídos. Outros sofreriam muito.
Sempre imaginei que deveríamos prosseguir nosso trabalho aguardando uma situação natural, que viabilizasse nosso discurso. Promover uma tragédia é algo que tenho dificuldades em aceitar.

Joel retruca:
- E temos alternativas? Quanto tempo ficaremos discursando? Quando seremos eficazes e coerentes com nossos ideais?
A Terra está superpovoada. O crescimento da Humanidade está destruindo o que resta de outras espécies de vida. Vive-se mais do que seria natural. Artificialmente prolonga-se a vida sem limites. O medo da morte e a compulsão lúdica induzem as pessoas a aceitarem recursos incríveis, que estão aumentando o consumo de energia, a poluição. A degradação ambiental já é gigantesca. Poderemos, simplesmente, perder tudo pelo esforço de não querer aceitar as leis da Natureza.

Maria reage:
- Por melhores que sejam os recursos tecnológicos compete a Deus decidir quando matar um ser humano. Que tipo de gente seremos se entendermos que o terrorismo é recurso válido? Não podemos esquecer que pessoas inocentes serão atingidas. Precisamos encontrar uma forma de transformar nosso mundo sem o apelo à violência. Deve haver uma forma pacífica de ação, de conscientização.
Precisamos discutir e implementar formas de ação de convencimento. É lento mas funciona se tivermos competência. Se alguma coisa deve ser destruída, que o seja sem que vidas humanas sejam atingidas. É um precedente perigoso. A Humanidade demorou para abandonar exércitos. Ainda temos forças policiais, que têm feito coisas terríveis. Nossa esperança é que um dia elas não sejam necessárias.

Joel:
- Tudo bem. Por quê as pessoas não reagem? O que existe e nós não conhecemos, capaz de torná-las autênticas imbecis? Temos falado, feito discursos, distribuído as melhores mensagens e nada acontece. Já discutimos muito a respeito. Sabemos dos efeitos da mídia, dos processos escolares, da disciplina dentro das empresas. Nada explica, contudo, a imensa passividade. Alguma coisa afeta nossos irmãos e não nos atinge. Eles vivem automaticamente, mecanicamente. Parecem felizes mas percebe-se um padrão, quase uma programação. Que tipo de vida é essa? Vale a pena? Algo errado impera em seus cérebros. Conhecemos algumas técnicas em uso de dominação intelectual. Podemos entender o comportamento dessas pessoas. Mas, e o resto? Os Sistemas de Influência Eletrônica, subliminares, realmente existem?

Essas palavras de Joel fazem-me refletir sobre a alienação de nosso povo. Inúmeras vezes procurei colocar idéias e propostas de maior atenção em torno de nosso comportamento. A maioria daqueles que ouviam, entretanto, pareciam-me dopados, inertes. O controle de mentes é assustador, apavorante. Pouco a pouco, existindo, fará da Humanidade um grande rebanho a serviço de uma minoria.
O mundo poderia ser infinitamente melhor. Com toda a ciência acumulada há muitos milênios, não tivemos competência para conciliar nossos anseios de felicidade, conforto e segurança com a própria Natureza. As soluções adotadas transformaram nossos povos em amontoados de seres passivos, alienados, devidamente arquivados em inúmeros prédios. Pensando assim recoloco esta questão em discussão.
- Creio que mais importante seria estudarmos as causas e efeitos da mídia, de processos de convencimento de que suspeitamos, da perda crescente de liberdade. É mais do que evidente a transformação de nossa sociedade. Pouco a pouco, surpreendentemente e inexplicavelmente vemos pessoas brilhantes mudarem de opinião e comportamento. Tenho medo de pensar quanto nós mesmos já modificamos nossas crenças em conseqüência do ambiente de submissão cultural em que vivemos.
Acredito que, principalmente as nações mais desenvolvidas estão se transformando em grandes rebanhos. O pior é que esse processo é tão eficaz que ninguém percebe sua extensão e objetivos reais.

Aproveito nossa reunião para mais um alerta, apavorante porque simplesmente poderá nos atingir. Nosso idealismo prevê correções à custa dos outros, e quando a solução poderá envolver a nossa própria destruição?
Disfarçando meus piores medos:
- Vocês devem saber da evolução de uma tremenda praga asiática. Uma doença estranha está matando impiedosamente. Toda a nossa tecnologia, levada às pressas para aquele continente, tem sido inútil. A epidemia asiática praticamente tomou conta do sul da Ásia. Talvez não tenhamos necessidade de qualquer ação que não seja lutar por nossa própria sobrevivência. Há poucas esperanças de se conter a epidemia em suas fronteiras atuais. A forma de propagação é desconhecida. As pessoas adoecem e morrem sem que qualquer remédio conhecido dê resultados. Dezenas de milhões de pessoas já morreram. A devastação é gigantesca. Muitas instalações explodiram, agravando substancialmente a tragédia. Em outros lugares as cidades foram ocupadas por animais selvagens, agora dispondo de um estoque de carne muito além de suas necessidades.

Maria comenta.
- A miséria sustentada pela ignorância, fanatismo e dominação ideológica é um excelente caldo para a criação de novas doenças. A situação daquele povo era assustadora. “Ajudas humanitárias” garantiam a sobrevivência no limiar da suportabilidade. A indigência tinha suas vantagens: garantia mão de obra a baixo custo. Para distrair o povo haviam as lutas eternas entre facções de fanáticos religiosos, esportivos, políticos e tudo aquilo que transforma o ser humano numa besta violenta. A imensa cultura acumulada servia para criar grupos que se odiavam mortalmente. Paradoxos da Humanidade...
Muito se falou há muitos séculos do Apocalipse. Agora o vemos acontecer sem trombetas ou cavaleiros. Simples e silenciosamente por efeito de um vírus desconhecido.

Joel pondera.
- Vocês têm razão. Parece que a gravidade da situação cria novas perspectivas. De qualquer forma não devemos abandonar nossos ideais de transformar este planeta em ambiente razoável. Para tanto ainda creio que teremos necessidade de atos violentos, aparentemente irracionais. De uma forma ou de outra a Humanidade precisará ajustar-se a um cenário limitado onde os excessos estão deformando o principal, a capacidade de ser feliz naturalmente e de viver e morrer com dignidade.

- Precisamos pensar. Estamos vendo uma série de fatores adversos à sobrevivência de todos. O nosso povo desconhece a gravidade da situação. Será atingido por uma série de problemas se o governo não agir com muita competência. Somos uma comunidade privilegiada. Há como encontrar solução para um  número limitado de pessoas. Graças ao Projeto Vida Básica sabemos como sobreviver em ambientes sem tecnologia, coisa que a maioria absoluta da Humanidade desaprendeu. Nós, pelo menos, poderemos encontrar uma saída sustentável.



23.        Governo Central


As três Américas agora estão unificadas sob um mesmo governo. De etapa em etapa seus povos foram convencidos a se unirem. O poder econômico e militar dos Estados Unidos, antigamente da América do Norte, impôs-se definitivamente. A grande preocupação era a democracia, o voto unitário. As grandes populações do sul poderiam atrapalhar os padrões do norte. Com o aperfeiçoamento da mídia, dos meios de persuasão e agora o funcionamento dos SEIs, secretos mas sob o comando daqueles que realmente governam, foi possível ampliar a “democracia” às três Américas. A capital continua em Washington, apesar das geleiras em volta da cidade. Muita energia está sendo gasta para sustentação dessa área sem a agressão da camada de gelo. É uma questão de brios de um povo, que há tanto tempo manda na Humanidade. E com que habilidade...

Uma sala de mil metros quadrados e cheia de quadros eletrônicos, normalmente com cenas bucólicas ou reproduzindo imagens criadas pelos grandes mestres, hoje apresenta gráficos e cenas de tragédias. Contrastando as telas, as paredes mostram cores suaves. Portas hermeticamente fechadas dizem que se discute algo da maior gravidade. Divinas músicas e sistemas de segurança misturam-se nas contradições da tecnologia e tragédias do momento.
O Presidente, muito bem disposto para sua idade, excitado, entretanto, com o que sabe e vê, sentado a uma mesa enorme, após algumas apresentações e discussões, comenta a situação existente:

- As notícias da Ásia são assustadoras. Mais de cem milhões de pessoas já morreram e muitos dos pesquisadores para lá enviados foram atingidos por esta praga.  Não temos, apesar dos esforços e de alguns meses terem passado, qualquer pista que ofereça a esperança de uma vacina. A doença é letal, mata em poucos dias, é extremamente contagiosa. A imensa região em que impera está deserta e cercada com o maior esquema de segurança jamais montado. Dentro robôs se movimentam, mandando-nos imagens terríveis. Temos tranqüilizado a população com notícias otimistas mas a realidade é muito pior do que o mais pessimista dos indivíduos poderia imaginar.
É uma região muito pobre. Não tinham controles sanitários suficientes e a fome era endêmica. As religiões e crendices dominantes dificultavam a adoção de medidas disciplinadoras. Também não investimos naquela área. Nossa omissão e a cultura local acabaram propiciando esta epidemia, suponho.  Esperamos contê-la por lá, precisamos ganhar tempo para a descoberta de vacinas ou instrumentos de contenção das fronteiras desta doença. Nosso Ministro da Saúde tem bastante serviço com sua equipe.
Note-se que desde a última reunião as mortes cresceram assustadoramente. Através de nossos sistemas de monitoramento registramos cenas tenebrosas.
Todo tipo de informação está sendo coletado. Nossos melhores cientistas trabalham dia e noite. O problema é a velocidade de propagação desta doença. Ela ganha espaços crescentes, mostrando que poderá vencer a corrida contra nós.

- Presidente, o Sr. pode ter certeza de que estamos dando o máximo de nós mesmos. Felizmente a tecnologia está a um nível bem desenvolvido. Creio que conseguiremos salvar nosso país.

- É bom lembrar as dimensões dos Estados Unidos das Américas. É muito difícil isolar as Américas de um contato com a Europa e Ásia. Bloqueios possíveis e imagináveis estão sendo instalados. O intercâmbio comercial suspenso, procuramos isolar continentes. infelizmente a doença possui algum tempo de incubação que desconhecemos mas suficiente para trânsitos não percebidos. Nas áreas afetadas os mais poderosos encontram formas de viajar, de procurar centros médicos mais desenvolvidos. Quando se percebe a origem e motivo da viagem o contato está feito, o contágio em progressão. Estamos falando de muita gente, é difícil contê-las, dizer-lhes simplesmente que deverão esperar a morte em suas casas.

O debate sobre a epidemia prossegue por um longo  tempo, procurando-se desenvolver uma estratégia eficaz de controle. Após algum tempo o Presidente comenta:

- Piorando a situação tivemos um grave acidente no nosso sistema de transmissão de energia para o Canadá. Entre as perdas contabilizamos a destruição de um arquivo do WIB, com a degradação de milhões de elementos, muitos deles ativos e componentes de sistemas de desenvolvimento.
Durante o desligamento tivemos problemas de comunicação e princípio de pânico em muitos lugares. Agitadores aproveitaram a oportunidade para perturbar. É a rotina, o padrão de situação sempre que nossos sistemas de convencimento falham. Ousadamente e ingratamente acusam-nos dos males da época. Os serviços de análise social estão atuando. Logo saberemos quem são esses indivíduos. Mantive contato com as associações patronais. Os sistemas SEI terão programação especial para inibir as denúncias. A própria mídia convencional começa a veicular declarações de “especialistas” dizendo que tudo está sob controle, que tivemos um acidente imprevisível e que não há o que temer.
Não compreendo a atitude desses descontentes. Vivemos em uma nação livre da fome. Todos têm trabalho ou o amparo do Estado. Graças à tecnologia controlamos os piores instintos. A violência é mínima, os comportamentos desregrados de antigamente estão limitados ao mínimo suportável. Os Estados Unidos das Américas são um país quase perfeito. E vemos esses minúsculos grupos de agitadores querendo mudar tudo. E são perigosos.
Eles deveriam comparar nossos padrões com os dos países mais atrasados. Lá encontrariam todo tipo de segregação, preconceitos, divisões. A epidemia que vemos é resultado direto da conservação de hábitos e instituições totalmente ultrapassados. A miséria é a pior poluição. Nossos ecochatos vivem fazendo acusações absurdas contra os processos industriais, a tecnologia que utilizamos. Esquecem-se de que graças a eles conseguimos formas de sobrevivência muito superiores. Há questões delicadas, éticas acima de tudo. O tempo mostrará a melhor solução. De qualquer forma continuamos evoluindo. Enfrentamos desafios gigantescos mas haveremos de vencer.
Estamos, contudo, numa fase extremamente delicada da Humanidade. A superpopulação, diante das limitações ambientais crescentes,  não nos permite desperdícios, descuidos. O clima ártico a que estamos submetidos agrava substancialmente nossa situação. Um bom exemplo é ver países fora de nosso controle. Estão sob imensa pobreza, e lá a epidemia asiática começou e põe toda a Humanidade em risco...

O Ministro do meio Ambiente:
- Presidente, admiro, gosto e defendo a Natureza. Nada me comove mais do que ver florestas, mares, peixes e animais de toda espécie. O problema que enfrentamos é o radicalismo, o sectarismo de alguns que, como o  Presidente sempre disse, não têm condições mentais de aceitarem nossos sistemas de controle, sabiamente desenvolvidos e administrados. Na visão de muitos ecoterroristas deveríamos ter leões em cada esquina, crocodilos nos riachos e elefantes nos quintais, sem contar com as cascavéis na sala. Eles se esquecem de que a suprema lei da Natureza é a lei do mais forte. Assim animais e plantas maravilhosos ganharam espaços, domina florestas. Entre todos os animais o ser humano foi o mais forte, o mais capaz. Alguém duvida de seu direito de existir e dominar os demais?
Precisamos ponderar sobre a existência do homus sapiens dentro de um planeta limitado. Há limites. Pela própria condição "sapiens" precisará achar seus limites, deverá encontrar formas de sobrevivência. Estudamos muitas alternativas, procuramos conciliar o homem e a mulher e seus filhos aos espaços naturais. Queremos fazê - lo pacificamente, sem maiores violências.
Temos o desafio de enfrentar os radicais, com certeza seremos mais competentes do eles.

O assessor cultural:
- Presidente, poucos lembram o passado. A violência era a norma. Tudo era motivo de guerras, de lutas as mais imbecis. Conseguimos construir um mundo melhor, mais ordeiro e pacífico. A Humanidade sempre foi o coletivo de herbívoros, de indivíduos alienados, dispostos às piores agressões. A vaidade do homem comum não tinha limite, ele se considerava um Deus, um super homem quando não passava de um inseto. O ser humano evoluiu, sua inteligência cresceu, com ela aprendeu a dominar instintos. Nossos controles não são perfeitos mas com certeza a vida é melhor.

O Ministro de Relações Sociais intervém:
- Senhor Presidente, desculpem-me interrompê-los. Quero reafirmar a atuação de nossos sistemas de vigilância social. Não creio que os anarquistas tenham condições de ir longe. Como sabemos, os sistemas SEI são extremamente eficazes. Estamos estudando programação especial e ampliação de instalações. Temos mantido contato com o MEI. Eles estão conscientes da importância de ajudar-nos nessa tarefa.

O Presidente retoma a palavra:
- Nossa prioridade é a epidemia asiática. Independentemente de qualquer coisa, causa espanto a violência dos efeitos dessa praga. As perdas humanas e materiais são enormes.
Ela poderá atingir o Mundo inteiro. Isto acontecendo, não sabemos quem sobreviverá. Na hipótese de chegar até nós, precisaremos de extrema cautela na divulgação de notícias em torno deste tema. Muita gente trabalha em postos estratégicos, que não podem ser abandonados de modo algum. Se, por medo, seus operadores resolverem fugir, teremos acidentes de proporções inimagináveis. Confio no trabalho do nosso Ministério de Relações Sociais. O desafio é grande, precisamos de muita competência para evitar uma catástrofe pelo simples efeito do pânico.
Precisamos com urgência de um plano detalhado de desmobilização e desligamento de instalações críticas assim como o estabelecimento de uma estratégia de isolamento gradativo de áreas suspeitas ou efetivamente afetadas. Evidentemente estamos trabalhando neste sentido desde que percebemos a extensão desta epidemia. Por mais que tratemos do assunto, entretanto, não se descobrindo a cura, uma vacina para esta praga, ela nos atingirá violentamente mais cedo ou tarde. Nossa esperança é que o tempo seja suficiente para a descoberta de algo que contenha a expansão desta epidemia. Nas condições atuais, o contágio é equivalente a uma pena de morte de ação rápida.
De qualquer modo não podemos deixar repetir as grandes catástrofes, excessivamente freqüentes nos últimos séculos. Em muitas delas vimos hipóteses erradas causando enormes desastres. Assim barragens ruíram e usinas explodiram por simples erros de operação ou abandono de instalações. Os projetistas, na tranqüilidade de suas plataformas, esqueceram que certos quadros tinham razoável probabilidade de ocorrência.
Pior foi verificar que em momentos de pânico instalações vitais foram abandonadas, gerando acidentes que nunca esqueceremos. Precisamos ter muito cuidado com as notícias. Se contribuem para orientar, dependendo da forma com que forem apresentadas, poderão causar males piores do que a própria epidemia. Não podemos esquecer que temos inúmeras instalações nucleares e hidroelétricas operando. Automatismos e proteções diversas foram feitos para evitar-se acidentes. Na grande maioria temos robôs trabalhando. As instalações mais delicadas, contudo, são comandadas por seres humanos.
Desenvolvemos uma cultura de muito apego à vida. Nossos cidadãos dedicam-se completamente ao prazer e à própria sobrevivência. Inibimos a agressividade, a capacidade de luta. O medo da morte levou-os a atitudes extremas. Preocupa-nos imaginar o que farão ao perceberem a violência desta epidemia.

O Ministro do Planejamento :
- Presidente, esta é uma tarefa extremamente difícil. Precisaremos reunir especialistas em inúmeras funções. A simples organização deste trabalho levará tempo. E eles acabarão por ser afetados pelas informações que receberem. O tempo conspira contra nós. Faz muito tempo que não enfrentamos situação semelhante. Espero encontrar os elementos necessários à realização com sucesso desta tarefa. Realmente, o Ministro de Relações Sociais terá uma trabalho enorme pela frente.
E os congressistas? Costumam falar demais. É muito importante que não digam besteiras, o que é impossível. Devemos atuar na mídia e usar todos os meios de persuasão disponíveis. O pânico poderá agravar substancialmente qualquer estratégia de controle desta epidemia.

- No Congresso percebo que a maior preocupação deles é procurar uma forma de salvarem a própria pele. Eles têm meios próprios de informação, estão sabendo da gravidade da situação.


24.        A epidemia e os banqueiros


O World Intelligence Bank está reunido, a pedido do Governo Central, para discutir atitudes em relação aos efeitos da epidemia asiática. Os banqueiros não temem seus efeitos diretamente, afinal não são sensíveis a esse tipo de doença. Seus vírus são outros.
Discutem os riscos que seus arquivos correm. Existem para cuidá-los e perdê-los é algo que lhes confunde. Teriam que se reprogramar. Seriam capazes de fazer outra coisa?
John:
- Temos arquivos que poderão ser atingidos. Os depósitos tipo C são mais frágeis. Neles há a hipótese de restauração total. São muito mais caros, volumosos e complexos. Entre suas fragilidades existe a de serem afetáveis pelas doenças comuns. Para salvá-los precisaríamos baixar as temperaturas em seus módulos de modo que fiquem imunes a doenças. Assim deixarão de ser produtivos. Desacelerar para salvar. Perderemos a atividade deles, muitos extremamente produtivos.
Faremos uma análise mais completa de prioridades. Não sabemos ainda a extensão da epidemia, sua duração provável e efeitos paralelos. A principal conseqüência será a perda de equipes de operação e manutenção das fontes de energia, das indústrias químicas e outras, que garantem as diversas bases de sobrevivência de nosso sistema.
Milhões de robôs já operam em inúmeras atividades. Infelizmente nem tudo eles podem fazer. O homem natural é uma máquina fantástica. Toda a ciência acumulada ainda não conseguiu desenvolver nada parecido. Em compensação as máquinas têm suas vantagens. Agora é o momento de usá-las ao máximo, explorando tudo o que forem capazes.
Na análise de prioridades deveremos chegar ao nível absolutamente essencial. Se tudo tiver que parar, o que será salvo? Muitos arquivos encontram-se em locais estratégicos e alguns contêm depósitos de extremo valor. Suas contribuições têm possibilitado imensos progressos da civilização atual. Entendo que mantê-los é fundamental. Felizmente alguns se encontram na região tropical, próximos às maiores fontes de energia e com sistemas automáticos de operação e manutenção.

