domingo, 23 de outubro de 2005
Índice
1.
O Presidente fala a seus
ministros
Washington é uma cidade gelada. Não está coberta de geleiras porque é
um símbolo. Gasta-se uma fábula de energia para mantê-la operando. No Palácio o
Presidente fala a seus ministros, ou melhor, discursa na tradicional sessão de
final de ano, de encerramento de mais um ano de muitas dificuldades e
surpresas.
Senhores, neste início de ano sempre é importante apresentar um balanço
sumário de nosso Governo. Tenho muito orgulho em lhes dizer que os Estados
Unidos das Américas estão em uma fase de desenvolvimento econômico sustentada
pela tecnologia e trabalho intenso e disciplinado. Podemos até dizer que o
desenvolvimento é absolutamente irrelevante para o povo. Todos os americanos já
têm garantida a própria sobrevivência com um mínimo bastante elevado. Apesar
dos problemas gerados pela queda progressiva da temperatura, da saturação de
espaços, da poluição e do esgotamento de alguns recursos naturais avançamos em
muitas frentes. Talvez exatamente por efeito desses desafios tenhamos
progredido tanto.
Na Terra e fora dela cientistas trabalham desenvolvendo toda espécie de
produto. Nossa competência tecnológica gera milhões de empregos de altíssimo
retorno. Construímos um mundo de atividades que ocupam todo americano,
evitando-se ociosidades e desperdícios. Todos em seus espaços produzem, divertem-se,
vivem.
Atingimos um padrão de distribuição de renda que teria causado inveja a
antigos comunistas. A produtividade excepcional permite-nos trabalhar menos e
produzir muito mais. Temos consciência de que a sobrevivência de todos os
americanos acima de um nível mínimo de conforto é a melhor solução para todos.
Nas Américas ninguém passa fome, frio ou sede.
As pessoas vivem felizes. É verdade que para grande parte delas a
felicidade é reforçada por técnicas eficazes. Sob os efeitos de muitas formas
de convencimento têm um cenário que aceitam positivamente. São felizes. E é
importantíssimo lembrar: comportam-se adequadamente, não perturbam. Seus rostos
mostram alegria, aceitação, objetivos bem definidos, saúde. As limitações que
impomos são absolutamente necessárias. Quem sabe um dia venhamos a ter
condições de dar-lhes mais liberdades. A liberdade que dispõem é mais do que
suficiente para se sentirem bem.
Evoluímos institucionalmente. O poder político aprendeu a viver em
simbiose perfeita com o poder econômico. Assim temos o apoio decisivo das
grandes empresas. Elas nos ajudam tremendamente na condução das multidões. Como
iríamos governá-las de outra forma? Graças às grandes corporações existe
disciplina e ajustamento a nossas limitações.
Pudemos dispensar exércitos e a violência dos presídios utilizando
novas técnicas de controle comportamental, graças à criatividade e competência
das nossas empresas. O pesadelo das cadeias não é mais necessário. Podemos
ajustar qualquer um aos nossos melhores padrões de comportamento.
Dos laboratórios e linhas de montagem saem produtos que nos trouxeram
harmonia e capacidade de sobrevivência nesse planeta disposto a nos testar.
Vale a pena refletir sobre o progresso da mídia direta e indireta. A
arte da propaganda encontra-se em níveis maravilhosos. Sem violência
conquistamos qualquer coração.
Os religiosos, eles que antes conduziam nossos povos, agora fazem suas
pregações com a tranqüilidade de administrar ovelhas amestradas. Basta-lhes
conduzir rezas e rituais. Trabalham com a certeza de saber que seus rebanhos
estarão no Paraíso quando morrerem.
É fácil sentir a importância dessa estratégia. Podemos comparar os EUA
a outros países onde o poder não existe com tanta eficácia, onde essa forma de
gerência de populações não é ainda empregada. Nesses países as agitações
continuam e a produtividade é baixa. Eles só não se mataram porquê conseguimos
desarmá-los a níveis mais seguros.
Ganhamos competitividade e altíssimos níveis de produção graças,
principalmente, à orientação subliminar de nossa gente. E todos foram
beneficiados com isso. Vivem alegres, apesar das restrições impostas pelas
limitações ambientais.