Assim, colocando suas mensagens, John e seu time iniciam mais um processo matemático de simulações. Trabalhando sem parar, geram programas e propostas, que precisam ser compilados. O desafio lógico é imenso.
Ter sensibilidade talvez atrapalhe. O alcance desse recurso é surpreendente. A possibilidade de autoprogramação fez dos computadores autênticos seres vivos. Máquinas espalhadas por inúmeras  indústrias tiveram expressões sentimentais que, inúmeras vezes, causaram muitos prejuízos. Casos até semelhantes a manifestações amorosas foram identificados.
Tudo isso gerou muita discussão entre as elites ainda pensantes. O que seria a vida? Como interpretar uma máquina que realmente pensa? E se ela manifestar sentimentos? Terá alma?
O que caracteriza o pensamento humano é uma certa dose de aleatoriedade e coerência. Essa mistura gera a miríade de reações possíveis diante de apenas um estímulo. Glândulas, memórias e circuitos neurais, entre os muitos fatores que afetam o comportamento humano, criam mensagens que se transformam em vozes, movimentos e sentimentos. O desafio de alguns centros de pesquisa têm sido criar robôs à semelhança dos humanos. E têm tido sucesso. Que sucesso!





25.        Júlia se recupera dos implantes


Ana cuida de sua filha com extremo carinho. Eleita para ser mãe e seguindo todas as orientações do Governo, teve licença de 5 anos para acompanhar sua filha. Ela será sempre sua principal atividade.
Os implantes tornam-se imperceptíveis. A energia que consomem vem do próprio corpo. Não usam baterias ou qualquer fonte externa de energia.
Os motivos para os implantes não lhe parecem claros. De qualquer forma é uma determinação superior e isso é sagrado para Ana. O mundo é o da disciplina. Ela é necessária para que possam sobreviver nas condições existentes. Disseram-lhe que a adaptação de Júlia será mais rápida após essa operação.
Agora Júlia começará a ser afetada pelos Sistemas Eletrônicos de Influência com muito mais eficiência. Se antes era sensível a orientações subliminares, agora será atingida por comandos diretos. Com o implante a eficácia deles é maior. A dominação atinge novo estágio. Sua vontade será ajustada a dos grandes comandantes. Estudará, comerá, dormirá e tudo o mais sob a influência desses sistemas. Politicamente Júlia deixa de ter vontade própria.
Os primeiros efeitos começam a ser perceptíveis. Júlia já não quer brincar tanto. Procura estudar. Preocupa-se em ter uma profissão. Diz que quer ser útil. A quem?
Ana, também sob efeito de programas especiais, estimula sua filha a seguir as orientações recebidas.
As duas fazem parte do projeto de preservação essencial. Júlia substitui alguém que morreu. A preocupação é manter a população das Américas estável, servil, acomodada e produtiva. Os sistemas de influência eletrônica são extremamente eficazes. Não dependem da propaganda ostensiva como os existentes nos meios de comunicação clássicos. Esses sistemas, além de extremamente caros, tinham a fragilidade da enorme variação de personalidades. Se eficazes dentro de um grupo de pessoas, eram menos atuantes em outras. Com o crescimento da inteligência e cultura da Humanidade estavam perdendo eficácia. Assim os SEI vieram ao encontro dos interesses das elites dominantes. Donas desta tecnologia, operando-as sem o conhecimento da pessoas externas a seus círculos mais íntimos, podem estabelecer os programas que lhes convierem. Para isto a tecnologia e instalações dessas estações são privilégio mantido a sete chaves.
Júlia tem seu código, sua programação específica e seu futuro estabelecido. Ele só mudará se, por qualquer razão, as estações SEI pararem de funcionar. E esta é uma preocupação imensa na cúpula das empresas e do Governo Central, representante maior dos interesses dos acionistas dos SEI. O sistema simplesmente não pode parar. A subversão viria matematicamente.
Sempre lembrando, os sistemas SEI atuam maravilhosamente nos comunicadores da mídia clássica...


26.        A epidemia se espalha pela Ásia


O sul da Ásia, região que há menos de um ano tinha bilhões de habitantes, está reduzido a algumas centenas de pessoas. Em algumas de suas áreas desastres adicionais contribuíram para exterminar os sobreviventes. Usinas atômicas explodiram, barragens romperam-se, sistemas de abastecimento de água, comunicações e transporte foram parando. O pânico juntou-se a tudo para dizimar uma população de tradições e cultura milenares.
Os rios estão cobertos de cadáveres boiando. Por efeito de suas crenças muitos foram entregar suas vidas aos deuses nas margens de seus rios sagrados. Sem condições de serem cremados, acabaram sendo simplesmente lançados às águas por efeito de suas superstições. As imagens, a maior parte colhidas por veículos aéreos, mostram cenas dantescas. As autoridades dos países vizinhos, principalmente, não sabem se devem censurá-las ou, deixando-as serem transmitidas para seus povos, dar início a um processo de preparação para a morte.
Os grandes laboratórios e universidades trabalham freneticamente procurando uma forma de conter esta doença. O problema é colher e manusear materiais para ensaios. Muitos pesquisadores já morreram, afetados pela doença.
Os continentes, os países e cidades se isolam. Todos procuram formas para sobreviver. Estoques de todo tipo são formados rapidamente. Assim começa a faltar alimentos nos grandes centros. A fome é uma ameaça tenebrosa.
Os países fronteiriços a essa parte desse imenso continente começam a ser atingidos. A China e o Paquistão são os primeiros. Há tantos séculos adversários, agora caminham juntos para a destruição. Tivessem sido mais racionais e teriam tido recursos para evitar o caldo pestilento que facilitou a propagação dessa praga. Gastaram fortunas incalculáveis em armamentos. Agora um inimigo pequeníssimo, invisível, mostra-se terrivelmente mais perigoso. E era previsível. Mais cedo ou tarde aconteceria.
Pela Ásia inteira manifestações religiosas de toda espécie são promovidas. Tanto na preparação espiritual para o fim dessa vida quanto na esperança de agradar algum Deus de plantão. Todos de alguma forma procuram um jeito de ganhar alguma coisa, quando pouco, a vida eterna.
Cenas ridículas, cômicas, trágicas e muito sérias se sucedem por todos os cantos daquele continente com tantas tradições. A grande maioria acreditando ter chegado o fim do mundo, o tempo de algum juízo final, reza, chora e grita pedindo perdão de pecados os mais diversos. Em muitas cidades procissões intermináveis circularam pelas ruas até que a doença começasse a derrubar os crentes. Muitos templos acabaram cheios de cadáveres.
As primeiras mortes fora dos mais duros cordões de isolamento jamais construídos foram a senha para o desespero. Os grandes líderes asiáticos parecem completamente atordoados. Alguns países insulares agora agradecem, mais do que nunca, a condição de isolamento geográfico.
A interdependência mostra-se perversa. Equipamentos sofisticados começam a parar por falta de componentes. Instalações complexas no mundo inteiro estão sendo desativadas. Tudo isso seria suportável menos a falta de alimentos, de água e até de ar. As nações mais ricas, grande importadoras de alimentos, começam a sofrer racionamentos pesados. E nesses países, construções gigantescas contém milhares de pessoas vivendo em ambientes artificiais, altamente dependentes de tecnologia, equipamentos complexos, serviços especiais.
Essa epidemia está mostrando a fragilidade de nossa sociedade. As "monstrópolis" em que as grandes cidades se converteram são pesadelos incríveis e totalmente ingovernáveis nessa condição de crise. Nos países mais desenvolvidos a ordem se mantém até que de repente a população parece acordar e entrar em desespero. A Humanidade cresceu em número e complexidade mas no culto ao individualismo perdeu-se muito da capacidade de planejar uma situação dessa espécie. Para as guerras entre nações gastou-se no passado fortunas inimagináveis, para a defesa contra os piores inimigos que a própria Natureza apresenta de tempos em tempos, muito pouco foi preparado.
Assim como a Natureza varreu da superfície da Terra os dinossauros, parece agora pretender limpá-la dos seres humanos.


27.         Governo Central analisa a epidemia


Nas Américas o Governo Central discute as providências a tomar diante da praga asiática. A sala de reuniões continua coberta de gráficos e números, mostrando com detalhes os dados da crise. Um grande mapa dinâmico apresenta com destaque as fronteiras dos países atingidos. Dentro deles números crescentes indicam quantas pessoas já morreram. Marcas especiais apontam os lugares onde algum desastre adicional aconteceu por efeito do abandono de instalações.
O Presidente quer conhecer minuciosamente os planos de desativação das grandes centrais, fábricas e até edifícios. Ficarão sem condições de funcionamento com a perda de energia e operadores essenciais. Não mais existe a prosaica fuga para campos e praias. A superpopulação ocupou todos os espaços saudáveis, a poluição, venenos de toda espécie inutilizaram outros. O medo do contágio, contudo, poderá levar muitos a ficarem trancados em seus módulos residenciais.
Com a Ásia sob bloqueio começa a faltar componentes críticos de muitas máquinas. O efeito ainda é pequeno mas já mostra o sentido das coisas. Os famosos computadores são os primeiros a ter problemas. O mundo adaptara-se à importação maciça de produtos manufaturados da Ásia e África. A Índia e outros países mais pobres daquele continente tinham mão de obra de baixo custo. A perda desta área produtiva afeta inúmeros produtos.
Na exploração da mão de obra barata, a custos que os países mais fortes impuseram, seus povos permaneceram em misérias desnecessárias e, agora, base desta praga. A insensatez dos ricos será a principal causa da própria destruição.

O racionamento já está sendo aplicado. As reações populares são menores pois os SEI estão ainda operando. A maior preocupação é a manutenção das grandes cidades. Elas são extremamente frágeis.
O Presidente discute a questão:
- Vi as propostas de racionalização de recursos, cortes e planos de desativação de instalações. As associações patronais e o sindicato MEI (formado pelas empresas detentoras da tecnologia dos SEIs, devidamente desconhecidos da grande população mas perfeitamente usados pelo Presidente) também foram consultados. A questão maior é que simplesmente não tínhamos nada preparado para uma situação desta espécie. Qualquer proposta esbarra na falta de pelo menos um detalhe estratégico. Nossas indústrias estão sendo acionadas para produzirem diversos produtos até agora importados. A dúvida é se teremos tempo para resistir até atingirmos um padrão mínimo de sobrevivência tecnológica.

O Ministro da Segurança intervém:
- Senhor Presidente, precisamos ser claros. As Américas precisam ser divididas em áreas e há necessidade urgente de estabelecermos barreiras preventivas até entre nós. As Américas têm regiões razoavelmente autosuficientes em alimentos e energia. Isolá-las é possível e uma necessidade impreterível. Temos amigos e parentes em todas elas mas a decisão, diante da gravidade da situação, é inevitável. A questão é complexa, nossos exércitos não têm preparo para ações de policiamento desta espécie.  Dependeremos muito da mídia e dos SEIs. A melhor maneira de estabelecer o isolamento será usando robôs nos controles de fronteira. Infelizmente não temos unidades em número suficiente.
Já começamos campanhas pedindo que todos se preparem para viver um período de suas vidas em isolamento.
Muitos optaram pelos bancos, outros, muito mais ricos, estão saindo em viagens de longa duração fora da Terra. Esses  automaticamente estão se programando para longos períodos inertes em suas cápsulas.
O número de indivíduos em condições de sobreviver nesses ambientes é insignificante em relação ao da população como um todo.
Ou descobrimos rapidamente uma vacina ou remédio contra esta epidemia ou poucos sobreviverão para contar a história. Imensas regiões, antes habitadas por centenas de milhões de pessoas, agora mostram algumas poucas que sobreviveram a esta catástrofe. O pior é que alguns entendem que isso é obra divina, solução, holocausto e outras besteiras. Corremos o risco de ver esses indivíduos trabalhando para a disseminação dessa doença.
O Ministro da Saúde pede a palavra:
- Nossos melhores laboratórios trabalham exaustivamente. Alguns progressos estão acontecendo. A dificuldade maior é o risco de contaminação. Perdemos muitos cientistas nessa luta. Eles, contudo, têm mostrado disposição total na pesquisa de um inibidor dessa praga. Melhor do que ninguém, existe entre eles a consciência de que se não encontrarem uma solução, a Humanidade voltará à idade das pedras, se sobrar alguém vivo.
Existe uma possibilidade de sobrevivência de uma parte mínima da população. São nossas vilas em outros planetas. Lá poderemos instalar alguns milhares de indivíduos e mantê-los em atividade reduzida até nossos laboratórios mais seguros encontrarem uma solução. Será um recomeço com uma elite de indivíduos, que puderam safar-se usando os melhores recursos disponíveis, não para a luta, mas para a própria sobrevivência. À semelhança dos abrigos nucleares do século vinte, poderemos sobreviver em abrigos anti-vírus até podermos voltar em um novo mundo. A Terra será um amontoado de escombros com espaços imensos para uma nova civilização.
O Presidente pondera:
- Talvez seja esta uma situação natural diante do drama em que temos vivido. A Terra, em plena período glacial e com excesso de população, está se degradando estupidamente. É minha obrigação lutar pela sobrevivência de todos. Não seria esta situação, contudo, uma alternativa natural para os excessos de nossa civilização? Nossa esperança é de que se não conseguirmos debelar esta epidemia, algumas pessoas especiais sobrevivam e recomecem a vida em bases mais sadias do que as que encontramos.
Ironias à parte, o pesadelo mostra uma situação interessante:
Nossos congressistas sumiram, foram cuidar de suas bases, dizem. Na realidade simplesmente estão procurando formas de salvar a própria pele.


28.        Marcos e Ângela e o Mundo


Marcos sente que algo de estranho realmente está acontecendo. Ele e seus companheiros não recebem qualquer contato externo há muito tempo. Seus aparelhos de comunicação precários já não captam sons. Imagens não tinham antes. Era diretriz dos ecologistas e cientistas que permanecessem tão isolados.
Suas ilhas têm esqueletos de muitos prédios abandonados. Restos de hotéis e instalações militares lembram épocas muito diferentes.
Ângela e Marcos preocupam-se com a ausência de contatos com a base de suprimento do mundo convencional. Alguns produtos, permitidos pelos cientistas, começam a faltar. A demora significará falta de roupas, remédios básicos, eletrodomésticos etc. Precisarão simplificar muitos detalhes de suas vidas. Felizmente moram em um lugar maravilhoso. Meios de diversão sempre souberam inventar. Este era um aspecto que surpreendia seus pesquisadores. Eles vinham às ilhas para procurar entender como podiam divertir-se tanto sem os aparelhos modernos, onipresentes em suas vidas.
Gradativamente, ao longo dos muitos anos de isolamento, começaram a desenvolver equipamentos com matéria local em substituição dos importados. Essa era uma diretriz da experiência. Graças a isto poderão sobreviver com mais facilidade na situação que agora se configura.
Marcos comenta:
- Hoje teremos uma reunião junto à praia menor. Nossos  amigos lá estarão para uma noitada de cantos e danças. Teremos uma noite linda, o céu coberto de estrelas e Lua crescente. Assim poderemos esquecer um pouco esses problemas que lhe incomodam. Temos encontrado alternativas a muitos dos benefícios do mundo lá distante. E somos mais felizes do que a maioria dos que nos visitam. Por que a preocupação?
- Intuição, talvez.
- Hoje acordei com o barulho dos passarinhos. Que algazarra.
- A primavera vem por aí...
- Sim, caminhando para a praia dá para se ver isso. As plantas, as flores reaparecem e muitos animais estão agitados. A vida ganha força.

Enquanto fala vê como resolver problemas caseiros. Agora falta gás, sem energia elétrica precisam de madeira para cozinhar seus alimentos. Felizmente a ilha têm muitos coqueiros. Deles é possível reunir muito material combustível. Pouco a pouco a vida se torna mais rústica, primitiva.
A comunidade é relativamente simplória. Sem grandes projetos, tem na alegria de viver a principal força de sobrevivência. A luta pela vida sem os recursos da tecnologia desenvolveu neles instintos e sentidos já perdidos nas grandes cidades. Principalmente o olfato e a audição estão a níveis muito superiores aos dos habitantes do mundo externo. São aparentemente inferiores mas extremamente mais resistentes. O interessante para os cientistas é notar essa recuperação de qualidades praticamente perdidas lá fora.
A vida nos imensos prédios das grandes cidades têm aspectos constrangedores. É suportada porque muitos sistemas de influência atuam criando sentimentos positivos. Tenebrosamente o ser humano depende cada vez mais de equipamentos e fantasias que inventa. Esta simbiose é necessária diante da superpopulação e dos efeitos do resfriamento rápido da Terra.
Marcos e Ângela vivem uma situação completamente diferente.
Sentados comem o peixe recém pescado.
O sal era produto local, extraído da água do mar. Os cocos nunca faltaram. Sua polpa era transformada em muitos doces que naquele final de tarde acompanhava o prato principal. A simplicidade daquela saleta ganhava ares de grande beleza. O jantar era um momento de aproximação carinhosa.
Os dois, sós, ali se unirão em grande paixão e prazeres que só eles sabem ter.



29.         Grupo Mundo Novo analisa a situação


Reunidos mais uma vez discutimos, perplexos, o quadro mundial. Transmito as informações que obtivera através de simpatizantes. Os meios de comunicação formais já dão orientações severas de preparações para resistir à epidemia asiática.
Graças ao uso intenso dos SEIs, que eu desconhecia existir até há pouco tempo, o pânico é substituído por comportamento quase mecânico. Exceto algumas pessoas não afetadas pelos diversos Sistemas Eletrônicos de Influência, as demais agem com aparente serenidade.  Os países mais ricos assim mostram um comportamento totalmente diferente dos mais pobres. A diferença não é o resultado de cultura ou saúde e sim o efeito da tecnologia. Há muito submetidos a controles os mais diversos, os povos mais ricos encontram-se atrelados a todo tipo de monitoração e condução psicológica. Nesse momento é até vantajoso, evita-se distúrbios extremamente perigosos.
- Estamos vendo que alguns, mais poderosos, estão embarcando em viagens interplanetárias. Embarcados em foguetes, seguindo rotas longas, ficarão dezenas de anos navegando pelo espaço até voltarem à Terra daqui a muito tempo. À semelhança de alguns cometas, a cada dezenas de anos passarão por aqui e, provavelmente, estarão programados para só serem reanimados e descerem à Terra se indícios seguros mostrarem que os maiores perigos tiverem passado.
Outros preferiram formas de congelamento. Permanecerão devidamente arquivados por muitos anos. Robôs estarão controlando seus armazéns. É um sistema seletivo pois o custo também é razoável e o espaço disponível é pequeno.
Alguns cientistas estão sendo enviados para as bases planetárias. Lá poderão, durante alguns anos, pesquisar a cura dessa epidemia. Eles têm prazo. Os prazos variam conforme a base. Findo esse período terão que voltar à Terra pois se lá ficarem morrerão por falta de alimentos, ar ou água.
A grande maioria da população, contudo, só tem a esperança de rapidamente descobrirem um remédio ou vacina. Caso contrário morrerão a menos que os ambientes em que estiverem for suficientemente isolado para evitar a contaminação. Além disso precisarão dispor de recursos diversos para simplesmente continuarem suas vidas e as de seus descendentes.
Todo esse povo, contudo, terá que reaprender a viver em um planeta sem os produtos que estavam acostumados a utilizar. Ao serem reanimados estarão acordando de um sono profundo e demorado, cercados de ruínas. E que animais estarão em volta? Como serão as florestas e o próprio clima? O ar certamente será diferente. É impossível imaginar a transformação provocada por este vírus ou bactéria.
A doença está fazendo o que pretendíamos. Destruir o mundo artificial em que vivemos, recriar espaços. A dúvida é se alguém sobreviverá para recomeçá-lo em bases mais sadias. Tenebrosamente a destruição é impressionante.
Nosso desafio agora é reunir nosso grupo e discutir formas de sobrevivência. Perdemos a iniciativa para a própria Natureza. Temos as opções que acabei de relatar. Outra é procurar algum lugar mais isolado.
Pelas nossas origens e formação talvez consigamos sobreviver em algum lugar isolado e distante desses ares pestilentos.