Muitos poderão questionar nossos métodos mas o que se poderia desejar
mais que a felicidade?
Nossos recursos de persuasão não convencionais funcionam, são discretos, gradativamente mais
poderosos. Consolidamos classes, demos forças às elites, agradamos o povo mais
simples. As elites sempre estiveram em conflito com o povo, agora não. A nação
está pacificada, unida, poderosa.
Conseguimos ampliar nossa ação a outros pontos do Universo. Colônias
conduzidas diretamente pelas empresas associadas a nosso governo abrigam
núcleos de obreiros em outros planetas. A Humanidade espraia-se harmonicamente.
Na Terra deixamos alguns lugares livres de nossa influência mais poderosa. Fora
dela, contudo, o espaço é nosso. Nesses lugares a disciplina é total até pelas
limitações severas dos recursos existentes. São, entretanto, esperança de
ambientes para futuras e maiores populações. Nosso trabalho é garantir espaço
vital a nosso povo.
Somos imbatíveis tecnologicamente. O poder de conquista e sustentação é
nosso. E graças à tecnologia a Engenharia Genética faz milagres. Nas Américas
não temos portadores de deficiências. Podemos recuperar qualquer lesão. As
pessoas têm a saúde que entendermos compensar objetivamente. A vida média está
acima de cento e cinqüenta anos. Poderia ser maior mas precisamos mantê-la a
níveis suportáveis, no limite de nossos poderes. Logicamente a fertilidade está
restrita ao máximo e por efeito dessa política só nascem crianças selecionadas
meticulosamente. Estamos gerando um povo feito sob medida. As Américas terão a
raça perfeita.
Lógico que existem dificuldades, não são pequenas. Felizmente sempre
conseguimos superá-las. De qualquer jeito o quadro atual não é desprezível.
Talvez o maior desafio em nossa época seja o frio. A questão principal é
sabermos com precisão quando esse processo estabilizará, chegará ao fim.
Ficamos extremamente dependentes da energia. Produzi-la, transportá-la e
distribuí-la, tudo conciliado a questões ecológicas e econômicas, está formando
um pesadelo, um desafio complicado.
Nesse contexto preocupa-nos qualquer dissidência, qualquer fuga ao
nosso controle. Sabemos que ainda teremos desafios maiores. Precisamos da
colaboração de todos. Talvez essa situação perdure por muitos séculos. É a
Natureza que estabelece suas regras. Nós simplesmente poderemos aprender a
viver em suas condições. A fragilidade de alguns sistemas, entretanto, é
preocupante. Algum grupo de malucos poderá causar prejuízos monumentais. Os
mais doidos escapam de nossos processos de influência. Quem entende o cérebro
deles?
Os controles talvez precisem aumentar. A liberdade, esta eterna utopia,
será um pouco mais afetada, reduzida. Estamos com os maiores e mais fortes.
Eles o são porque reuniram qualidades para tanto. E nós somos parte desta
elite. Bons ou maus, garantimos a sobrevivência de nosso povo. O exercício
desses poderes poderá ultrapassar limites éticos, agredir filósofos, ofender
pensadores mas é absolutamente necessário.
Tecnologia, a grande ferramenta.
Ciência e tecnologia, nosso espaço privilegiado. Por este caminho
conquistamos o Mundo e seus espaços vizinhos. Precisamos avançar mais. Para
tanto estamos acionando o WIB. Temos cérebros fantásticos, precisamos usá-los
adequadamente. A inteligência, antes sobre corpos aleatórios, agora pode
trabalhar em programas organizados, coordenados nos mínimos detalhes. Estamos
progredindo aceleradamente nesse sentido. Logo teremos uma estrutura de
produção fantástica e nela a esperança de melhores soluções para os desafios
atuais.
Senhores ministros, é fundamental uma visão estratégica, a existência
de planos para qualquer hipótese, qualquer acidente ou sucesso espetacular. Não
custa lembrar que em certos aspectos estamos nos aproximando de limites
perigosos. Ainda existem nações atrasadas, ambientes onde surpresas de toda
espécie poderão surgir.
Do espaço temos a possibilidade de outros problemas. O controle dos
asteróides e cometas é uma responsabilidade imensa e temos, felizmente, obtido
sucesso nos casos identificados.
Tudo o que tem acontecido evidencia nossa competência. E precisamos de
muita competência. Somos um país rico mas até nosso povo tem suas limitações. É
fundamental racionalizar despesas, reduzir custos. Precisamos investir muito
para resistir às transformações que nosso clima está nos impondo. São obras
gigantescas, há necessidade de muito dinheiro. Entendam dinheiro em seu
significado puro, ou seja, mobilização de trabalhadores, produção. O papel que
denominamos dinheiro é o documento de contratação e troca de produtos.
Evoluímos muito nesse sentido, felizmente já não nos encontramos dentro das
limitações, que dominaram o segundo milênio de nossa história. Tudo deve ser
visto com muito cuidado, entretanto. Quais são as nossas prioridades?
O Presidente durante horas e com imensos painéis e gráficos de toda
espécie passa a falar detalhadamente sobre os planos de seu governo. O tempo e
a paciência são gastos de acordo com a eterna capacidade dos aderentes ao poder
de agradar seus chefes. Sempre, em todos os lugares, nunca houve espaço para
mais do que um líder. O macho dominante se diverte expondo suas manias,
vontades e caprichos. E os áulicos aplaudem. Fica sempre a dúvida se o comando
é o lugar do mais forte ou daquele que ao logo do tempo teve mais capacidade de
submissão, de renúncia. Possivelmente ao longo dos tempos os dois tipos se
revezaram, aconteceram. De qualquer forma é mais provável que o tipo mais comum
tenha sido o do pusilânime, daquele que melhor serviu aos poderosos, esses
sempre ocultos mas plenos dos prazeres do comando real.
O Presidente termina sua fala:
Concluindo podemos afirmar que a responsabilidade dos Estados Unidos
das Américas é imensa. Vamos merecê-la sobrevivendo e aprimorando a vida de
nosso povo. Sabemos o que lhes interessa e temos o controle dos instrumentos de
produção. Usá-los é nossa responsabilidade e compromisso com nossos melhores
ideais.
2.
Os banqueiros analisam
débitos
Nada irrita mais uma diretoria de banco do que a inadimplência ou toda
ação do governo que lhes perturbe. Os governos agora são, mais do que nunca,
comandados por eles ou parte deles. Sobra a inadimplência como o grande vilão
de seus interesses. A sobrevivência do
MBI depende do pagamento de contas que seus clientes nem sempre entendem. No
caso do MBI essa é uma questão mais delicada pois o banco consome muita energia
e suas instalações são de alto custo. Seus serviços exigem estruturas
complexas, operadas e mantidas pelos melhores autômatos e executivos
disponíveis.
A cobrança de contas atrasadas não é fácil pois o sentimento do
benefício do serviço tende a se perder com o tempo. A imensa motivação
existente na hora do contrato diminui com o tempo. Como exigir fidelidade? O
melhor é o eterno discurso de que se hoje o débito é conseqüência de um
processo antigo, no futuro o devedor poderá estar dependendo da fidelidade de
um descendente, é prudente sustentar um comportamento coerente com os
interesses pessoais.
Os banqueiros, contudo, estão diariamente precisando tomar decisões
drásticas. O desligamento de certos clientes abandonados pela sorte é terrível.
Felizmente para eles falta-lhes sensibilidade para essas questões. Na frieza de
seus pensamentos todos são tratados como números, contas e processos. Afinal
são executivos, executam seus clientes com prazer. Os acionistas desfrutam os
lucros na sombra das leis que os protegem.
Os banqueiros preocupam-se com eventuais reações políticas,
revolucionárias e, naturalmente, de quem lhes dá ordens.
Mesmo nesse mundo altamente controlado, monitorado, ainda existe a
possibilidade de algum grupo fugir ao controle das autoridades. Principalmente
nos países mais distantes, onde o banco mantém filiais altamente lucrativas (do
contrário não estariam lá), o risco de conflitos existe preocupando os
dirigentes do MBI. Eles sabem que precisam defender instalações caríssimas,
como fazê-lo nesses lugares?