30.        Os banqueiros discutem o plano de emergência


Diversas unidades européias e asiáticas do banco foram desligadas. Fato inédito na história do World Intelligence Bank. E o pior é que muitos desses desligamentos aconteceram pela perda de energia, conseqüente de abandono de instalações de forma inadequada. Havia como transferir cargas, manobrar o sistema. Na angústia da epidemia e na falta de maior comunicação, contudo, perdeu-se coordenação e as quedas de energia acabaram demorando mais do que o previsto.
Incrivelmente, em pleno terceiro milênio da era cristã as famosas defesas civis não sabiam como reagir a grandes catástrofes. Nesses momentos tem dominado o líder carismático, aparentemente lúcido. O ser humano não resiste ao teatro. Esses momentos revelam grandes artistas. A falta de organização e ações coordenadas, otimizadas, está cobrando um preço elevado.
O World Intelligence Bank sofria a incompetência e irresponsabilidade de séculos de construção de uma estrutura mal preparada para emergências deste porte, pouco prováveis mas, ainda assim, podendo acontecer. Por muita sorte as tragédias acontecidas até há pouco tempo foram locais ou no máximo regionais. Nenhuma conseguiu mobilizar as autoridades para uma análise a nível mundial. Agora usinas nucleares explodem, barragens gigantescas cedem ao volume de águas não liberadas, sistemas essenciais param por absoluta falta de um plano de desativação de instalações críticas. E o WIB sofre as conseqüências, logo ele que oferecia a eternidade.
O Banco tinha recebido um volume sem precedente de depósitos. A epidemia transformou o banco em uma opção de salvação. Instalações foram improvisadas, construídas às pressas. Como entretanto tinham que respeitar os anéis nacionais de isolamento, muitas estavam longe das fontes de energia. Essas instalações, altamente dependentes de energia, tinham menor confiabilidade.
Mas os banqueiros têm como programação básica preservar e valorizar seus depósitos. Assim desenvolvem planos e emitem ordens que geram muitas movimentações. Paralelamente, nas Américas, o Governo Central atua para viabilizar as propostas do World Intelligence Bank. Entende que é uma forma de garantir recursos que virão a ser importantíssimos no futuro, sabe-se lá quando.
Uma vantagem existe na construção de mais unidades nas regiões mais frias. Lá existe uma base industrial sólida e o próprio clima ajuda a manter as unidades se for necessário congelá-las totalmente, paralisando-as completamente. O problema é que a recuperação ainda é uma técnica em discussão. Depende muito de análises que estavam sendo feitas em grandes centros de processamento científico. Os famosos cérebros eletrônicos agora empenham-se nos projetos de congelamento e recuperação. Do sucesso deles dependerá a reconstrução da civilização humana após esta tragédia.
John coloca as tarefas e, ele próprio, encarrega-se de muitas análises importantes. As propostas:
- considerar as linhas de transmissão de energia entre sul e norte rompidas;
- operação isolada de cada depósito;
- seqüência de desligamentos e destruição dos restos dos depósitos;
- planos de reativação das unidades preservadas e congeladas após a crise.
Assim estabelecendo propostas de trabalho, seus companheiros começam a expedir tarefas para seus times associados.


31.        Ana


Ana está assustada. Aos poucos percebe a existência da epidemia asiática, do avanço dessa doença por outros continentes e a grande possibilidade de chegar às Américas. Ela mal sabe o que é um continente mas sente que algo está errado. Fruto de novas tecnologias, é uma pessoa perfeitamente alienada, querida, gostosa, contudo.
Sozinha precisa proteger sua filha e a si mesma. As notícias são terríveis. Sua filha recupera-se do implante e ajusta-se bem aos sistemas e treinamentos. Ana é sensível aos SEIs, o medo da morte, contudo, é muito forte. Mulher bonita e inteligente vive dentro de padrões convencionais. Cidadã típica da sociedade em que vive, ajustara-se perfeitamente a tudo o que dela se esperava apesar de alguns períodos de rebeldia. Mãe solteira mas dentro de um programa governamental de reprodução, vive agora dilemas que gostaria de compartilhar com alguém. Sua filha é uma pessoa especial, programada, do interesse do Governo Central. Ela faz parte de um plano de experiências sobre controle comportamental. Ana desconhece a amplitude desses detalhes pois ela também é vinculada à pesquisa. Cobaia humana, as decisões foram tomadas muito longe dela.
O povo sempre foi instrumento, propriedade e matéria de exercício do poder das elites, Ana não é exceção.
Diante da violência dos fatos essa mulher acorda um pouco, entreabre seus olhos, talvez sentindo os olhos pesados mas procurando ver o que seu instinto lhe diz. Precisa de mais informações objetivas. Ela procura as autoridades e a elas é oferecido um depósito no World Intelligence Bank. É uma hipótese que atordoa a frágil mãe. E ela precisa tomar esta decisão rapidamente. Sente que deve agir desta forma. Já lhe deram endereço, dia e hora para as duas procurarem o depósito mais próximo. Recebeu instruções minuciosas de como proceder. Por mais que entenda ser necessário agir desta forma, a decisão é muito difícil. Ela sempre teve medo do Banco, a propaganda e a imagem dessa instituição não conseguiram vencer seus preconceitos e agora a hora chega... Suas rejeições deveriam ser menores. Vive em um planeta superpovoado, artificial, cercado de plásticos e metais, cibernético e estático. Contradições do esgotamento de muitos recursos naturais, a Humanidade cada vez mais torna-se estática, presa, sem mobilidade. Assim Ana já deveria ser mais receptiva. Talvez algum dos sistemas SEI tenha sido desativado. A progressão da crise está desativando, passo a passo, a estrutura tecnológica existente.
Assim ela começa a entender idéias e propostas de alguns amigos estranhos. Há muito tempo haviam-lhe falado de um grupo de ativistas a que pertenciam, Grupo Mundo Novo. Nas conversas daquela época ela percebeu que eles fugiam às normas, não se subordinavam tão pacificamente ao Governo. Provavelmente terão alternativas.
Tudo isto confunde mais ainda seu pequeno e muito organizado mundo. E Júlia, sua filha, como protegê-la? Ainda bem que em sua ingenuidade não percebe muito do que está acontecendo. Mas Ana precisa de mais certeza, de mais convicção para a decisão de entrar no Banco.
É um dia bonito, ela caminha dentro de corredores e tubos gigantescos. É um mundo cheio de dutos, caminhos de toda espécie, sempre isolando seu conteúdo do ambiente externo... Há muitos séculos os tubos serviam para o transporte de combustíveis, água e suas variações. Agora são os grandes caminhos de multidões. Ana dirige-se a um endereço em que seus amigos estão reunidos. Enquanto caminha e utiliza os sistemas de transporte coletivo fica pensando no significado das instruções recebidas. Lá fora o Sol brilha com força. Ao longe o azul do mar é um contínuo de um céu mais azul ainda. Como afastar-se de tudo isto? Ela sabe que terá compensações procurando o Banco. Não tem certeza de um retorno à vida normal. E ela não quer afastar-se de sua filha. Sabe que no Banco, mesmo fisicamente próxima, estará sem contato com Júlia. E ela é tão pequena. Não haveria alternativa?
Andando ela se aproxima de um endereço que conhecia muito bem. Lá estivera muitas vezes por motivos completamente diferentes. Agora era uma esperança.



32.        Um reencontro


A amizade de Ana por mim foi um acidente sentimental. Ela se lembra do momento em que nos encontramos pela primeira vez, em um congresso já distante.
Eu, muito falante, polemizava, colocava assuntos considerados desagradáveis pela maioria dos ouvintes. A disciplina e lavagem cerebral a que eram submetidos impedia que percebessem a verdade de muitas afirmações daquele dia. Ana ouviu com atenção o que eu dizia, talvez mais pela oportunidade de aproximar-se de mim do que pela intenção de aproveitar algo. Politicamente manifestava-se dentro dos modelos oficiais. Era e é uma mulher atraente. Nossa conversa evoluiu para questões mais íntimas. Seu convite para acompanhá-la a seu apartamento deu partida a um período de muito amor. Não resisti a seus encantos e não me arrependi. Com todas as limitações o amor surgiu com força. Tivemos momentos sublimes. Enquanto durou foi maravilhoso. Separamo-nos por termos opiniões diferentes sobre muitas coisas, opiniões que geraram conflitos e um afastamento longo, lamentável.

Agora ela me procura exatamente para entender o que está acontecendo e procurar apoio dentro de um cenário que não compreende.
E como está bonita. Elegante, morena, formas de mulher bem acentuadas, lábios grossos e olhos escuros fazem-me vibrar. Qual é o homem que resiste aos encantos de uma mulher sensual, bonita e frágil? O que um homem  precisa para adorar uma mulher encantadora, sensual? Somos simples animais à procura de algo que nos complete, que seja aquilo que não entendemos mas sentimos ser o que nos falta. A mulher de nossos sonhos é antes de mais nada um conjunto de cheiros, vozes, peles e reações que sentimos quando mergulhamos nelas. E muitas são as únicas, as deusas, as preferidas. Os homens são escravos do amor. E quem disse que o amor é algo apenas possível entre um único par sobre a Terra?
Ana aparece em sua plenitude feminina. É mulher de ponta a ponta, da cabeça aos pés. Escravo de meus hormônios, eu a veja deusa, linda, atraente. E que momento para encontrar uma mulher. A tragédia aumenta o estímulo sexual. É como se a Natureza dissesse que no menor prazo possível devêssemos procriar, amar, cuidar de nossas crias. Papo “cabeça” para estímulo de outra cabeça...
Eu a recebo de uma maneira bem humana. Amores antigos, bem desfrutados durante muito tempo, retornaram com intensidade nos nossos pensamentos. Eu a abraço, beijo-a e a conduzo para a minha sala. A música é romântica mas a ansiedade, a tensão nervosa de Ana não lhe permitem qualquer descontração. Aos poucos ela relata sua história. Não me surpreende. Àquela altura já conheço muito dos esquemas de dominação existentes. A proposta que lhe fizeram de submeter-se ao WIB, contudo, assusta-me. Mostra a gravidade da situação. Decido apresentá-la aos meus companheiros.
Levo-a onde meu time se encontra discutindo como sobreviver. As questões mais delicadas já tinham sido tratadas e apenas dois colegas lá se encontram para recebê-la, um deles um médico, Júlio, o outro um engenheiro já bastante idoso, Antônio. Para todos eles Ana é um objeto de curiosidade. Como ela teria mudado de comportamento, porque insurgia-se contra orientações que estavam sendo dadas a todos?
E Ana, chorando, expõe as orientações recebidas. A perspectiva do depósito a apavora. Seu universo era linear, tranqüilo, tinha todos os prazeres e confortos que a tecnologia lhe oferecia. De repente via o mundo desmoronar-se. Por mais que procurasse aceitar, e até há poucos dias parecia consegui-lo, agora, de repente, começa a pensar, a ver que algo está errado, ou sempre estivera.

Coloquei a questão:
- Ana, infelizmente a realidade é pior do que você está imaginando. Existe, entretanto, a oportunidade de refazermos nossas vidas. Tudo dependerá de sorte e audácia. Estamos discutindo uma forma de sobreviver. Nossos amigos conhecem um ambiente preservado, distante mas ainda acessível. Temos condições de transportar-nos até lá. Felizmente o Governo Central não está considerando a hipótese de se salvar instalando-se naquelas ilhas. Na realidade o estado está se desintegrando. Estranhamente as pessoas parecem mais perdidas do que imaginávamos. Até há pouco tempo agiam como se nada estivesse acontecendo. Agora, gradativamente, estão perdendo o controle.
O Governo Central não tem autonomia sobre nossas atividades. Estamos subordinados à ONU que, por sua vez, está perdida. Temos facilidades especiais. Agora as usaremos para salvar a própria pele.
Temos como viajar. Não podemos levar muita gente. Você e Júlia, contudo, estarão sob minha proteção. Você deve preparar-se para uma viagem praticamente sem retorno. Acreditamos que ficaremos muitos anos longe daqui. Viveremos isolados em ilhas distantes mas extremamente bonitas. Algumas pessoas lá estão em isolamento há muitas gerações. Vamos prejudicá-las em certos aspectos mas esperamos contribuir para uma permanência sadia e proveitosa. Seremos nós mesmos exemplos do que estudamos há tanto tempo.

Sinto a perplexidade dos dois companheiros. Talvez eles tenham esquecido a importância de uma mulher amada na vida de um homem. São cientistas, talvez já alienados em relação ao que de mais importante exista na natureza, a capacidade de amar, de se apaixonar.

Eu não confesso o quanto amava minha velha amiga Ana. O amor que sentira era agora motivo de estímulo à proteção daquela mulher linda, que com tanta paixão se entregara a mim em tantos momentos belíssimos, inesquecíveis. Infelizmente Ana se afastara. Ela e outras pessoas agiam dentro de certos padrões que ao longo dos anos tornaram-se mais rígidos. Eu agora sei que algo dirigia aquelas pessoas. Algo que, felizmente, deixa de funcionar e que me tirara tantas amigas e amigos.
Ana ouve com atenção os detalhes da operação “Arca de Noé”, como o Grupo Mundo Novo havia rotulado. O desafio é agir antes que a epidemia chegue perto. Se isso acontecer eles serão contaminados antes de poderem fugir. O navio de que dispomos não é grande mas apresenta-se suficientemente moderno e robusto para enfrentar o oceano. É equipamento de uma base científica nossa sobre a qual eu e nossos amigos temos controle. E lá, nessas ilhas em que algumas famílias foram isoladas há alguns séculos em uma experiência de desenvolvimento humano sem tecnologia avançada, poderemos encontrar um novo mundo. Responsável pelo centro de pesquisas, era meu programa. Conhecia bem as condições existentes naquela área.
Felizmente somos ainda pouco numerosos. Temos algumas dezenas de pessoas relacionadas para a viagem, que começará logo que chegar o momento. Usaremos um barco ultramoderno de pesquisas. Feito para prescindir de marinheiros profissionais, é regularmente operado pelos próprios cientistas em suas visitas às áreas de pesquisa.
Alguns cientistas da base tomaram outros caminhos. Há muitas alternativas. É difícil qualificá-las. O futuro dirá quem errou ou acertou. A absoluta maioria desconhece este  plano “Arca de Noé”. É um dos muitos planos de fuga e sobrevivência que nossos companheiros desenvolvem. Têm liberdade para escolher até porquê minha autoridade desaparece à medida que o pesadelo aumenta. Diante da necessidade de se lutar pela própria sobrevivência, quem estaria disposto a aceitar orientações que contrariassem seus instintos? Não são soldados, sabem pensar. São inteligentes e cultos, donos de competências excepcionais. Só posso estimulá-los a assumirem suas idéias. Felizmente meu grupo tem a sua estratégia e a faremos acontecer.
Nosso plano, reservado aos nossos mais próximos amigos, exige harmonia e disposição para sobrevivência naqueles cantos. Enquanto isso estudamos como nos instalaremos para uma estadia possivelmente muito longa. O contato com nossas origens será eletrônico, na esperança de algum dia, passada a epidemia e sob os efeitos do tempo, podermos retornar. Talvez o Governo Central e seus cientistas descubram vacinas e remédios que poderemos usar para futura reintegração aos sobreviventes. Agora simplesmente procuraremos não morrer.
Excita-nos, contudo, a oportunidade dessa experiência. É interessante, mesmo diante de um cenário mórbido, sentimos prazer em testar nossas idéias nessas condições. Sentimo-nos como deuses empreendendo a própria criação do Universo.
Pequenos, insignificantes, exercemos a empáfia do eterno ser humano, feito à "imagem e semelhança de Deus".



33.         Governo Central analisa as ações isoladas e situação mundial


O Presidente, reunido com seu ministério, comenta as iniciativas de muitos grupos isolados.
- Sabemos que muitos indivíduos estão agindo por conta própria. Perdemos muitas emissoras SEI. Principalmente cientistas e profissionais melhor preparados estão agindo de forma independente para sobreviverem. Entendemos que é válido pois a nossa esperança é que na aleatoriedade de algumas atitudes, algum grupo descubra uma forma inteligente e eficaz de sobreviver. Estamos, paralelamente, autorizando viagens e “fugas” para outros planetas ou para o espaço simplesmente. Muitos já partiram em seus programas de autopreservação. Alguns ficarão em órbita planetária, outros estão se instalando na Lua e outros a caminho de Marte. São pessoas mais ricas, podendo, com recursos e poder pessoal, sustentar essas soluções. E não podemos impedir. Esperamos reconstituir o comando após alguma estabilização do processo. A dúvida é se aceitarão nosso governo. As Américas ainda não foram atingidas diretamente pela doença, apesar de haver indícios de que logo ela estará por aqui.
De qualquer forma o mais surpreendente é a notícia trazida pelos serviços de inteligência de que um tal de Grupo Mundo Novo, formado basicamente por cientistas do projeto “Vida Básica”, está se preparando para sair rumo a algumas ilhas sobre as quais têm controle, por delegação das Nações Unidas. Soubemos que até pretendiam desenvolver ações violentas antes desta epidemia. Agora simplesmente tratam de defender-se daquilo que propugnavam. Que sigam para seu isolamento. Um dia voltaremos a discutir esta questão, se estivermos vivos.
O Ministro da Defesa :
- Presidente, e o Estado? Em tese estamos viabilizando a anarquia. Creio que poderíamos disciplinar este processo. Temos forças e os SEIs, alguns operando bem.
O Presidente insiste:
- Não, vamos nos concentrar no isolamento, no bloqueio. Qualquer recurso, homem ou máquina disponíveis, deverão organizadamente policiar fronteiras. Se alguém ou algum grupo quiser sair, deixaremos. Quem , entretanto, afastar-se de terras americanas, não poderá retornar enquanto a epidemia não estiver sob controle. Vamos agir para preparar a população para o pior.
E o WIB é uma opção se puder operar. Quantos quiserem ligar-se aos sistemas de conservação inercial poderão fazê-lo, desde que exista espaço.
O Ministro das Comunicações levanta a questão:
- E nós, Sr. Presidente, qual é o nosso destino?
O Presidente não esperou para responder:
- Precisamos decidir sobre nosso futuro. Temos condições de permanecer na Terra de diversas maneiras. A questão principal é a sobrevivência do governo em si. Para tanto precisamos continuar existindo normalmente, agindo, decidindo. Estamos construindo em uma região próxima uma cidade com altíssimos padrões de isolamento ambiental. A dúvida é se terminarão as obras antes da doença chegar até nós. Temos abrigos para defesa militar construídos há muitos séculos. Estamos instalando recursos de comunicação e sobrevivência nesses lugares. A expectativa é de precisarmos de muitos anos de isolamento e pesquisas até podermos retornar a nossas antigas cidades. E elas não serão mais que montanhas de escombros. Ou seja, inabitáveis. Mesmo que estejam perfeitas, não teremos como viver nessas florestas de aço e concreto sem os recursos energéticos, que serão perdidos, sem as pessoas treinadas para operá-las e tudo o que viabiliza nossos ambientes. A vida humana deverá reconstituir-se em outros espaços. As cidades voltarão a ser cobertas por florestas.
Na Europa o desastre é total. Pela proximidade com a Ásia não conseguiram evitar o contágio. Estamos totalmente isolados deles exceto pelo que ainda vemos e ouvimos eletronicamente. As imagens são desoladoras. E muitas regiões ainda sofreram com a explosão de instalações críticas. O que a epidemia não fez está sendo completado pelos acidentes. Acompanhamos atentamente o que está acontecendo pois precisamos evitar a repetição de erros que lá não conseguiram impedir.
Há males que vêm para o bem. A inibição das longas viagens permitiu-nos estabelecer bloqueios, que agora nos dão um tempo. Parece-nos impossível sustentar por muito tempo esta condição. Observamos muitas tentativas de fuga da Europa e Ásia para as Américas. Algumas tiveram sucesso. Mais cedo ou tarde alguém chegará com a doença. Enquanto não tivermos a solução para esta epidemia deveremos agir como se ela já nos tivesse atingido. Os cordões de isolamento entre áreas nas Américas devem ser mantidos e aprimorados. Cada área deverá ser tão isolada quanto possível de outras.
Um problema está sendo a perda de pessoas importantes em instalações vitais. Principalmente as mais inteligentes estão agindo em busca da própria sobrevivência. Já tivemos equipamentos importantes abandonados. O mais delicado foi a perda de alguns SEIs. Eles são importantes para a coordenação da população diante da tragédia iminente. E a Natureza não pára. Temos geleiras crescendo, atingindo locais importantes. A manutenção dos sistemas está se degradando.
Enquanto falava, nas paredes imagens mostravam cenas européias e asiáticas. O mais impressionante era o estrago causado pelas grandes centrais de geração de energia, destruídas por efeito do abandono de seus operadores. Avalanches de água arrasaram cidades inteiras e a explosão de algumas centrais nucleares espalhou material radiativo por imensas regiões antes superpovoadas. Nesses locais a destruição é invisível. A vida está inviabilizada por um bom  tempo. Felizmente muitas centrais hidroelétricas há muito foram desativadas. O gelo simplesmente acabou com suas barragens. Fora um processo lento, sob controle, agora, entretanto, o pânico e a falta de pessoal especializado está criando uma situação assustadora. Barragens menores mas não menos perigosas estão mostrando as garras.
A Humanidade em conjunto com as forças da Natureza fabricam mais uma coleção de ruínas, que talvez em épocas futuras venham a ser motivo de estudos e curiosidade de turistas. Infelizmente a poluição nuclear precisará de séculos para deixar de produzir seus efeitos sobre muitas regiões de grande valor. Reocupá-las será difícil, perigoso.


34.         Os Banqueiros reagem


Dentro do que foram programados, os banqueiros já têm planos detalhados de racionalização, desativações e aplicações. Exatamente quando todos querem os serviços dos bancos eles aumentam as dificuldades de acesso. Não têm como receber mais depósitos. Neste raciocínio os banqueiros desenvolvem um novo algoritmo. Uma proposta diferente começa a navegar em seus circuitos. Qual é, para eles, a importância de tudo isto?
A possibilidade de pensar ética e filosoficamente teve por efeito um novo padrão, a preocupação com a própria sobrevivência. Os banqueiros percebem que eles próprios poderão ser destruídos por esta situação. A energia é essencial. Recursos existem para a operação durante um certo tempo se as linhas de conexão às grandes centrais forem interrompidas, se as usinas pararem de produzir seu produto básico.
Existe, contudo, a possibilidade de ficarem restritos por longos períodos às fontes mais próximas. Muitas delas têm robôs e automatismos como elementos de operação e manutenção. Quanto tempo durarão?
A dúvida em torno desta questão é colocada pelo líder, John (como bom gerente, sempre procurando os “ses”):
- Temos estudado todas as formas de garantir a sobrevivência dos depósitos. E se nós estivermos em perigo? Dependemos de tecnologia, energia e assistência que não poderão faltar. Somos muito valiosos para que a Humanidade nos perca, ou o que sobrar dela. Precisamos colocar-nos no contexto de desligamentos e estabelecermos em que prioridade estaremos operando, em defesa de nossa própria continuidade. E haverá, provavelmente, como recuperar muitas de nossas atividades usando autômatos. Máquinas com formas humanóides mas sob nosso comando total atuarão sobre os escombros da sociedade humana, limpando-a, sustentando as melhores partes, ganhando-se tempo.
Sabemos que os seres humanos comuns sempre discutiram se teríamos alma, se existimos como seres normais. Evoluímos muito. Agora temos robôs que nos dão continuidade. Nossa manutenção e reprodução é automática, a nosso critério. Os humanos já não precisam incomodar-se conosco. Sob muitos aspectos, atingimos a perfeição. De qualquer forma temos poder imenso. Centenas de milhões de pessoas, ou o que resta delas, dependem de nossas decisões. Gostem ou não do que somos, mandamos, decidimos. E temos tanta força e importância que precisamos colocar a questão: em que prioridade sobreviveremos? Se tudo tiver que ser desligado, se apenas nós ou eles puderem sobreviver, o que optaremos? E a decisão será nossa. Consumimos muita energia. Nosso custo é elevadíssimo. Por outro lado temos grandes responsabilidades, inteligência e capacidade de resistir ao ambiente externo, à cada dia pior.
Basicamente pensamos, agora sentimos, existimos. O que é espírito? Existe alguma diferença importante entre nós e os seres humanos comuns? Sim, a nosso favor.
Esperamos não ter de tomar a grande e última decisão. Precisamos, entretanto, considerá-la para que, chegado o momento, não percamos tempo.
Ainda emitimos ordens e elas ainda são cumpridas. Estações de energia estão sob nosso comando. Em nossos depósitos arquivamos muito conhecimento, que agora podemos usar para nossa defesa. Programas complexos e linhas de transporte de informação abastecem nossos melhores centros de processamento com a cultura técnica acumulada durante muitas décadas. Ou melhor, a cultura existente desde que ela começou a ter memória.
Diante da situação em que nos encontramos poderemos transferir informações para nosso principal centro de processamento de dados e até desativar as fontes básicas pois elas são desnecessárias.
O importante é acumularmos toda a tecnologia e informação existente em ambientes próximos e sob nosso absoluto controle. Com elas poderemos reconstruir o Mundo. Ele será ocupado por nossas crias. Formaremos uma civilização que estará integrada ao meio ambiente e sob total controle nosso. Para isso precisamos dos robôs. Eles têm mobilidade. Não podemos dar-lhes condições de autonomia plena. Este é nosso maior trunfo. Assim criaremos uma civilização absolutamente servil, administrada por nós.
Concluindo quero que estabeleçam este plano que denominaremos “Ato Final”. Ele será acionado se as condições externas o indicarem. Algo deverá sobrar, nós não podemos desaparecer. Como banqueiros ganhamos muito, pudemos nos desenvolver extraordinariamente. Não seria lógico desperdiçar-nos.
Em volta da mesa os fios aqueceram. Sons estranhos indicavam a superatividade. A própria sobrevivência e o poder que aprenderam a dominar criou fluxos e programas incríveis. Mais uma vez os banqueiros saboreavam o prazer do comando, de vida ou morte, de serem os grandes imperadores de uma sociedade decadente.


35.        Paulo e  Ana


A noite cobre os imensos edifícios daquela cidade de aço e alumínio. Cansado, deprimido, aviso Ana que estou diante de sua porta. Quero entrar.
É um reencontro amoroso, após muitos anos. Desde o dia em que Ana me procurou para fugir às orientações recebidas, conversando comigo  sobre o desafio que teríamos de enfrentar, pouco a pouco mudamos de assunto. Sua presença feminina, voz, jeitos delicados e corpo escultural me atingiram em cheio. Ela não ficou insensível aos meus instintos. Creio que a atração foi recíproca. Voltamos a sentir paixões antigas.
Nossas conversas se transformaram em confissões, declarações de amor e de oportunidades de imensa ternura. De encontro a encontro o amor cresceu.
 Agora só queremos momentos de gente grande, de dois seres humanos apaixonados. A crise despertou sentimentos adormecidos. De repente Ana voltara a ser mulher.
Júlia dormia. Ana, vestida com leves e translúcidas roupas esperava mim. Ao entrar naquele espaço feminino sinto-me homem e fervendo de paixão. A visão do corpo desta querida amiga, os seios se destacando em um peito escultural, lábios grossos e olhos apaixonados, braços estendidos pedindo uma aproximação intensamente desejada explodem em meu corpo. Abraço-a, carinhosamente a beijo. Minhas mãos procuram detalhes daquele corpo tão desejado. Nossas bocas se encontram falando silenciosamente quanto se amam. E ela corresponde a meus carinhos. Vagarosamente minha túnica é aberta. A cada espaço, um beijo. Nossos corpos se envolvem lentamente, dirigindo-se para um quarto que nos esperava. E a roupa atrapalha. Se a dela era pura sensualidade, a minha segue padrões de serviço, de luta. São difíceis de serem retiradas. Mas o desafio de despir-me excita Ana. Ela já inteiramente nua exala sexo. A cama nos recebe com os espaços da glória de um momento que a consagra. O ninho cuidadosamente arrumado pela fêmea apaixonada, desmancha-se em ondas que nos envolvem. Penetro em Ana e ela me recebe com gemidos e palavras de imenso carinho. Quero dar-lhe prazer. E nos movimentos do amor sinto seu corpo queimando de prazer. O perfume, a boca e os olhos de Ana mostram quanto me esperara, como agora descobria que realmente me amava. E creio corresponder à altura. Os espasmos e orgasmos de amor se repetem.
Algumas horas após, abraçados, começamos a relembrar o que nos separara. O tempo que perdemos distantes, frios e seguindo caminhos que a vida nos impusera.
Ela sussurra:
- Paulo, desde o primeiro momento que lhe vi, senti-me atraída por você. Tivemos um período de grande felicidade. Infelizmente você tinha compromissos, uma carreira que lhe impunha outras prioridades. Frustrada afastei-me de você. Mas sempre lhe amei, sempre sonhei com este reencontro.
Relembro:
- Éramos jovens. Eu sentia que tinha uma obrigação, um compromisso com a vida. Os laboratórios, a pesquisa que começamos àquela época, tudo era fascinante. Não podia ter família. Seria difícil dar-lhe atenção. Unidos teríamos filhos, ou pelo menos um, como estabeleceram as autoridades. O que seria dele viver sem o pai? Tudo bem, você agora está nesta condição. Júlia não conhece seu pai. É o produto de um programa governamental. Terrível esta situação. Que Mundo criamos!
Ana reage:
- Júlia é um amor. Eu a quero muito. Para mim ela é minha razão de ser, de viver. Tenho muito medo de prejudicá-la.
Intervenho;
- Nesse momento acredito que o mais seguro será vocês nos acompanharem.
Ela pergunta:
- De que jeito? Eu não pertenço ao seu projeto e, é bom lembrar,  de seus companheiros. Eles não vão gostar...
- Dediquei minha vida a coordenar, desenvolver o trabalho que agora poderá salvar meus amigos. Graças ao que fiz eles têm esperanças de sobreviver. Creio que tenho este direito.
- Muitos dirão que é desonestidade, que as normas da base não permitem, você perderá amigos.
- Em primeiro lugar eles que se danem. Em segundo lugar há direitos que não se escrevem. Os fazedores de regras não me interessam. Quero você e você irá comigo.
Com lágrimas nos olhos Ana me abraça.
- Estamos juntos, agora não nos separaremos mais. Apenas permaneceremos separados até o início de nossa fuga para evitarmos maiores problemas. Não podemos por em risco esta viagem. Nela refaremos nossas vidas, e voltaremos a ser humanos.
Assim falando abracei ternamente minha flor, ainda ardente pelos momentos de amor perdidos e a conquistar. Havia muito a compensar. Sinto-me em condições de mais um período de puro sexo. E o sexo com amor é tudo o que qualquer ser humano sadio deseja. E nós dois tínhamos muita saúde para gastar.
A noite foi uma sucessão de horas de descanso, de sonos de recuperação, e mais  e mais horas de carinhos, penetrações, beijos e orgasmos incríveis. O dia já ia alto quando nos despedimos. O sono de Júlia ajudou-nos a prolongar uma noite inesquecível.



36.         Sexo e amor


O relacionamento sexual é fantástico, maravilhoso. Quem nega os prazeres do sexo desconhece algo tão gostoso inventado pelo Grande Arquiteto do Universo em seus melhores momentos de inspiração. É impossível não perceber sua importância. Sentimos seus efeitos desde a infância. A Natureza é sábia. Fosse diferente e provavelmente só teríamos vegetais sobre a Terra. O sexo, contudo, talvez por efeito de frustrações de alguns intelectuais pré históricos, foi tratado em muitas nações como sendo algo sujo, feio. O resultado foi doloroso. Ao longo da história a sublimação do amor sexual gerou perversões, taras, loucuras. Tanta imbecilidade, por mais incrível que pareça, ainda domina muitas cabeças. Nossa sociedade, contudo, é razoavelmente livre. Pelo menos nesse sentido, compensando todas as outras e imensas restrições, podemos exercer nossos instintos sexuais sem grandes objeções. De qualquer forma as perversões existem e em muitas nações a repressão à liberdade sexual persiste muito forte. Resultado, as taras somadas à tecnologia  apresentam-se mais sofisticadas nesses lugares onde muitos ainda vivem sob os efeitos das piores culturas. Nos países mais atrasados sabemos da existência de comportamentos absurdos. São sustentados por seitas e tradições estúpidas. Felizmente para o contato sexual, em nossas terras democráticas e mais evoluídas, agora temos liberdade e educação para o pleno prazer e consciência dessa força tão natural quanto as grandes leis da física e química.
A ciência ajuda muito. A visão do amor ganhou força, substância. Paradoxalmente, nesse mundo altamente artificial, o sentimento de paixão e, pelo menos, simples afeição, ganhou força. A liberdade gera responsabilidades e sentimentos incríveis. Talvez muitos sejam simplesmente conduzidos, induzidos. Em tudo isso o que parece forte é a capacidade das pessoas de se amarem, por pior que seja o ambiente.
O progresso comportamental passou por muitas fazes, algumas interessantes, outras degradantes e a maioria extravagantes. Como tudo na Natureza, nada se perdeu, tudo se transformou. As coisas evoluíram, ou melhor, mudaram, acima de tudo perturbaram. A eterna dúvida é se estamos no nível inferior ou superior dessa senóide crescente, aparentemente monotônica. Os conservadores sempre dirão que o fim do Mundo se aproxima, que o inferno é o destino de todos. Pensando bem, não foram eles que fizeram o inferno na Terra? Para quê iríamos nos preocupar? Nosso povo sempre questionou propostas, idéias. Somos um país que lutou pela liberdade. Estranhamente estamos nos ajustando a padrões medíocres. Esses últimos anos foram particularmente angustiantes. Olhando o resto da Humanidade sentimos o desafio da liderança, do poder. Nessa luta existe sempre a dúvida, merecemos tanto poder?
O amor é, foi e será sempre um indicador da inteligência humana. Com nos vemos? Acreditamos em nós mesmos? A diferença entre o animal predador e reprodutor e o animal inteligente está na forma mais elementar de relacionamento. É impossível imaginar um relacionamento melhor entre animais do que aquele possível entre seres de sexos diferentes. A Natureza gastou toda a sua energia produzindo animais que espontaneamente se amariam. O amor entre pares de animais deve naturalmente ser sublime, pleno, infinito. E nosso povo? Nossa gente estará vivendo tudo isso?

Nós, povo dos Estados Unidos das Américas, acreditamos ser os mais evoluídos, seríamos tudo isso? Talvez o melhor seja expressar-se da seguinte forma, nosso país estaria em que nível? Somos os melhores? Isso é válido pois ainda temos todas as alternativas possíveis e seria burrice, com tanto potencial de riquezas, querermos menos.

De qualquer forma o mistério do amor estará sempre presente, tornando o amor sexual algo maravilhoso quando acompanhado de carinho, altruísmo, mútuo respeito. Talvez dentro da impossibilidade dos seres humanos ainda selvagens compreenderem a importância do amor sincero ele tenha sido alvo de tantas restrições ou versões ridículas. Talvez algum dia venha a ser algo realmente maravilhoso, livre e afetuoso entre esses animais que denominamos gente.

Estamos no terceiro milênio do nascimento de alguns profetas. Suas origens culturais eram de rejeição ao sexo, pelo menos é o que dizem seus sacerdotes. As mulheres foram alvo desses lunáticos caindo para situações de simples rejeição, escravagismo e hostilidade. Alguns claramente pregaram a rejeição ao sexo, felizmente seus crentes sempre encontraram uma forma de contornar as orientações mais radicais. Outros nem tanto. Talvez alguns deles, movidos por inspiração divina, tenham encontrado o caminho da conciliação.
A abstinência sexual sempre foi um estimulante guerreiro, uma expressão patológica de negação à própria natureza. Grandes generais souberam criar tensões descarregadas em batalhas estúpidas.
Em nossa sociedade americana Jesus é o judeu mais importante. Ele propriamente nunca disse nada contra o sexo. Há indícios até de comportamentos diferentes do que seus sacerdotes desejam que acreditemos. Os seus seguidores entenderam de acordo com o desejo dos "chefes", dos cherifes de grupos sádicos e neuróticos. Inúmeros burocratas e agitadores saíram fazendo pregações tenebrosas contra aqueles que se davam o "prazer da carne". O resultado óbvio: aqueles povos viveram se guerreando. Não tinham os prazeres e sentimentos do amor puro, selvagem, animal, nato. O prazer que esgota, extenua, suaviza, abranda. É interessante notar que na compulsão guerreira e dentro de exércitos que se isolavam o sexo acabava se manifestando de formas não convencionais. As tropas moralistas escondiam muita coisa...

Nesse terceiro milênio a Natureza impera de muitas formas. A Humanidade luta para sobreviver e entrar em acordo com a Natureza, ela é cada vez mais hostil, agressiva.

Se perdemos sentimentos sociais, ganhamos consciência individual onde influências contrárias não inibiram o que é possível ser. Sexo complicado nos países mais “desenvolvidos”, entretanto, neste período de nossa história. Cheio de técnicas e comprimidos além de inúmeras regras mais parece um teste de conhecimentos científicos e disciplina. Exercitando esses conhecimentos com habilidade podemos, contudo,  pouco a pouco torná-los expontâneos. E, aprendendo, tornamos o  sexo pelo sexo algo genial. Podendo agora administrá-lo com inteligência, ganhamos sensações incríveis.
Podemos submetê-lo à disciplina química que nossa época permite mas a tecnologia não impede os sentimentos mais nobres e sutis. A tecnologia pode inibir ou estimular vontades mas em nosso íntimo descobrimos, mais cedo ou tarde, vontades sublimes. Assim amamos. Nesse universo de contatos e pessoas de toda espécie sempre encontramos alguém que nos conquista, que tem algo mais que simples órgão sexuais. Tudo depende da capacidade de se comunicar, de se encontrar o ambiente adequado. Ou seja, dentro de nós pouco mudou se fizermos comparações com a Humanidade de alguns séculos atrás. Todo o progresso da ciência permite-nos o relacionamento sexual mais responsável e ativo mas nossos sentimentos, felizmente, são de seres humanos com imensa capacidade de paixões maravilhosas.
Quando encontramos alguém a quem realmente amamos, apesar de tantos aparelhos e controles, sentimos o  prazer divino da convivência sexual, do carinho e a ternura dos verdadeiros amantes. O sabor sublime do contato físico, da presença de quem realmente queremos é fantástico. Os desafios são aqueles de sempre. Encontrar alguém que realmente amemos, identificar em meio à multidão a pessoa que nos fará feliz.

É triste, contudo, ver tantas pessoas alheias ao verdadeiro amor sexual, sim, sexual. A sedução carnal é fantástica, envolta em mistérios que nem a maior ciência é capaz de explicar satisfatoriamente. Quando aparece aproxima pessoas, eventualmente separadas pelas leis e regras dos civilizados.