O maior custo é sempre o da segurança e mídia. Defender-se dos mais
rebeldes e dominar os mais ingênuos pelos processos de mídia é a eterna e simples receita do poder.
Na reunião os diretores comentam os efeitos dos últimos processos de
desligamento. O presidente, John, comenta:
- Precisamos desenvolver formas mais inteligentes de desligamento. O
lamento dos atingidos é terrível, perigoso. Poderemos enfrentar reações violentas. Quando começamos
nossas atividades, isso não existia mas à medida que avançamos no tempo vamos
chegando a momentos limites em que decisões mais duras acabam sendo rotinas.
Nossa rotina, entretanto, é severa. Atingimos sentimentos perigosos e capazes
de reações violentas. De dentro do próprio banco existe a possibilidade de
reações "subversivas". Nossos depósitos estão cheios de elementos
extremamente inteligentes, falta-lhes capacidade de ação física mas nada impede
que encontrem fora o que lhes falta aqui dentro
Mário, Diretor de Segurança, comenta suas providências a respeito.
- Estamos criando barreiras eletrônicas para isolamento de nossas
agências além de estarmos permanentemente atentos a toda espécie de
comunicação. O comportamento das pessoas externas é mais difícil de ser
controlado. Existe, em alguns lugares da Ásia, a possibilidade de surgir um
movimento de negação a nossos serviços. Dizem que somos simples instrumentos do
inferno, do mal. Lá o povo possui cultura clássica fortíssima, é muito difícil
manipular suas idéias.
John comenta.
- Quando pediram nossos serviços não pensavam dessa forma. Todos nos
aplaudiram pelas chances que oferecíamos de mais segurança e esperanças de mais
vida e recuperação de atividades que o tempo lhes tirara. Tudo, entretanto,
custa dinheiro, trabalho. Lamentavelmente não somos uma instituição sem custos.
Mário continua sua exposição.
- Presidente e senhores diretores, outro aspecto importante é como
destruir o que não nos interessa mais. Os técnicos até agora não encontraram
uma forma discreta, capaz de satisfazer
o patrocinadores falidos. Nossas atividades não são simples, exigindo muita
competência entre pessoas com comportamentos extremamente diferentes e
complexos.
Classificamos os clientes. Conhecemos contas e resultados. Em muitas
agências encontramos elementos extraordinários, deles aproveitamos muito e
deveremos conseguir mais no futuro pois logo teremos sistemas mais eficazes no
aproveitamento deles.
Outra hipótese é o aproveitamento na indústria. Chegamos a um ponto em
que é possível utilizar esses elementos em sistemas fantásticos, sabemos muito
bem disso pois somos produto dessa tecnologia.
A verdade é que os serviços e sub produtos de nosso Banco viabilizam
coisas inimagináveis há pouco tempo.
Os diretores pedem a palavra iniciando um debate disciplinado e
objetivo como só eles são capazes de fazer. Enquanto falam o resto de muitas
vidas são destruídas.
João, técnico de apoio ao representante dos acionistas, pensa vendo a
discussão dos banqueiros:
"Li muito sobre o Brasil, quanta semelhança com aquele país
subdesenvolvido do século 20. Naquela época, e agora vemos situação
idêntica, o povo era o material de
consumo. Creio em
reencarnação. Já fiz análises, por mais estranhas que pareçam
em nosso tempo. Nelas encontrei-me no Brasil, mais precisamente em Curitiba,
uma cidade ao sul daquele país. Quanta semelhança, monotonia, continuidade.
Será que simplesmente imagino coisas quando me parece tudo igual?
A verdade é que vejo os banqueiros e penso no Brasil...
A mediocridade não é privilégio dos sul americanos. Eles, talvez com
menos eficácia, sempre estiveram nas mãos de elites poderosas. A palavra elite
é um erro, nas mãos de gente poderosa, melhor dizendo."
3.