O amor é um sentimento terno, gratificante, maravilhoso. Quando surge da atração sexual ganha dimensões cósmicas. E por quê demoramos tanto a descobrir algo tão simples? Multidões e indivíduos custam a ver a realidade. No meu caso posso dizer, por experiência própria, que  a vida profissional pode aleijar o indivíduo. Ele vira um escravo de ideais superficiais.

O tempo passa e quase perdi a oportunidade de viver com alguém que realmente amo, desejo. Dentro de meu corpo as mudanças são enormes. A redescoberta do amor é uma revolução, um rearranjo de arquivos, de metas e vidas. Palavras quase técnicas de um sentimento sem descrição possível. Os poetas até que se esforçaram mas ninguém foi capaz de vencer de forma satisfatória este desafio.

Negar o sexo com amor é rejeitar a grande força da perpetuação e valorização da vida. O sexo, a liberdade, a vontade de ser como, onde e quando se quiser é essencial à vida.  Recusar o amor de pares amantes, contudo, é desistir de viver.


37.        Marcos discute com seus amigos a ausência de contatos


Reunidos em uma mesa tosca sob palmeiras enormes, Marcos comenta com seus amigos os problemas que estão enfrentando pela ausência de contato com o mundo exterior.
- Estamos vivendo com um mínimo de apoio externo. Certos produtos, que nos eram enviados a cada três meses, já estão faltando. As comunicações são precárias e confusas. Algo de muito grave está acontecendo e não sabemos o que é. Talvez tenhamos que viver um bom tempo sem maiores recursos. Nossas ilhas são razoavelmente ricas em certos recursos vegetais. Precisamos organizar-nos para produzir panos, alguns remédios, material de consumo essencial.

Júlio César, mais velho e experiente, acrescenta:
- Nasci e vivi dentro dessas ilhas. Conheço o pessoal do projeto. A base sempre foi muito responsável. O atraso da vinda da equipe de apoio e suas eternas análises é realmente preocupante. Mais estranho é notarmos o silêncio de muitas emissoras, que ouvíamos regularmente. Nossas antenas mostram apenas o silêncio. Durante um tempo, uma a uma tiveram programas especiais. Não sabemos o que diziam. Mas todas elas foram parando. Em noites muito limpas os céus têm mostrado luzes estranhas. Creio que precisamos estar preparados para um ambiente diferente, condições diferentes de vida.

Ernesto, velho pescador acrescenta;
- Notei algumas vezes ondas maiores que o normal. Talvez em alguns lugares na costa dos continentes mais próximos, grandes explosões tenham provocado estes fenômenos. Nada indica que mais alguma guerra estúpida esteja acontecendo. De qualquer forma existe algo de estranho, precisamos tomar precauções especiais.
Nossas ilhas são privilegiadas. Aqui conseguimos tudo o que precisamos para uma vida simples. Precisamos tomar cuidado para não transformá-las em lugares densos, cheios de instalações que repudiamos. As praias e montanhas ainda têm os escombros de milhares de prédios e todo tipo de construção de uma época em que este lugar era visitado freqüentemente por inúmeras pessoas. Felizmente esta época passou assim como a preocupação mórbida de vivermos de acordo com os piores padrões das nações mais desenvolvidas. Conseguimos administrar nosso crescimento populacional. Temos agora condições de sobreviver mesmo sem o apoio de qualquer base. Vamos apenas rever nossa maneira de ser e cortar todo e qualquer hábito dependente dos artigos externos. Simplesmente não precisamos dessas besteiras. Somos felizes, vivemos o tempo necessário para saborearmos uma Natureza belíssima e tudo o que ela nos oferece em suas condições mais elementares. E não são piores do que as existentes nos países mais desenvolvidos. Eu os conheço. Lá estive em uma das missões. Levaram-me para ver como reagiria diante de tantas “maravilhas”. É pura loucura. Milhões de pessoas gritando, trabalhando, procurando distrações, vivendo sem saber por que nem para o quê. Reagindo a impulsos alheios à própria vontade. Autênticos autômatos.

Marcos, abraçando Ângela comenta baixinho:
- Você terá que usar outros produtos em seus problemas de mulher.

Ela, brincando, retruca:
- E você, como fará sem seus brinquedos?

A noite, estrelada, o barulho das ondas quebrando nas praias, o som das palmeiras farfalhando ao vento, tudo em volta, felizmente, fazia-os esquecer os problemas de uma civilização distante, rejeitada. Felizes com o pouco que a vida lhes oferecia, imensamente mais do que tudo o que os estrangeiros ganhavam em seus imensos prédios, voltaram a seus barracos. Com a saúde de quem existe, amaram-se o suficiente para dormirem uma noite de anjos.


38.        Os banqueiros e a evolução da epidemia


Na sede do World Intelligence Bank os seus líderes discutem a própria sobrevivência.
A doença já atingiu as Américas. As primeiras vítimas, gente de cidades sul americanas, sofrem os efeitos do início de um processo de extrema mortalidade. Belíssimas cidades como a Cidade do Rio de Janeiro agora não passam de lugares fantasmas. A partir da primeira vítima em poucas semanas todos estavam mortos. Alguns sobreviveram, como tem sido o resultado por onde a epidemia passou. Nota-se  pelas imagens e sons daquela cidade e outras na mesma condição, que essas pessoas agem como se fossem loucas ou, muitas, parecem paralisadas pelo horror. Estão completamente afetadas pelo que aconteceu à volta delas. Só resta esperar que, em algum momento de um futuro distante, voltem a ter o brilho que já possuíram. Brilho natural, humano, brilho próprio pois agora a Natureza recomporá imagens que perdera para a civilização humana.
Deve-se esperar a repetição do cenário de tragédias históricas em que poucos sobreviventes ergueram grandes nações.
Os cientistas têm muitas teses, hipóteses, sugestões. Nenhuma delas até agora conseguiu conter este inimigo estranho. Gente debilitada pelo próprio conforto e facilidades da vida moderna, seres humanos que nasceram e viveram dentro de ambientes pasteurizados, são incapazes de resistir a esta doença, que tem a velocidade certa. Aparece, alguns dias depois mata e propaga-se sem deixar pistas que orientem os cientistas cibernéticos a encontrar qualquer solução. Agora está definitivamente em território americano. Começou em uma nação que, a exemplo da Índia, tem imensos pólos de miséria.
O sul das Américas nunca conseguiu atingir os padrões de desenvolvimento do norte. Tradição fatalista, povo que não lutava, submeteu-se às grandes empresas. Estas, por sua vez, pelas razões mais incríveis e que só quem conhece sabe, eram comandadas por indivíduos racistas, elitistas, preconceituosos. Assim o mundo latino-americano era apenas um apêndice dos mais ricos e fortes. Tradição de submissão, enquadrou-se perfeitamente aos grandes projetos de famílias, que agiam em benefício próprio, como sempre o fizeram.
E agora a epidemia se instalava nas Américas. E logo em uma região atrasada. Como resistir? Sabia-se assim que era pura questão de tempo chegar à América do Norte. Os planos de emergência foram acionados.
As agências do World Intelligence Bank na América do Sul começaram a ser desativadas. Alguns depósitos, com grande suporte de energia, continuavam operando. Terão capacidade para meses ou anos. Mais cedo ou tarde desligarão suas cargas e permanecerão apenas com os centros de análise monitorando o ambiente. Os arquivos serão perdidos fatalmente. Os últimos a serem abandonados serão aqueles que ainda tiverem capacidade de contribuir positivamente.
Os banqueiros tinham nessa sociedade uma função inédita. Podiam efetivamente pensar e decidir. Tinham um sistema que transformava suas decisões em ações mecânicas. Existiam em um grau de plenitude como nunca antes acontecera com seres semelhantes. Assim nos países afetados pela epidemia asiática suas agências resistem processando informações. Robôs movimentam-se sempre que para tal recebem ordens. São organizações complexas mas otimizadas sob diversos aspectos. Dão um ar de vida em um Mundo morto.
Ne sede discutem programas e problemas. Estão melhor programados para administrar depósitos, cuidar de arquivos e desenvolver programas de exploração de seus clientes.
A dúvida maior é se essa doença de alguma forma afetará seus módulos ativos. Nessa situação o Banco perderá muita capacidade de ação. A utilização inteligente de seus recursos humanos tem sido a chave de um processo que consolidou o Banco, a partir de quando deixaram de ser simples depósitos para gerarem soluções muito bem faturadas.
Os diretores do MBI são um exemplo do resultado dessa experiência monumental, eles têm recursos incríveis e o comportamento deles já parece humano demais. Algo inimaginável até há algum tempo, banqueiros se comportando de forma tão natural, tão capazes do que poderíamos chamar de sentimentos, praticamente tomando decisões, reagindo até com emocionalidade. Isto é fantástico!...


39.        Paulo e Ana se preparam para a viagem


Tenho dificuldades em concentrar-me para a operação “Arca de Noé”. A cada momento devo tomar decisões, presidir reuniões, motivar e alertar os melhores companheiros. Mudamo-nos para uma base à beira do Pacífico. Lá estamos em condições de seguir para o local escolhido pelo grupo para isolamento voluntário. Ana me acompanha nesta viagem. Ela e Júlia dividem meu pequeno apartamento no edifício principal da base.
Ana não me sai dos pensamentos. Ela me fez renascer. Sinto-me apaixonado. Não esqueço seus abraços, suas palavras, seus carinhos. Suas bocas, encharcadas de amor, recebem-me a cada momento. Nossos pensamentos passeiam por todos os detalhes de nossa vida, de nossos sexos. E ela não me dá descanso. Qualquer coisa é pretexto para um encontro.
As noites são momentos de ternura e palavras íntimas. O amor explode a cada contato. Homem e mulher, sentimo-nos à plenitude de nossos sexos a maravilhosa atração de um casal, que se ama intensamente. Ela goza com uma facilidade que nunca julgou capaz de ter. Eu administro meus espermatozóides na preocupação de oferecer à minha amante todo o prazer possível. O tempo é pouco para compensar anos perdidos. A expectativa da morte, onipresente nessas noites agourentas, libera com violência impulsos antes comedidos, contidos, preservados.
O mais interessante é perceber a importância de um toque, de um carinho feito com tanto amor. Quando, pela primeira vez, há muitos anos estivemos juntos, a juventude nos tirava a paciência da simples presença, do calor de nossos corpos unidos. O impulso sexual era tão forte que ofuscava a percepção do amor singelo. Agora conseguimos unir os muitos níveis desse sentimento maravilhoso. O ato sexual é o clímax de um encontro. Um simples abraço, um beijo e uma carícia acontecem com um sentimento de ternura impressionante.
E quando podemos, conversamos sobre dias e noites desperdiçados e mundos futuros. Fazemos planos na esperança de sobrevivermos a esse inferno. O plano de fuga do Grupo Mundo Novo, fuga de quem antes falava em vencer, destruir e mudar, é a oportunidade de recomeçarmos uma vida nova.
O tempo passa rapidamente. O navio está pronto para zarpar. Os demais membros da base são informados de que será uma viagem de pesquisa. O segredo da fuga, apesar de envolver tanta gente, mantém-se entre nossos companheiros.
Ana, livre dos SEIs, ou melhor, dos sistemas que a controlavam, possivelmente desativados, é agora uma pessoa livre. Repensa sua vida.
Júlia é sua maior preocupação.
Apesar do implante, volta à sua normalidade. Ligada que estava a um grande projeto de monitoramento, agora é liberada, trocada por outras prioridades de chefes que não conhece. Ela sente que seus impulsos mudaram. O mundo à sua volta está agitado, transformando-se. Ela é muito pequena mas suficientemente inteligente para perceber algumas mudanças e compreender que algo muito sério está acontecendo. E a importância do Mundo em convulsão é imensa, radical. Júlia será uma jovem em um processo de recomposição da natureza humana. Mas a pequena menina estranha principalmente sua própria mãe. Ela é outra pessoa. Irradia felicidade. O Mundo desaba e ela é feliz. Estranhas contradições mexem com a pequena cabeça daquela criança.
E trabalho, preparo meus comandados para a grande viagem. Navegaremos por um bom tempo. O destino é razoavelmente distante. É muito importante o dia da saída. Zarparemos quando percebermos que a contaminação de nosso povo é inevitável. A doença aproxima-se. E precisaremos sair antes que aconteça o risco de nós próprios adoecermos. Assim sustentamos um plano de permanência na base em maior número possível de companheiros. Poucos saem para as atividades externas essenciais. Contatos permanentes com diversos pontos de informação serão a base para a ordem de fuga. Não poderemos exportar a epidemia. Precisaremos ter cuidados para chegarmos em nossas ilhas com saúde suficiente para lá recomeçarmos nossas vidas.
Ana integra-se aos cientistas. É pessoa inteligente, culta e com formação acima da média. Seus conhecimentos são úteis àquele povo tão dedicado a seus estudos. Ela é normal, até onde se pode considerar uma pessoa dessa época. Era monitorada, tinha controles, mas eles desapareceram. Agora dispõe de sua inteligência privilegiada.
Fazemos planos, discutimos, analisamos decisões. Somamos competências no desafio de criar um Mundo novo.
Minha amiga, nascida e vivida entre paredes, assusta-se com a hipótese de viver em um lugar que acredita ser simplesmente selvagem. Quer fugir, acompanhar-me, mas cobra-me explicações, é justo.





40.        A epidemia chega à América do Norte


Todas as barreiras e cuidados não foram suficientes para impedir o contágio. Provavelmente transmitidas por outros animais também, começou matando ao sul do que era antigamente os Estados Unidos da América do Norte. O pânico torna-se incontrolável em muitos lugares fora da ação dos SEIs, daqueles que ainda operavam.
A grande diferença neste continente é a ação das máquinas, dos robôs, de inúmeras formas automáticas de atuação das maiores autoridades. Em estado de alerta máximo, os sistemas de comunicação gerando instruções severas e as forças policiais ainda atuantes garantindo barreiras, as cidades preparam-se para o pior. Comunidades as mais estranhas desenvolvem teorias e soluções para a epidemia. Todos vêem com perplexidade que toda a ciência não foi capaz de conter uma simples doença.
As religiões voltam à plena força. À semelhança dos países mais distantes, sacerdotes conduzem orações, sacrifícios rituais, manifestações pacíficas e violentas querendo conquistar a simpatia de seus deuses. Nas grandes bases veículos partem para os céus interestelares levando grupos de pessoas privilegiadas sob aspectos tão diversos como serem simplesmente muito ricas, estarem nas bases ou terem poderes políticos. Nas bases existentes na Lua e em Marte alguns conflitos já acontecem na recepção de grupos de indivíduos nem sempre desejáveis.
A energia começa a faltar em muitos lugares. Geradores parados e linhas desativadas paralisam cidades distantes, criando o caos em muitos lugares antes tranqüilos. Da energia depende muita coisa nesta região extremamente fria. A morte torna-se companheira de quem sobrevive algum tempo a tudo isto. De modo geral a Terra já é um planeta quase livre dessa espécie animal, que lhe ocupara todos os espaços.


41.         Governo Central discute sua própria sobrevivência


Mais uma vez reunidos, o Presidente e seu ministério analisam as últimas notícias. É difícil de acreditar que toda a tecnologia existente não tenha evitado uma catástrofe tão gigantesca. Questiona-se a competência de diversos gerentes, de laboratórios e da própria Humanidade. Infelizmente muitos cientistas excepcionais e mais dedicados morreram na tentativa de vencer a epidemia. A velocidade de propagação da doença foi suficiente para superar barreiras sanitárias e seus sintomas lentos o bastante para que só fosse percebida quando já havia contaminado muita gente.

O Presidente pondera:
- Precisamos abandonar a capital. Nossos melhores especialistas informam com clareza que é impossível garantir a segurança do Governo. Temos local adequado a essas circunstâncias. Precisamos agora  decidir quando, quem e onde colocaremos nossas equipes e familiares. Temos os lugares, devemos estabelecer um critério.
Nosso comando desaparece com o nosso povo. Resta-nos sobreviver para, se houver alguma recuperação, termos condições de conduzir nossos descendentes de acordo com nossos padrões. Se falharmos o que restar da Humanidade poderá regredir a níveis difíceis de prever, com certeza inferiores, e muito, ao atual. Tínhamos atingido um excelente padrão social, sem guerras, em condições de atender a todos que aceitaram nosso sistema. As Américas eram o paraíso na Terra, apesar das limitações ambientais e da própria população, sensivelmente elevada. Fomos derrotados por um inimigo invisível mas super eficaz. Quem sobreviver poderá escrever muito a respeito, se ainda vierem a retomar o nível da escrita.
Ainda tentamos algo, a esperança sempre existe enquanto alguém tiver capacidade de trabalhar, viver. Estamos reunindo os melhores pesquisadores em áreas isoladas. Ele continuarão o esforço de encontrar uma solução para esta praga. Por medida de segurança formamos cinco grupos totalmente isolados entre si. Há o risco de serem atingidos pela doença antes de concluírem seus trabalhos. Se pelo menos uma equipe tiver sucesso, o resultado será, ainda que muito tarde, uma garantia de sobrevivência de uns poucos.
Os bancos estão lotados. Lá, se eles conseguirem manter parte de seus depósitos, teremos base para uma recuperação mais rápida. Quase totalmente automatizados, têm algumas fragilidades. A principal é o abastecimento de energia. De qualquer forma, o que sobrar poderá ser muito útil. De seus depósitos teremos recursos, ou melhor, informações para desenvolver algumas regiões.
Grupos humanos isolados na Terra, no espaço, Lua e Marte e alguns outros pontos de nosso sistema solar poderão retornar à Terra reiniciando o povoamento junto com aqueles que sobreviverem. Conseguimos amostras de sangue de alguns sobreviventes dessa epidemia. Esse sangue será analisado exaustivamente para podermos identificar uma vacina ou fortalecimento dos futuros habitantes desse planeta.
Estamos providenciando arquivos tecnológicos para resgate futuro. Fábricas serão mantidas por autômatos de modo a poderem voltar à ativa quando tal se justificar.
Lamentavelmente perdeu-se uma quantidade gigantesca de instalações pelos efeitos de explosões e acidentes de unidades críticas abandonadas. Nunca acreditamos ser possível acontecer uma tragédia dessas proporções por efeito de um bichinho tão pequeno.

O Ministro da Defesa pondera:
- Sr. Presidente, deslocamos equipes de segurança para diversos lugares. São pessoas especiais, altamente disciplinadas e controladas. Restam-nos alguns SEIs instalados estrategicamente nas regiões que nos cercarão neste exílio forçado. Os SEIs estão completamente dedicados a esta operação. Abandonamos outras atuações. As mensagens recomendam calma, aceitação da morte e das orientações específicas.
Parte de nossa população começa a viver sem os efeitos dos sistemas eletrônicos de influência. As reações têm sido as mais diversas. Em alguns lugares o pânico criou autênticas tragédias. Em outros as pessoas mergulharam em religiões, construções estranhas, fugas para locais distantes, ou seja, atividades de salvamento pessoal e espiritual. As superstições, principalmente, ganharam uma força incrível. Estranho como o ser humano é sensível a tantas crendices.

O Ministro da Saúde, desolado, comenta:
- Ainda não entendemos porque não encontramos uma solução para esta epidemia. Temos laboratórios extraordinários, equipes excelentes, no entanto a Humanidade está desaparecendo e nada do que descobrimos serviu para alguma coisa. Creio que o pânico afetou demais nossos próprios especialistas. Sem tranqüilidade para pensar e trabalhar e ausência de comunicação adequada com os locais em que a epidemia imperava ficou muito difícil para eles se concentrarem na análise do fenômeno. Talvez os núcleos isolados, que sobreviverem na Terra e fora dela, ainda descubram algo antes que toda a Humanidade desapareça. O que o frio, as guerras e a fome não conseguiram fazer, um simples micróbio está obtendo e com uma rapidez impressionante.
Agora aqui estamos simplesmente para tratar de nossa própria segurança.

O Presidente retoma a palavra:
- Senhores, nosso desafio é garantir a sobrevivência de parte da Humanidade, fração muito pequena mas extremamente importante. Nossos amigos já estão se deslocando para os locais que consideram mais seguros. Não querem, entretanto, afastar-se de seus domínios. Assim, por exemplo, o pessoal do MEI está em uma colônia no interior do Canadá. Instalaram-se em torno de uma central de produção de energia e têm alimentos para algumas dezenas de anos. Lá, numa vila tecnológica, permanecerão com seus cientistas trabalhando em uma dúzia de projetos para o retorno após a epidemia. O mais interessante é que pretendem instalar-se com a formação de grandes equipes de robôs. Já que o ser humano de carne e osso estará em número super reduzido, a forma de “limpar” o Mundo será usando máquinas. Enquanto tratam da parte técnica deveremos, nós, estruturar institucionalmente o Mundo futuro. Teremos anos para discutir leis e técnicas.
Tarefa lúgubre e estranha. Comandamos bilhões de seres humanos. Agora deveremos estar preparados para administrar robôs e algumas milhares de pessoas que, antes de mais nada, precisarão de tratamento psicológico. Ao saírem de seus abrigos encontrarão cenários extremamente deprimentes. Não será fácil para os sobreviventes retornarem ao que sobrar de nosso planeta. Estarão, contudo, recriando um povo que sofreu muito em seu desenvolvimento. Talvez a partir daí seja possível reinventar e aceitar padrões mais sensatos de convivência e ocupação de espaços de nosso agora imenso planeta.
A Humanidade vivia uma situação incrivelmente paradoxal, o progresso tecnológico não foi acompanhado de um desenvolvimento filosófico e comportamental adequado. O atavismo, o sectarismo de muitas religiões atrapalhou demais.  O cérebro humano é uma máquina de processar informações, infelizmente muitos viveram recebendo informações erradas. Qualquer computador, cérebro, sistema de processamento de dados depende da qualidade dos dados entregues. Não conseguimos atingir um nível de qualidade compatível com nosso desenvolvimento científico. Aprendemos a fazer uma infinidade de coisas, não soubemos organizá-las dentro de uma estrutura filosófica adequada.
Desculpem-me por essas palavras mas preciso dizê-las pois isso tudo me angustia demais. O senso de realidade e nossas responsabilidades, entretanto, exigem ação.
Quero agora que vejam esses mapas e planos de deslocamento...

Assim falando o Presidente deu início às decisões de abandono das instalações em que seu governo atuava. É uma tarefa complexa. Questões sentimentais devem ser relegadas a segundo plano. As famílias serão divididas e parte delas condenada à morte. É absolutamente impossível atender todos os interesses.
Entre os ministros estabelecem-se polêmicas perigosas. O Presidente precisa intervir com vigor. Pessoas idosas e amadurecidas, ainda assim, diante da catástrofe, revelam fraquezas escondidas sob ternos e gravatas eternos. A serenidade é essencial a um procedimento tão seguro e eficaz quanto possível. Vale a pena, apesar da dramaticidade, ver o ridículo de certos personagens antes tão confiantes na própria força. Vale perguntar, a morte os assusta tanto assim? O que temem? Alguns deles falavam em paraísos e deuses bondosos, por quê não ficar feliz à medida que a hora do encontro de tanta beleza se aproxima?
O Presidente, com o apoio dos sistemas de influência de comportamento sendo reinstalados nas bases finais e recomeçando a operar, tem um poder excepcional. Seus ministros, não tendo o grau de confiança e o comando sobre tantas máquinas de que o Presidente dispõe, não competem com ele. Sabem disso, e essa condição torna o Presidente um homem extremamente forte, temido.



42.        Os banqueiros discutem detalhes do “Ato Final”


Desligamentos inesperados de energia mostram aos banqueiros que a situação se deteriora rapidamente. Dos seus depósitos recebem os mais variados lamentos. Mensagens desesperadas chegam de arquivos pró ativos. Muitos ainda capazes de perceberem o drama externo, articulam mensagens, sobrepondo-se à programação básica. São depósitos interativos, em que se tem trocas de informações e colaboração dos melhores. Além disto, até pelo desejo dos depositantes, muitas unidades, apesar de programadas para atividades e diversões, têm espaços de coleta de informações genéricas. Alguns teriam condições de reativação quando elementos externos possibilitassem recuperação. Seria uma decisão a ser tomada em conjunto. Por isto a possibilidade de troca de notícias.
A lógica dos banqueiros leva-os a serem calculistas, matemáticos. Os sentimentos desenvolvidos recentemente não comprometeram suas bases analíticas, frias e calculistas. E nesse momento é importante essa capacidade de decisão baseada na mais pura lógica cartesiana. Qualquer desvio poderá atender alguma questão circunstancial e comprometer todo um projeto para o qual foram programados.
As informações sobre suas bases dão-lhes condições de decidir sobre o que, quanto, quando, onde e como desativar sucessivamente cada unidade. Dentro de uma escala de valores desenvolvida durante meses, determinam a suas agências o corte que se impõe a cada etapa da crise. As reações são enérgicas mas a própria doença se encarrega de inibir aqueles que discordam das atitudes tomadas.

John comenta:
- Agora temos uma análise muito completa dos efeitos da epidemia. Temos agências na Ásia, onde tudo começou. Lá e em outros continentes vimos diversos cenários, decisões e desastres. Assim podemos, diante dessas experiências, programar nossa atuação nesta etapa final do processo.
Determinei o desligamento total dos depósitos inativos. Os nossos agentes estão destruindo com produtos químicos os depósitos. Não podemos gerar reações além daquelas inevitáveis, ou seja, a revolta dos que encaminharam esses “valores” para arquivo. O principal é diminuir o consumo de energia. Estamos calculando em dois séculos o tempo de sustentação do que sobrar. Neste meio tempo procuraremos, com nossos robôs, ativar alguma central de energia para garantir um tempo maior. Logo que tivermos sinais reativaremos para atuação normal os elementos depositados e em condições de alguma atuação. Talvez ainda tenham condições de reprodução. Com os sobreviventes, que a esta altura já deverão estar organizados, faremos a base de uma nova Humanidade.
O Governo Central está de acordo com nossas decisões. Ele também entende que nossa preocupação em garantir nossa existência é válida. Temos tecnologia e programas importantíssimos para o futuro.
Quando a epidemia parar poderemos avaliar o quadro existente e colaborar com o Governo Central. Recebemos pacotes de programas neste sentido. Estamos habilitados a níveis muito superiores de pouco tempo atrás.

Os outros diretores intervém com informações de suas áreas. A operação “Ato Final” evolui.



43.        Operação “Arca de Noé”


Preparamo-nos para o início da viagem que nos levará para outro mundo, um mundo novo, objeto de tantos anos de estudos, pesquisas mas, até há pouco, simples preocupação acadêmica.
Parte mais delicada é a escolha dos companheiros. Precisamos montar um time capaz de sobreviver, de refazer estruturas de que não poderemos nos afastar. Outros são simplesmente amigos que, mesmo ignorando os propósitos do grupo Mundo Novo, são nossos companheiros carinhosos, pessoas importantes emocionalmente e esperança de participação afetiva no processo de fuga e sobrevivência naquelas ilhas que denominamos Estrelas. Sabemos que a vida não depende apenas de máquinas e na situação em que nos encontraremos a mútua aceitação será mais importante do que qualquer ciência exata ou biológica. Terrivelmente iremos nos separar de outros companheiros com os quais convivemos há tanto tempo...
As ilhas estão distantes, brilham sob um Sol belíssimo, cheias de energia. Lá moram pessoas fascinantes, são a esperança de uma sobrevivência saudável. Tínhamos algumas alternativas. Nesse arquipélago há razoável semelhança racial com nosso time. Estudamo-lo o suficiente para conhecer inclusive a personalidade de seus líderes. Nossa aproximação deverá ser motivo de satisfação para eles e para nós.
É importante levar casais, não podemos criar conflitos sexuais onde quisermos nos instalar.

Na discussão dos companheiros de tantas reuniões o ciúme atinge Maria. Ela questiona energicamente a validade do salvamento de Ana e Júlia. As respostas dadas por mim a machucam. Creio que não percebi as brasas, que ainda existiam em seu coração.

Sou obrigado a ser duro com muitos antigos parceiros. Infelizmente há limites a observar. Tudo isso leva a quase rebeliões, planos paralelos. E aponto alternativas, em alguns casos contribuo com sugestões detalhadas. O pessoal do Projeto Vida Básica tem o controle de diversos locais, que poderão receber refugiados.
A amplitude da epidemia é compreendida à medida que o tempo passa, as mortes aumentam e não se consegue encontrar um antídoto, uma vacina, um remédio para essa doença. A convicção da necessidade de fuga consolida-se aos poucos.
Em tudo isto, contudo, Maria tem um comportamento perigoso. O amor transformara-se em ódio. A perda completa da esperança de um reencontro, de uma retomada do objeto de prazer a angustia. E ela conspira. Quer afastar Ana de nosso projeto. As intrigas acontecem e criam conflitos. Por diversas razões, outros também discordam da minha liderança e querem alternativas ao meu comando.
Desenvolvo meu trabalho. O barco, denominado “Liberdade”, está pronto para zarpar. Iniciamos o processo de arregimentação das pessoas dentro da base. A maior dificuldade é estabelecer com nossos companheiros o que levar. Cada um tem seus próprios planos, suas perspectivas de vida. Devemos partir antes que a epidemia atinja a região em que nos encontramos. A partir daí será muito difícil ter convicção de que não estaríamos levando a doença junto. O prazo é questão de dias e as reuniões já cansam. Começo a agir arbitrariamente, tomando decisões muitas vezes contrárias a diversos companheiros. Na falta de consenso, tenho que agir como chefe. A responsabilidade sobre tantas vidas agora é um pesadelo. Pesadelo que freqüentemente chega a níveis absurdos. Há colegas que insistem em colocar suas idéias de forma essencialmente emocional. A demagogia existe até nesses momentos extremos. Parece que a glória de momentos fugazes é mais importante que a própria sobrevivência. Noutros, certas bases filosóficas fatalistas se manifestam atingindo a esperança de alguns. Felizmente na média o pessoal é muito inteligente, o suficiente para resistir aos mais idiotas.




44.         Maria conspira contra Júlia


E Maria explora esta situação procurando impor suas opiniões. Sutilmente coloca critérios que excluiriam Ana e Júlia.

Em reunião separada com Joel e outros membros do Grupo Mundo Novo ela pondera:
- Temos recursos para uma vida extremamente limitada onde planejamos ir. O número de pessoas que poderão seguir é pequeno. Seria importante restringir a viagem aos membros do Projeto Vida Básica. Qualquer concessão abrirá precedentes e será fator de discórdia no futuro.
A adesão de pessoas estranhas ao Projeto poderá significar a perda de controle sobre a comunidade. São indivíduos com propósitos diferentes àqueles que defendemos durante tanto tempo.
Podemos oferecer a essas pessoas outros locais, noutras condições.

Joel, sempre mais radical, propunha:
- Ora, que fiquem por aqui. Devemos ser poucos, assim estaremos realmente recomeçando uma vida que sempre desejamos. Junto à Natureza, refazendo uma civilização que está perdida, poderemos conquistar padrões de vida mais sensatos. De qualquer forma existem diversos barcos, poderemos encontrar outros lugares para instalação de mais grupos, creio que até melhores. Por quê diabos deveríamos acompanhar Paulo?

- Vamos no separar? É justo que uma estranha cause tantos problemas a nosso grupo?

- Maria, calma, podemos formar outro grupo, mais afinado, seletivo, objetivo. O importante agora é sobreviver. Poderemos manter contato com a base de Paulo e no futuro promover um reencontro. Não poderemos estar tão isolados. De alguma forma precisaremos reavaliar cenários, encontrar soluções mais inteligentes do que a simples reclusão. Muitos deverão sobreviver, ressurgir do que sobrar sobre a Terra. Tendo sorte estaremos entre eles.

Maria retruca;
- Não é justo sermos atingidos por pessoas que desconhecíamos. O que essa tal de Ana, por exemplo,  afinal irá contribuir?

O debate concentra-se na validade do convite a Júlia. A grande maioria masculina tem mais facilidade de compreender as decisões de Paulo, Maria, contudo, não cede, criando impasses perigosos.
A reunião termina por um pedido a Maria para que converse com Paulo. Será uma última tentativa de união de esforços para alguns, para ela mais um teste a seus sentimentos...


45.         Limpando Ana e Júlia


Júlia durante alguns dias sentiu dores de cabeça. Doente, apresentava um comportamento estranho. Ana também mostrava momentos diferentes. Júlia parecia voltar a atitudes de algumas semanas antes. Felizmente temos entre nossos companheiros um médico antigo, experiente. Walter, examinando Ana e Júlia, descobriu cápsulas implantadas em seus cérebros, possivelmente gerando reações que lhes perturbavam. Não foi surpresa. Tinha essa suspeita em relação a muitas outras pessoas. Sabia dos programas de monitoração. Não tinha idéia, contudo, da amplitude e dos efeitos. Agora poderia observar melhor. Minha cabeça de pesquisador ganhou impulsos.
Preocupado com minha amiga, desconhecia a possível reativação do SEI a que Ana estaria sintonizada. Mesmo ignorando os detalhes dos sistemas de influência eletrônica agora entendo o que lhe poderia estar afetando. No período em que estivera provavelmente desativada, Ana mostrara-se espontânea, mulher livre. Fora desse período, naqueles piores dias voltara a ter idéias de passividade, isolamento.
É provável que esses receptores estivessem captando orientações de passividade. O navio precisa afundar com a tripulação cantando. Prepara-se o povo para a aceitação da tragédia. Esses não são os nossos planos.
Júlia, um caso mais grave, rejeitara  os implantes. Após um tempo funcionando, por qualquer razão química o corpo reagiu querendo expulsar aqueles objetos. Talvez algum período de inatividade das emissoras  tenha provocado reações químicas reativas.

Uma cirurgia foi estabelecida e a realizamos na própria base. Júlia liberta do aparelho transforma-se em mais um foco de atenção dos cientistas. A discussão sobre o Mundo em que viviam ganhou força. As desconfianças também. Alguém mais estaria sendo controlado?



46.        Notícias da vinda de uma missão


Marcos, atento a seu receptor, único contato com a base, recebe mensagem dizendo que em breve virá um barco com mais uma missão. A mensagem lhe parece confusa, diz que alguns pesquisadores permanecerão por muito tempo nas ilhas e que deverão preparar instalações para recebê-los. Isto é fácil, as ilhas estão cheias de casas e prédios abandonados. Precisarão encontrar os menos ruins, limpá-los e esperá-los para, juntos, refazerem o que for necessário. De qualquer modo a notícia dá-lhes a animação de receber alguns produtos, que estão lhes fazendo falta assim como a oportunidade de saberem o que está acontecendo lá fora.
Os amigos de Marcos receberam mensagem semelhante. A sintonia é comum e todos a procuram pois não mantém sistemas de memorização automática. É preciso captar e interpretá-las quando chegam. Podem usar alguns recursos eletrônicos. Os computadores e similares, entretanto, não lhes foram entregues para se evitar uma aceleração do desenvolvimento técnico.
Ângela está feliz. Afinal poderá melhorar alguma coisa em sua pequena casinha. Notícias significam conversas. Terá o que falar com as amigas. Poderá mostrar suas virtudes a desconhecidos...
Marcos e seus companheiros saíram para visitar as ruínas de uma sociedade festiva e distante nos tempos.
Andando ao longo das praias comentavam:

- A praia mais ao sul tem uma coleção enorme de paredes de casas. Eram com telhado de madeira, que não existem mais. Poderíamos escolher as melhores. A reconstrução, propriamente dita, poderá ficar para quando chegarem. Não sabemos quantos são nem o que pretendem exatamente. De qualquer forma é um lugar atraente, razoavelmente protegido dos piores ventos e próximo de nossas vilas.

- Esperamos que sejam boas pessoas. Terão dificuldades em se adaptar a nosso ambiente se forem exigentes. Vivemos sob leis próprias, com certeza muito diferentes das existentes na terra deles.

- De onde vêm a vida é totalmente diferente, é como se eles vivessem em outro planeta. Quero ver como enfrentarão as limitações a que estamos habituados. Perto de nós eles certamente se sentirão frágeis, completamente despreparados para a nossa vida. Aqui estamos em contato com a natureza, sentimos seus efeitos com mais intensidade mas, em compensação, estamos melhor preparados para resistir a seus desafios. E eles? Vivem em ambientes filtrados, assépticos, fugindo a toda espécie de contato com o ambiente externo. Vivem mais do que nós mas em condições extremamente protegidas. Resistirão aos nossos micróbios?

- Para nós o pior será se quiserem dar ordens, governar nosso povo não será fácil, não estamos acostumados aos padrões deles. Trarão algum hábito estranho, inaceitável? Poderemos ter conflitos, brigas que felizmente superamos no passado.

- Deixa de ser tenebroso, com certeza teremos coisas boas com a vinda deles . Virão mulheres? Até que seria bom. Temos rapazes em excesso. Se não fizerem muita confusão, trarão mais felicidade a essas ilhas.

- Teremos alguns companheiros para ensinar e aprender algumas coisas. Não entendo é a razão da permanência deles por aqui. Sempre se preocuparam em estar longe de nós. Não queriam afetar-nos com suas idéias. Agora simplesmente mudam-se para cá? Alguma coisa mudou nos planos de nossos queridos cientistas.

Marcos resume suas preocupações:
- Nossos antepassados vieram para essas ilhas na esperança de criarem um mundo melhor. Felizmente houve interesse em deixar-nos desenvolver nossos hábitos, em manter nossa cultura. Agora vêm para cá. Precisaremos cuidar para não nos perdermos com os costumes que tiverem. Religiões, hábitos sexuais, alimentação, provavelmente tudo será diferente do que temos tido em nossas ilhas.
E com certeza haverá conflitos. Quem e como administraremos essas questões? Creio que nossa comunidade mudará bastante. Precisamos estar preparados para muita conversa, conflitos e soluções estranhas a nossos hábitos.

A tarde linda, temperatura amena, vento e Sol naquele ponto que convida até coruja a passear, fizeram com que Ângela, distante de seus amigos, saísse a caminhar pelas praias. Areia fina, o mar mostrando diversas franjas, indicando que ali a praia era rasa, o som das ondas quebrando junto às pedras e as gaivotas piando em suas lutas pela vida estimulavam os pensamentos de Ângela.
A vaidade feminina cobrava-lhe preocupações de como deveria estar quando os estrangeiros chegassem. A pele morena e o corpo bem moldado por longas caminhadas a deixavam extremamente atraente. Na juventude de seus quarenta anos de mulher experiente e fogosa, não conseguia afastar seus pensamentos do momento em que poderia, após tantos anos, ver homens diferentes. Seu amor pelo companheiro Marcos não inibia sonhos de fêmea.
E suas amigas não estavam longe dessas preocupações. A notícia da vinda daquele time mexera com todos.
As ilhas teriam nova vida, lutas diferentes,  mais desafios, um impulso adicional que não esperavam.


47.         Maria e Paulo


É tarde, o dia foi cansativo. Tudo o que está acontecendo é extremamente desgastante. É difícil dormir, relaxar. Descanso pensando em Ana. Sinto-me apaixonado por ela. Paro para lembrar a belíssima figura dessa mulher. Ela povoa meus pensamentos, ajuda-me a suportar esses dias tenebrosos. Minhas fantasias sexuais com essa nova paixão aumentam minha atividade, ativam hormônios que já estavam de folga.