Laboratório de pesquisas
Alfa / Ômega
Reunião de análise e planejamento de tarefas. O Laboratório Alfa/Ômega,
mais conhecido pela sigla AO entre seus íntimos, é uma instalação para
pesquisas biológicas escondida entre outros prédios em uma grande cidade
asiática. Externamente é visto como um simples laboratório. Alguns projetos
comuns acontecem para disfarçar o verdadeiro objetivo de um time seleto de
cientistas. Desenvolvendo uma pesquisa altamente secreta, vivem um mundo
restrito, enclausurado mas de altíssimo valor para essas pessoas que adoram
desvendar e desafiar os segredos da Natureza.
Marcel é o responsável pela equipe de cientistas. Alto, magro,
encurvado pelos anos de estudos, comanda um time estranho de cientistas.
Profissionais apaixonados pela própria arte, totalmente alienados, são
autênticos escravos de suas artes. Marcel inicia a reunião:
- Meus amigos, mais uma reunião de trabalho para atrapalhar suas
pesquisas. Nosso trabalho é apaixonante mas precisamos prestar contas a nossos
patrões. Tenho acompanhado suas pesquisas e seus relatórios me deixam animado.
Aqui, agora, vamos rever alguns pontos mais delicados de nosso projeto.
Wolfgang, peço-lhe para relatar o desenvolvimento do Projeto Esfinge,
por favor.
O alemão apruma-se. O rosto vermelho e a barriga grande escondem uma
inteligência privilegiada. Após inúmeros cursos e níveis técnicos galgados com
brilhantismo em sua empresa, agora trabalha em um projeto da alta significação
para sua companhia. Orgulhosamente fala:
- Os resultados de nossas últimas experiências são fantásticos. Nossas
metas estão sendo atingidas conforme planejamos. Passo a passo estamos prestes
a desenvolver nosso primeiro filhote de destaque. Isso significa, entretanto, a
necessidade de maiores cuidados. Estamos muito adiantados mas chegando a um
nível perigoso. Nesses confins do Mundo vivemos sob riscos permanentes. A
vantagem é podermos trabalhar longe de muitos curiosos. Creio que nossos
acionistas estão satisfeitos e ficarão mais ainda quando souberem que
finalmente desenvolvemos um vírus diferente, super resistente e letal. Há pouco
tempo nossos robôs mostraram o resultado em cobaias e o teste apresentou
efeitos impressionantes. Em poucos dias estavam mortas apesar da aplicação das
melhores vacinas e remédios. É altamente veloz no processo de contágio e em
pouco tempo liqüida suas vítimas. O ambiente de ensaios está muito bem isolado,
só assim pudemos testá-lo. Evidentemente agora precisaremos desenvolver as vacinas,
que serão nosso domínio de controle dessa doença, que poderemos gerar onde e
como desejarem nossos chefes.
Nossa equipe continua a trabalhar. As maiores dificuldades estão nos
autômatos. Precisamos de peças de substituição e alguns mostram problemas no
sistema de controle. Ontem um deles quase saiu da área de isolamento,
conseguimos destruí-lo antes que atravessasse as barreiras. Se isto tivesse
acontecido o vírus que desenvolvemos teria atingido a atmosfera exterior com
resultados imprevisíveis.
Nosso desafio é manter a confiabilidade do laboratório e, agora,
conseguir, como já o dissemos, uma
vacina contra as doenças produzidas pelo vírus desenvolvido.
- Sucesso paradoxal o nosso. A partir desta etapa poderemos ser as
primeiras vítimas de nosso trabalho. Todo cuidado é pouco daqui por
diante. Nesses recantos asiáticos não
teríamos a mínima chance de socorro se viéssemos a errar.
Deveremos ter uma reunião de acionistas. Insistirei em mais recursos
para o aprimoramento de nossos sistemas de defesa. De qualquer modo é
importante o máximo de atenção.
- Para iniciar a próxima etapa de desenvolvimento das vacinas
seguiremos um padrão de ensaios que ao final envolverão seres humanos.
Felizmente na comunidade ignorante em que vivemos, superpovoada ainda por luxo,
qualquer falha controlável de nossa parte será pouco vista. Afinal que
diferença fará a perda de alguns indivíduos nesta babel terrestre?