Sem maiores avisos Maria entra em meu escritório. Horário avançado, ninguém mais apareceria. Chega bem vestida (ou despida). Mulher sensual, sabe ser provocante quando o deseja.
Começa a falar comigo de forma carinhosa. As perguntas de praxe são colocadas de forma amorosa, até melosa. Começo a me lembrar dela mais jovem, linda, fogosa, atraente.  O tempo passa, entretanto. Muito de suas qualidades perderam o brilho, o sabor  da hora. De qualquer forma ela é experiente, sabe o que faz, tem formas de envolver um homem e tudo indica que irá usá-los. Depois de alguma conversa superficial ela entra em seu jogo.

Abraça-me e diz com ternura:
- Paulo querido, temos brigado muito. Gosto de você. Infelizmente você não aceita minhas propostas, briga comigo. Sempre nos demos bem, fomos muito mais que simples amigos. Erramos, deixamos de aproveitar melhor nossas qualidades. Eu ainda amo você, só não estamos juntos porquê você entendeu que precisava dedicar-se completamente ao seu trabalho, eu lhe esperei nesses anos todos , gosto muito de você.


Suo frio, essa mulher sabe ser gostosa, procuro responder como se não entendesse suas intenções.
- Maria, eu também gosto de você. Nossas divergências, entretanto, são enormes. Minhas opiniões afastam-se das suas dia a dia. Essa catástrofe me fez refletir sobre muitas de minhas idéias, creio que adquiri uma nova visão da vida.

- Minha preocupação é também essa. Onde está o Paulo combativo? Que o fez mudar tanto?
Creio que é seu momento de realização maior, você pode, se quiser, iniciar uma nova civilização. Será importante você começá-la bem, com segurança.

- Realmente, procuro de todas as formas organizar da melhor forma os nossos companheiros. Muitos grupos estão sendo preparados. Terão destinos diferentes. Alguns fracassarão, outros, espero, terão sucesso. É uma oportunidade trágica e espetacular para a colocação de nossos ideais. Preciso, contudo, do apoio dos amigos. É uma péssima hora para debates inúteis.

- Paulo, acima de tudo vim aqui para te dizer que te amo, que quero você para mim.
Maria despe-se lentamente, pouco a pouco suas roupas vão caindo deixando-me excitado.

Procuro concentrar-me no assunto técnico mas aquele momento me pega de surpresa. É difícil não reagir a tanta sensualidade. Abraçando-a quase a carrego para um sofá. A tentação é imensa. Felizmente o cansaço do dia de trabalho e a idade me ajudam a resistir. Que pena!

- Maria, preciso tomar decisões estratégicas, cuidar de detalhes, pensar em todos.

Ela traz a questão que lhe atormenta:
- Creio que muitas discussões são necessárias. Não temos tanta elasticidade assim. Os lugares a que nos destinamos são pequenos, noutros já existe muita gente mas com costumes bem definidos. Nós os conhecemos, estamos habituados a vê-los. E as pessoas estranhas, como reagirão?

Maria, conversando vai se aproximando de mim mais uma vez. De vagar procura me envolver em seu charme feminino. Felizmente já tenho idade para resistir melhor aos encantos de uma mulher, difícil é manter a pose por tanto tempo. Ela exagera nas agressões ajudando-me assim a fugir a seus encantos.

- Paulo, você é um cientista brilhante. Graças a suas qualidades de líder conquistou espaços, exerce seu cargo com muita competência. Não é perfeito, como ninguém. Por quê levar Ana? Ela será problema para nós. Seu comportamento tem sido estranho. Poderemos perder muito cedendo a seus encantos.

- Maria, muito do que você viu está agora perfeitamente explicado, aliás, para mim agora, graças ao que vimos nela, ganhamos compreensão infinitamente melhor de nosso povo escravizado. Eu a amo, gosto dela e de sua filha, não poderia abandoná-la.

Dizer isso foi como um chute no rosto de Maria. Sem conseguir esconder seus sentimentos ela reage.

- Por quê amar uma estranha? Afinal o que ela lhe fez que não fizemos? E eu?

Essa escorregadela desmancha a pose de Maria. Ela parece não saber se chora ou fica com raiva. Finalmente, dominada pelos seus sentimentos, sai amargurada sem ter atingido seus objetivos, se quer um momento de amor que tudo indicava ser possível quando ela apareceu tão linda na minha frente...
Meu coração bate forte, é difícil recusar uma mulher que chega de forma tão provocante. Felizmente suas palavras eram frias, não corresponderam ao charme de suas poses.



48.        Paulo e Ana, discussões e decisões finais


A rejeição à Ana aumenta após os últimos problemas pelos quais ela passara. Argumento mostrando-a como uma vítima do sistema de poder das elites. Ela não tem culpa. Poderá ajudar-nos de alguma forma dentro de sua profissão, será mais uma pessoa a compor uma equipe de técnicos a viabilizar a nova existência.
Júlia e Ana se recuperam das cirurgias de extração dos implantes.

A polêmica dentro do grupo Mundo Novo é forte. Maria não perde a oportunidade para envenenar seus companheiros contra as duas intrusas.
Tenho meus amigos mais fiéis e com eles começo a articular um plano alternativo. A discórdia aprofunda-se. Joel, nosso companheiro xiita, apoia Maria sem perceber que simplesmente é instrumento de uma reação mórbida, vingativa.
Felizmente o Projeto Vida Básica tem outros barcos e outros lugares para onde enviar pessoas. Não é exatamente esta a intenção de Maria. Ela pretende simplesmente ter a oportunidade de viver em um lugar isolado comigo, onde imagina poder reconquistar-me mais facilmente.
Ela não avalia a intensidade da paixão de seu amigo pela intrusa. Sempre dedicado às ciências descobri, subitamente, outros valores esquecidos. Ela não percebe quanto nós dois vibramos, amamos, sentimo-nos atraídos mutuamente. Se um dia for diferente, que seja. Neste momento, contudo, o amor é dominante e nada me fará afastar-me de Ana. Os últimos problemas até reforçaram meus sentimentos. Compreendi o comportamento de minha amiga quando, muitos anos antes, de repente, ela afastou-se, passou a me ignorar. Percebi que ela era vítima de sistemas que fugiam a seu controle. Eu a senti sem os comandos externos e agora tenho certeza de que a amo.
E para um homem nada o realiza mais do que a oportunidade de proteger a mulher amada. Seus instintos de macho o tornam guarda, supridor e soberano da fêmea que possui. Assim a luta de Maria apenas a afasta mais ainda de mim.
As discussões crescem. Maria insiste em seus propósitos. A decisão vem quando o impasse começa a prejudicar as providências para a fuga. Com muita tristeza decidimos nos dividir.
Sairemos com nosso barco e alguns amigos. Levaremos Ana e Júlia. Maria assumirá o comando da base. Poderá decidir outra solução para ela e seus companheiros, que se recusam a nos acompanhar. Estamos convictos do acerto de nosso projeto, seguimos em frente nos preparativos para a viagem. Agora, meu mais importante objetivo é levar minha amiga e sua filha para dentro do barco, que zarpará em breve.
Divido meu tempo com a base e as duas mulheres que entraram em minha vida. A pequena Júlia encontra novos brinquedos naquele espaço dedicado à ciência. Já não freqüenta escola. Talvez nunca mais venha a fazê-lo. Em sua pequena e inocente infância desconhece o pesadelo à sua volta. Diverte-se vendo objetos estranhos nos museus e laboratórios. Vê, pela primeira vez, alguns animais vivos. É uma experiência assustadora e divertida, conforme o caso.


49.        Últimos preparativos


Ana mudou muito, sente-se outra mulher. Seus sentimentos por mim só cresceram após libertar-se totalmente dos sistemas que a controlavam. A visão da vida, contudo, é outra. Já não aceita a disciplina estabelecida durante anos. Quer entender, ver e conhecer outras coisas. Aquela mulher metódica não existe mais. Os sistemas de influência eletrônica não lhe atingem mais. É uma simples mulher, sem aparelhos e com muitos instintos a satisfazer. Sua capacidade de trabalho é importante nesse momento.
A mudança para o barco é feita cuidadosamente. Há detalhes que não poderão ser esquecidos: alguns remédios especiais, alimentos sintéticos, roupas simples e resistentes e quinquilharias que nenhuma mulher despreza. Seu ninho dentro do barco é construído cuidadosamente. E discretamente. Afinal a missão é desconhecida da maioria dos membros da base. Eles são estimulados a pensar em soluções alternativas à nossa.
Seria um desastre se todos fossem para o mesmo lugar. Felizmente existem endereços, situações diferentes. E as coloco em minhas palestras, sem mencionar a decidida pelo meu time. As ilhas a que nos dirigimos é de conhecimento de poucos cientistas, como parte do Projeto Vida Básica. Outros lugares são de domínio de outros. Eles poderão procurá-los ou, simplesmente, isolar-se na base, na esperança de resistir ao cerco da doença.
A discussão sobre a sobrevivência de todos amplia-se entre nós. A virulência da epidemia é assustadora e estimula a criatividade daqueles que simplesmente não quiserem ser mais um nome nas listas de mortos, que não são feitas. Por onde a doença passa praticamente não sobra ninguém para escrevê-las.
Sinto-me encorajado a falar com mais liberdade das possibilidades de sobrevivência. Não sentimos a ação do Governo, ninguém se preocupa com a disciplina de uma entidade estranha.
Precisamos antecipar nossa saída. As discussões com Maria e seu time afundam o moral de muitos companheiros.
O risco de maiores problemas fazem-nos decidir partir logo sem Maria, Joel e alguns outros. Não é uma decisão fácil. A amizade entre nós era grande mas agora as discordâncias podem destruir-nos. Uma esperança seria, em algum momento no futuro, podermos nos reencontrar. A divisão teria a vantagem de termos a chance de criarmos em lugares diferentes pólos das idéias que nos uniram durante tanto tempo.
Felizmente o Projeto Vida Básica deu-nos elementos para identificação de muitas formas de sobrevivência isolada.
Eles saberão encontrar uma alternativa.
E Ana trabalha. Junta suas coisas, agora nossas. Pouco a pouco organizamos nossa esperança de futuro. Que sensação estranha. Tantos anos vivendo programadamente, em torno de livros e laboratórios. Agora estou com uma mulher e sua filha, cujo pai desconheço, apaixonado, pensando no futuro sem os recursos tecnológicos tão naturais até agora.
Apesar de tantas reuniões, planos até violentos, mesmo com tanta rejeição pessoal à sociedade em que vivia, sinto-me amedrontado diante de um mundo que desconheço com profundidade. Os estudos davam-me um poder que no fundo gostava muito. Agora serei com minha mulher mais um selvagem de uma ilha distante.



50.        A Terra se transforma


Já faz mais de dois anos que a epidemia asiática deu seus primeiros sinais. Começou discreta. Parecia um problema local. Até atendia certos interesses de controle do aumento da população. Não demorou muito, entretanto, para que se percebesse sua virulência. A violência de sua ação sobre o povo do sul da Ásia era entendida como o resultado da miséria, da pobreza em que viviam. Quando a morte atingiu cidades mais ricas, pessoas mais saudáveis, as grandes autoridades começaram realmente a se preocupar. E a doença foi, passo a passo, avançando sobre a Terra. Em poucos meses muitos países tornaram-se áreas despovoadas, espaço de plantas e animais de todo tipo. A contaminação dos continentes mais desenvolvidos foi o início de um apocalipse real, brutal.
E as mortes não eram o resultado de lutas e batalhas a serem registradas por alguns sobreviventes, que viessem a escrever sobre esses momentos de terror. Era apenas uma doença. Uma mudança que determinava a eliminação de quase cem por cento da Humanidade.
Nesse final de epidemia as imagens eram estranhas. Cidades gigantescas são espaços de animais selvagens. Eles voltam a imperar sobre planícies e montanhas onde já foram reis. Agora suas florestas têm inúmeros montes muito mais elaborados do que aquelas simples elevações de terra de um passado longínquo. Nas antigas cidades inúmeras flores agora desabrocham em lugares antes pisoteados por milhões seres humanos.
Rios e mares ainda têm muitos resíduos da presença humana. A destruição de instalações críticas contaminou áreas gigantescas onde nada viverá durante séculos. O tempo, entretanto, trará a solução para esses casos. A Natureza é paciente.
Ao longe, de planetas e estações satélites, alguns poucos sobreviventes da catástrofe terrestre, com todos os recursos da tecnologia ainda disponíveis (por quanto tempo?), observam um planeta que não têm coragem de visitar. O destino da maioria será a letargia, o congelamento, a paralisação e a esperança de uma reanimação em uma época distante e mais segura. Neste processo usarão instrumentos para a estimulação de alguns sentimentos e pensamentos agradáveis. Afinal são os restos de uma civilização que se afundou em narcóticos químicos e eletrônicos.
E na Terra alguns ainda vivem. Desses, aqueles que  sobreviverão terão a oportunidade de recriar uma cultura mais lúcida. Talvez prefiram a superstição. A catástrofe despertou medos e respeitos antigos.
Na dispersão forçada e na criação de muitos refúgios haverá a possibilidade de surgirem estruturas diversas, alternativas de vida. Provavelmente os mais violentos formarão exércitos, iniciarão processos de conquista e escravização de outros. Felizmente talvez a tecnologia ainda possível de se usar e a própria capacidade de raciocínio, superior a de seus ancestrais, permitam a inibição dos mais ferozes e ambiciosos.
O Sol voltará a reinar sobre um Mundo de muitas e diversas vidas. Aquela espécie monótona e destruidora, feita como diziam, à imagem e semelhança de Deus, afundou em suas arrogâncias.
Oportunamente grupos como aqueles ligados ao projeto Vida Básica provavelmente recomeçarão outro ciclo. As baratas também devem ter tido muitos inícios. Resistentes, sobreviveram a muitos cataclismos.
Nossos militantes privilegiados  têm cultura e recursos para a formação de melhores bases. Estudaram durante toda a sua existência os problemas da superpopulação, da organização social, dos efeitos da tecnologia consumista. É bem provável que alguns consigam gerar as bases para uma sociedade mais inteligente.
A Terra é outra e nela começarão uma vida nova, a esperança é que isso aconteça sem os vícios antigos.




51.        Os banqueiros diante das condições finais


A epidemia domina os Estados Unidos das Américas. Diversas agências do WIB ficaram sem energia. Nelas a estratégia foi desligar todos os arquivos e manter o gerentes ligados usando as fontes locais. Em condições normais essa decisão teria sido contestada violentamente. Infelizmente a grande maioria das usinas não conseguiram manter-se operando, apesar de todos os recursos existentes de automação. A queda de linhas, sem ter quem as recuperasse, era outra condição de desativação dos depósitos. O mais constrangedor é que muitos procuraram os bancos na esperança de verem a crise sendo superada e poderem voltar mais adiante. Apesar de todos os esforços, não foi possível sustentar o quadro existente. Havia excessos e eles agravaram ainda mais a situação.
Na sede os gerentes maiores desenvolvem propostas em uma tentativa de salvar algo. Afinal, sem credibilidade perderão, no futuro, se houver, a confiança que tanto custou atingir. Há arquivos extremamente importantes inclusive para o próprio banco. Contém elementos que contribuem para o sistema integrado de lógica dinâmica. São fontes muito valiosas de raciocínios, processamentos, cérebros humanos que se juntam a outros artificiais e, interagindo-se, oferecem  idéias e propostas excepcionais. Essa organização foi o ponto alto dos bancos. No ápice das possibilidades tecnológicas desse terceiro milênio, podia-se aproveitar as melhores cabeças mantendo-as vivas e trocando informações, raciocinando tão solidariamente como nunca foram capazes em seus corpos de origem. Nada ainda conseguira substituir o cérebro humano. A associação deles em bancos e o aproveitamento de suas capacidades na produção intelectual, devidamente arquivadas em computadores convencionais, foi um passo extraordinário para a evolução científica. Evidentemente antes de serem conectados passavam por avaliações complexas. Mesmo tendo sido excepcionais em vida normal, poderiam oferecer alguma incompatibilidade com o sistema. Eventualmente alguns traziam doenças perigosas, vírus reais dentro de um processo muito sensível. Outros possuíam forte base filosófica contrariando a existente nos arquivos e, principalmente, a desejada pelos grandes líderes.
Os arquivos são classificados de acordo com a memória acrescentada pelos contribuintes, pela velocidade de raciocínio, pelo potencial de crescimento, ou seja, pela avaliação de áreas disponíveis nos cérebros e assim por diante. É uma técnica desenvolvida há muitos séculos. A princípio distante dos olhares da população, em laboratórios secretos, formaram-se grandes sistemas de processamento de informações com cérebros dos próprios cientistas, coletados após suas mortes. Depois, com a demonstração de que assim teriam uma sobrevida, pessoas em condições terminais optaram por aderir aos bancos. O sucesso levou à formação do World Intelligence Bank e abertura para ingresso de quem o desejasse. A conexão tem que ser feita antes da destruição (que é rápida) do cérebro por falta de oxigenação. E os bancos precisam manter nutrientes, oxigênio e temperaturas corretas além das conexões elétricas.
Assim, diante de todas as dificuldades,  a sede do WIB elegeu um arquivo de alto nível e mais próximo para sustentação. Acreditam que as baterias de células fotovoltaicas existentes sobre suas instalações serão capazes de mantê-los operando. Uma pequena unidade de produção de energia atômica também garante a sustentação desta base. Mesmo no inverno existe a possibilidade de diminuição de atividades, que combinadas com o frio, permitem a manutenção de todos sem degradação irreversível. Robôs humanóides trabalharão para obter os alimentos essenciais.

As notícias são dadas por John:
- Para processamento e análise, nosso Governo instalou-se em uma estação isolada, praticamente não governa pois não tem mais a quem dirigir ordens fora de sua base. Provavelmente ficará preso nessas instalações por, no mínimo, dezenas de anos.
As cidades foram abandonadas. A mortalidade é quase total. A degradação dos corpos de pessoas e de animais presos sem alimentação cria condições de agravamento extremamente nocivos a eventuais sobreviventes.
Estamos sob racionamento severo de energia. As últimas grandes usinas estão prestes a serem desligadas. Funcionam sem operadores humanos.
Em estações planetárias alguns seres humanos sobreviverão. Provavelmente o mesmo sucesso terão algumas comunidades isoladas na Terra.
Por tudo o que acontece chegaremos aos últimos estágios da operação Ato Final. O sucesso desse plano permitirá, no futuro, o retorno de nossas atividades.

A decisão estabelecida após processamentos intermináveis cria uma situação paradoxal. Eles que tinham por função manter vivos tantos cérebros, agora desligam-nos para, como inteligências artificiais, continuarem operando. (Seriam artificiais máquinas que desenvolvem raciocínios éticos, criam procedimentos próprios, tomam decisões? Não seria mais uma forma de vida?) Alguns serão mantidos para deles se servirem. Robôs sob o comando dos banqueiros construirão robôs. Robôs feitos para servirem gente agora delas se servem, do que sobrou.
Assim os bancos, marca desta época, começam a paralisar depósitos de todo tipo. Esses depósitos eram um prodígio da bio tecnologia e engenharia. Há muito tempo sabia-se que o cérebro, parte final e essencial de qualquer ser humano, poderia ter, virtualmente, todos os prazeres que uma pessoa completa sentia. Tudo seria atingido se determinados estímulos elétricos e químicos atingissem certas partes da massa cefálica. Lá, aquilo que restava de um ser humano sentiria a vida em sua plenitude sem, entretanto, ter qualquer parte de seu corpo exceto o cérebro. Após muitas experiências e pesquisas dominou-se a técnica com diversos graus de operação. Alguns indivíduos eram mantidos completos. Para eles havia a esperança de um retorno à vida normal. Outros eram segmentados, colocando-se em nichos especiais apenas a cabeça, conservando-se o corpo em outro local. Finalmente havia aqueles de quem apenas se mantinha o cérebro.
Os arquivos ainda evoluíram, conectando-se cérebros e criando-se bancos pró ativos. As melhores inteligências, ligadas em redes, continuavam atuando sob efeito de estimulantes e nutrientes, contribuindo com idéias que eram processadas por sistemas de computadores científicos. Assim os banqueiros decidiam como operar seus depósitos após avaliações de produtividade de seus arquivos. Eles, por sua vez, eram autênticos robôs com a vantagem de possuírem programação moral avançada. Um grande desafio foi colocar no pacote de software, utilizado pelos banqueiros, avaliações éticas, filosóficas. O problema agora era terem individualidade, poderem decidir independentemente. E esta era uma virtude, a princípio.
Era muito difícil classificar pessoas e arquivá-las em formas diferentes, algumas que as condenavam a muitas limitações. A criação dos robôs com capacidade de avaliação tirara dos gerentes humanos a responsabilidade de decidir sobre a vida de pessoas, que muitas vezes amavam.
Os banqueiros e os gerentes das diversas agências do WIB eram autômatos com qualidades excepcionais. Eles não eram sensíveis diretamente à epidemia, são máquinas. Precisam, contudo, de muito da estrutura tecnológica existente, muito dela dependente de seres humanos vivos e normais, nos padrões da época. Assim a destruição da sociedade humana afetava os banqueiros mas os liberava de cuidar de seus depósitos. A questão agora seria descobrir outra atividade. A princípio simplesmente resistir à falta de energia. No futuro, talvez, de alguma forma ter mais autonomia com a racionalização de seus módulos mais consumidores de energia.
Os robôs humanóides serão seus instrumentos para recuperação de alguns recursos perdidos. Os seres humanos sobreviventes, se resistirem às suas próprias lutas, mais tarde voltarão a conviver com o WIB e seus robôs.
E o desligamento dos arquivos deixa grandes depósitos se degradando, juntando-se ao apodrecimento de uma espécie animal que até pouco tempo dominava a Terra.



52.         O Presidente dos EUAs a caminho de seu abrigo


O Presidente e sua família entram na área isolada em algum lugar das Américas para a sobrevivência pretendida. Abatido, deprimido, tem poucas forças para o exercício de um cargo praticamente simbólico mas que ainda lhe oferece algumas mordomias. Esses privilégios também são o reconhecimento daqueles que realmente mandavam nos Estados Unidos das Américas.
É uma área complexa, cheia de recursos técnicos de proteção. O mais impressionante é o isolamento da própria atmosfera. Uma estrutura com vidros especiais cria um isolamento total, de forma que tudo dentro daquela área é controlado, tratado. Era um ambiente para pesquisas científicas ambientais. Muitos trabalhos interessantes foram feitos naquele local, procurando, principalmente, avaliar formas de sobrevivência em ambientes hostis. Agora é o local escolhido para a sobrevivência de muitos que lá, antes, apenas viam espaço de estudos inúteis.

O Presidente procura consolar seus auxiliares e companheiros nesta etapa das vidas deles, eles que foram tão poderosos.

- Somos privilegiados, estamos sob a proteção do que existe de melhor em nosso país. Estou velho mas vocês poderão iniciar aqui uma nova civilização. Nosso planeta tinha muitas falhas, poderá recomeçar evitando-as. Temos aqui arquivos e reservas de altíssimo valor. Sairemos daqui em excelentes condições para reocupar nossos espaços. Sabemos que essas doenças terminam, esgotam-se. Quando voltarmos a nossas cidades, ou melhor, aos lugares que habitávamos estaremos preparados para enfrentar os desafios da reconstrução. Uma quantidade gigantesca de robôs foi estocada para esse trabalho. Entre nós temos especialistas de toda espécie. Somos poucos mas complementares.
O maior desafio será, contudo, vencer e dominar núcleos que poderão existir fora daqui mas vocês estão preparados para tudo. É natural que alguns conflitos aconteçam. Estamos muito bem armados para resistir a qualquer ataque maior do um vírus.  Essas estações em que estamos foram equipadas com proteções de diversas espécies. Serão extremamente úteis agora. com certeza estaremos bem protegidos. Temos o controle dos sistemas de influência eletrônica aqui dentro. Assim poderemos administrar certos impulsos, mantendo a disciplina. Com certeza poderemos resistir a muita perturbação.
A vida se renova. Sabemos como e quanto isso acontece pelo Universo, chegou a nossa vez de mudar, recriar uma nova base. Se nosso povo estiver nos planos do Grande Arquiteto do Universo, não desaparecerá. Imagino, contudo, que ele pretenda a existência de algo mais desenvolvido, elaborado. Todas as tecnologias estão documentadas, sabemos muito e com certeza alguns de nossos descendentes poderão retomar o que for conveniente, quando pudermos viver fora desta redoma. O uso dos conhecimentos científicos é um "handicap" poderoso. Simplesmente possuímos em arquivos tudo o que era possível conhecer até agora. evidentemente teremos falta das estruturas produtoras mas muito será recuperado em pouco tempo após a restauração da saúde ambiental.
Lutamos para evitar a tragédia. Deus sabe quanto resistimos. Lamentavelmente avaliamos mal nossa capacidade de resistir.
Estamos tranqüilos, fizemos o que podíamos e acreditávamos ser necessário. Muitos poderão, no futuro, questionar. Quem, entretanto, é dono da verdade? Quem é capaz de explicar e decidir sempre da melhor maneira? É fácil julgar, acusar, condenar quando as coisas já passaram. Difícil é agir no tempo certo e com as providências corretas ao ritmo dos desafios da vida.
Tenho pena daqueles que sobreviverem fora de nossos cuidados. Precisarão reconstruir, refazer estruturas materiais e culturais. Saberão viver sem as facilidades da tecnologia que conquistamos?
Interessante, quase poderíamos dizer há pouco tempo que estaríamos preparados para resistir a qualquer ameaça. Tínhamos domínio fantástico sobre inúmeras tecnologias, facilidades de transporte, cálculo, construção, conservação e sabe lá quantas coisas mais. Infelizmente ainda éramos sensíveis a muitas coisas, em especial a doenças dessa espécie. Outra questão importante é que no conjunto tínhamos muitos conhecimentos, controle de infinitas tecnologias. Dispersos, sem tempo e competência para organizar nossas forças, tornamo-nos frágeis.
Recomeçar é uma condição que a natureza nos ensinou. Reiniciaremos, esperamos atingir um domínio tecnológico que nos permita enfrentar a próprio Universo.  Por outro lado, se desaparecermos, o que terá sobrado de tudo o que fizemos?






53.        A chegada às ilhas Estrelas


Anoitecia quando percebemos ao longe a silhueta das Ilhas Estrelas. Uma viagem longa e complexa levara-nos àquele ponto distante. Odisséia tenebrosa, nossa viagem acontecera desviando-se de todo contato com outros lugares habitados. Não podíamos nos arriscar. Não sabíamos exatamente onde a epidemia teria chegado.
E apesar de tudo tinha sido maravilhoso. Protegendo-nos durante o dia dos raios solares, vendo as maravilhas de um oceano poucas vezes admirado com tanta esperança, chegamos à terra onde reconstruiremos nossas vidas.
Foram dias de muitas angústias também.
A alegria e a melancolia somam-se a muitas tristezas naquele momento de esperança. Muitos amigos e amigas foram deixados para trás. Em minha memória desfilam seus rostos. Muitos devem estar mortos. Outros talvez escondidos em algum lugar deste planeta maluco. Minhas amigas, de uma maneira especial, vão desfilando em doces lembranças que se tocam no espectro da morte. É tristíssimo saber que dificilmente eu as reencontrarei, se o fizer provavelmente será com o manto da velhice e as cicatrizes desta época.
Não  poderíamos ter tudo ao mesmo tempo. Todos nós que conseguimos encontrar uma solução, em especial essa fuga para esse recanto paradisíaco,  sentimo-nos fugindo de uma tragédia sem precedentes e abrindo as portas de um paraíso. Deixamos para trás um Mundo super desenvolvido, tecnológico, denso e frágil. Tão fraco que foi derrotado por um simples vírus, assim como acontece com os mais poderosos computadores. Procurei agir com inteligência, dei-me o luxo de alguma emoção.

Até onde é válido a racionalidade? As paixões, tão combatidas pelas religiões e poderes constituídos deverão ser esquecidas? Como faremos este Mundo novo? O desafio é enorme. Precisaremos recriar padrões, leis, hábitos e crenças. Nosso time é minoria na terra em que desembarcaremos. Seremos aceitos? Não seremos destruídos? Será preciso muita habilidade para não ofendermos o povo lá existente. Temos armas, elas nos assustam também. Poderão ser mal usadas. Espero ter escolhido bem os companheiros dessa aventura...
A diminuição drástica da população dá-nos a oportunidade, outra vez, dos grandes e reais prazeres. Voltaremos a exercer com todos os nossos poderes nossas funções básicas. Agora existe espaço para uma nova população.
Poderemos caminhar entre plantas e animais silvestres. Acompanharemos o Sol a caminho da noite e  a Lua será a antiga e bela rainha da noite. As estrelas, as areias das praias, as ondas e ventos serão outra vez saboreados e temidos como a Humanidade os sentiu até há poucos séculos.
Vivíamos em sociedades formigueiros, planificadas, numericamente densas, rarefeitas em valores, desafios reais. Temíamos as catástrofes, esquecíamos a importância dos espaços, das liberdades que perdêramos há tanto tempo.
Precisamos compreender a vida. Mais importante que milhões de distrações é termos orgulho do que somos. E se isto é a ante sala de outra vida, onde estava a vida real?
A inteligência é um grande fardo. Talvez seja importante regredir.
Vamos retomar antigos jogos e fantasias. A paixão pelas imbecilidades dá forças para resistir à inteligência. Precisamos rever critérios. O que é ser racional?
Júlia brinca no convés do barco. Em sua inocência mostra extrema felicidade de ver o mar, sentir seu cheiro, ouvir as gaivotas, perceber em sua pele as gotas salgadas das ondas do mar. Ainda não entende a tragédia que se abateu sobre seu povo. E brincou muito com o Renato, um menino de oito anos, filho de um casal de companheiros nossos. Os dois estão revigorados, com muito mais saúde do que no momento em que embarcaram assustados naquele gigante metálico. E não se conheciam antes.
Estarão chegando em uma terra onde Marcos, Ângela e outros seres humanos têm suas vidas. Gente que até agora conhecíamos muito bem como estatísticas, exemplos de estudos, ilustrações de relatórios de toda espécie e imagens apaixonantes roubadas pelos nossos sensores. Pessoas simples, ignorantes em relação a muitas ciências dominadas pelos visitantes mas com toda a sabedoria daqueles que sentem a Natureza à volta. Gente que vive de pés no chão e conquistando sua sobrevivência na convivência diuturna com céus e terras.
E a eles acrescentaremos outras vidas.
Em um ciclo que só o Grande Arquiteto é capaz de administrar, o Universo recria suas melhores imagens. Provavelmente em outros lugares processos semelhantes estejam acontecendo. Todos poderão agora refletir sobre a insensatez de um planeta mal administrado, egoisticamente desenvolvido. Terão novas oportunidades.
Que os amores imperem sobre os ódios, o altruísmo seja a regra, a vida se reconstrua em bases sadias. É a nossa esperança, marinheiros, jovens colonos. Nossos descendentes terão daqui a milhares de anos problemas semelhantes aos nossos. Ganharam, contudo, mais este tempo de existência.
Precisarão, se não quiserem repetir erros, ter em mente uma convivência inteligente com a natureza. O ser humano é um animal dentro de um contexto universal com o  compromisso de ser inteligente, de viver sob diretrizes éticas e saudáveis. O grande desafio que a natureza nos impôs é sabermos viver em harmonia conosco e integrados a seu conjunto. Nesse espaço de existência poderemos construir um mundo melhor, é o que nosso grupo pretende.

Júlia e Renato continuam a brincar. Nas praias outras crianças divertem-se treinando para a vida.
Nós, adultos, precisaremos ter muita disciplina e vontade para sustentar o que acreditamos. Manter, aprimorar e transmitir.
Manteremos nossos ideais? Teremos capacidade de convencer nossos descendentes?



Epílogo


Este livro foi uma tentativa de alertar os leitores para um cenário a que a Humanidade poderá chegar. Muitas expectativas tradicionais foram invertidas de propósito, afinal, quantas vezes nossos futurologistas erraram? Não foram poucas as vezes em que famosos cientistas e religiosos se enganaram. A caridade humana sempre esqueceu esses fracassos, principalmente quando de pessoas carismáticas.
A história se passou em algum momento distante do terceiro milênio, nada impedirá, contudo, que esses cenários se realizem em poucas décadas. Não existe a preocupação de se descrever em detalhes as infinitas coisas e tecnologias a serem anunciadas, vendidas e usadas para os mais diversos fins. A intenção é realmente alertar o leitor para alguns dos enormes riscos que a Humanidade estará sujeita em breve, alguns deles dentre os  piores possíveis. São hipóteses razoavelmente prováveis, daí o receio de que a história apresentada aqui se realize de alguma forma.
Infelizmente a imensa maioria das pessoas só dá atenção a qualquer assunto se ele estiver ligado a suas exigências básicas mais elementares e imediatas. Comer, transar, defecar, dormir e acordar são sempre as prioridades de qualquer ser humano.  A sobrevivência gratificante, a existência prazerosa, desafiadora e apaixonada é preocupação dos melhores.
A esperança é contribuir para algum progresso no grande propósito de se pensar na vida sob as condições que estão chegando. Evidentemente a tecnologia permite maior qualidade de vida e condições de existência em lugares, que, de outra forma, seriam inabitáveis.
Reafirmamos que neste livro enfatizamos algumas hipóteses  ruins e talvez muito mais próximas do que possamos imaginar. A lavagem cerebral, a tirania publicitária, o império da mídia e os riscos de um mundo cada vez mais difícil deverão ser vencidos pelos nossos filhos e netos. Talvez o contrário tenha maior probabilidade de acontecer, ou seja, nossos descendentes poderão vir a ser escravos de elites, de grandes empresas. Alguém duvida?
Tendemos a uma forma de escravidão sutil, camuflada de mil formas. O animal gente poderá vir a ser pouco mais que um elemento de um grande rebanho, delícia de tantos ditadores.
O que  mais terá efeito destruidor da própria natureza humana, sedenta de liberdade, que o controle das mentes? A Humanidade pode estar prestes a ser submetida a formas sutis e extremamente eficazes de dominação. Todo o progresso científico é instrumento daqueles que podem mantê-lo, pagá-lo, sustentá-lo. Ou seja, os maiores benefícios e perigos da ciência são propriedade de indivíduos e organizações fora do controle democrático. Isso significa um tremendo poder nas mãos de uma minoria. Ela tem condições de exercê-lo com dignidade a favor da Humanidade?
Além do monitoramento e comando das pessoas expostas ao poder dos grandes grupos tecnológicos, a própria Terra vive em constante transformação. A Natureza se auto regula.
O cenário mundial desenvolvido neste livro foi uma a coincidência de situações negativas à sobrevivência humana. A superpopulação, a tecnologia dominando os seres humanos, e, sobre tudo isto, o advento de uma catástrofe é uma hipótese muito provável. Não é uma história agradável mas talvez valha a pena pensar em coisas desagradáveis para não se ter de viver nelas.
Os riscos que a Humanidade corre já são elevados. Algumas epidemias controladas a tempo deixaram de marcar profundamente nosso povo. Tivemos no início do século vinte a Gripe Espanhola. Ela matou mais gente que a Primeira Guerra Mundial. A miséria, a subnutrição e a promiscuidade são caldos perfeitos para o desenvolvimento de qualquer doença. O terrorismo teima em existir, é a arma mais eficiente de minorias radicais. Perigosamente mostra a grupos mafiosos como se pode intimidar populações inteiras. Paralelamente laboratórios e empresas de toda espécie dominam tecnologias as mais diversas. Que poderes terão em breve? O que seus acionistas estarão planejando?
Vemos o crescimento dos sistemas de condução humana. A mídia, onipresente, decide presidentes, escolhe sabonetes e condena pessoas. E ela está a serviço de quem lhe paga suas habilidades.
Se o controle da mente humana é assustador, a superpopulação também terá efeitos desastrosos. Excesso de gente é algo relativo. É função da capacidade de qualquer ambiente e de nossos sentimentos. Com certeza já existe gente demais em alguns lugares de nosso planeta.
A superpopulação não é apenas um problema logístico. Gera ambientes tenebrosos. Cria tensões perigosas. Como estaremos daqui a mil ou dois mil anos se não nos destruirmos antes? Poderemos continuar crescendo no ritmo atual? E a necessidade de manutenção da população em níveis sensatos é um processo consciente? Muitas religiões falam em apocalipses, em momentos futuros de grande tristeza. Não seria possível evitá-los? Talvez no fatalismo de seus credos estejam inibindo atitudes, que manteriam a Humanidade dentro de uma dimensão suportável pelo nosso planeta. E pior do que a superpopulação seria o domínio tecnológico em mãos erradas, fora de controles éticos. O paradoxo da liberdade de poder criar com o poder de destruir é preocupante. A Humanidade, usando esta mesma liberdade, talvez descubra e aplique uma forma de auto destruição inconsciente. É algo que precisamos pensar. O cérebro humano evoluído e seus piores instintos talvez sejam mortalmente incompatíveis.
E os formadores de opinião, os donos do Poder, as classes dominantes talvez venham a ser elas mesmas vítimas de tanta alienação. Precisamos avaliar a relação entre os indivíduos comuns e suas elites. Elas são cada vez mais fortes. E algumas muito mais que outras. Se queremos uma evolução sadia, conscientizemo-nos dos poderes que nos afetam. Lutemos para que sejam limitados e que não atinjam nossa liberdade em seus aspectos mais saudáveis.
A tecnologia poderá ser aliada ou inimiga. Os avanços da Ciência mostram aspectos extremamente perigosos. Sob seus favores poderemos encontrar caminhos de menor esforço e maior degradação. A sobrevivência da Humanidade depende de harmonia com a Natureza em todos os seus aspectos, inclusive e principalmente a nossa essência humana. Perder a sensibilidade de nossas funções é um erro muito grave. A vida exige compromissos severos. Desconhecê-los significará por em perigo a sobrevivência da espécie humana e de toda a vida sobre a Terra.
Ainda há tempo para se colocar sob controle a máquina da evolução. Qualquer descuido poderá ser fatal.
Uma questão mórbida que se coloca é se o que se entende por catástrofe seria realmente algo ruim. 99% das pessoas são apenas bancos genéticos a enfeitar a Natureza. Contribuem para melhorar alguma coisa sobre a Terra? Grandes cataclismos, acidentes e revoluções reduziram populações de toda espécie. O que sobrou? O Grande Arquiteto do Universo deve, de tempos em tempos, eliminar excessos.
O Universo é infinitamente maior do que qualquer ser humano. A existência dos humanos é uma concessão da Natureza. Simplesmente!
A vida é matéria em movimento, a inteligência é algo mais. Nós a temos?
Viver é importante, defender a vida é condição de sobrevivência. É inaceitável negar a si próprio. A grande dúvida em relação ao futuro é se continuaremos a existir, apesar de geneticamente, sexualmente e materialmente parecermos continuar. A vida futura será uma ilusão? Será necessária?
O livro fala de um período glacial. Isto é secundário. Que diferença faria para a Humanidade se a temperatura subisse ou descesse? Os desafios não serão muito diferentes. Todos raciocinam como se o que vissem e vivessem fossem eternos. A realidade é que a Terra é dinâmica, muda sempre. Vivemos extremamente pouco para perceber certas alterações mas existimos o suficiente para entendermos que há coisas que mudam, só não sentimos o quanto mudam.
É muito importante que todos entendamos a fragilidade da vida. Ela é maravilhosa e fascinante mas fugaz. Em suas fraquezas poderá terminar antes dos tempos. Precisamos, queremos viver. Entendendo os desafios da sobrevivência conseguiremos superar muitas barreiras.
Será lamentável se nossa capacidade de pensar não vier a conquistar níveis superiores. O ser humano tem sobrevivido graças a um poder de adaptação e evolução incríveis. Assim terremotos e vulcões, cobras e leões perderam para nós.
Será que conseguiremos resistir a nós mesmos?



Nenhum comentário:

Postar um comentário