- Somos um time de alto valor. Precisamos cuidar de nós mesmos.
Infelizmente, contudo, não teríamos como fugir em tempo se algum acidente maior
acontecer.
Como estão nossos sistemas de energia e processamento de dados, Peter?
- O mais frágil é o sistema de energia. Temos muitos recursos com
redundância mas tem-se exigido muito dos equipamentos instalados. Seria
prudente reforçá-los, até porquê se tivermos que sobreviver isoladamente será
necessário aproveitar ao máximo a energia solar, o que não é abundante ao lado
dessas montanhas geladas. O maior perigo nos sistemas de processamento de dados
e automação é o risco de algum vírus, eletrônico, software, entrar em nossos
circuitos. Ironicamente a eletrônica também tem suas doenças e elas poderão
afetar nosso mundo de carne e osso.
- Nosso Laboratório é parte importante dos planos de nossos acionistas.
Eles não são muitos mas devem compreender que o investimento enorme que fizeram
aqui precisa de mais um pouco para chegarem onde pretendem. Não sabemos
exatamente o que desejam nem é nosso padrão questionar idéias, opiniões
políticas. É importante, contudo, o máximo de atenção e levarei ao Conselho de
Administração a preocupação de vocês.
Preciso de um plano mais detalhado, um levantamento formal de
necessidades, riscos e objetivos.
Ganhamos dimensão com as descobertas recentes. Agora finalmente teremos
um produto que há muito pretendiam. Poderemos e deveremos mostrar tudo isso com
competência.
Nosso querido AO agora poderá respirar melhor. Ganhamos importância.
4.
Um encontro fortuito
Andando pelas avenidas de Miami com minhas roupas especiais - para resistir à poluição, e não estou longe
do mar, encontro alguns amigos. São antigos companheiros de cursos sobre
ecologia e meio ambiente. Envelhecidos, caminham com dificuldades em meio a um
ambiente motorizado, automatizado e agressivo.
- Olá pessoal! Que surpresa encontrá-los aqui. Perdidos na metrópole?
Não imaginava revê-los por aqui. Vocês sumiram. Alfredo, há quanto tempo não
nos encontramos. E você, Gilberto? Continua filosofando? (consegui lembrar os
nomes deles, ainda bem!. Abraçamo-nos com emoção. A caminhada diminui de
velocidade e muda de direção. Começamos a conversar) .
- Estamos bem. Passeamos um pouco, andamos revendo esta cidade feia e
bonita.
- Tudo depende dos olhos de vocês. Não estão cansados? Gente, sem
querer ofendê-los, ainda é linda.
- Não há dúvida mas é uma cidade complexa.
- Complexa?
- Sim. Aqui vemos o resultado de uma mistura entre o Norte e o Sul,
Leste e Oeste do Mundo, trópicos e árticos bem embaralhados. Mas cresceu
demais, muito além do que seria desejável.
Alfredo completa a crítica. Era um companheiro sempre contestador e uma
de suas paixões era o urbanismo. Dentro de uma visão ambientalista, via com
pesar a mania expansionista dos administradores públicos.
- Maldita mania de crescer sem parar. Destruíram muitos lugares, milhões
de pessoas mudaram-se para cá e acabaram penalizando seus descendentes...
- Por onde vocês têm estado? Vão fazer o quê?
- Descansamos de uma viagem a ilhas lá no meio do Pacífico. Não temos
mais o que fazer por aqui. Procurávamos lugares para estudos de animais há
muito extintos em nosso continente. O Gilberto e eu decidimos, com nossas
esposas, pesquisar outros mundos, onde o ser humano ainda não tenha modificado
o suficiente para deixar sua marca de destruição. Encontramos um paraíso. O
melhor estudo, entretanto, que estamos
fazendo, é reaprender a viver.
- Vocês me parecem um bocado chateados. Pelo jeito não gostam do que
vêem por aqui.
- Tem razão. A vida está ficando impossível. Esta cidade, por exemplo,
já foi um lugar maravilhoso. Agora, até para caminhar nesses calçadões
precisamos de roupas especiais. E estamos em um país rico. Nos países mais
pobres a situação é infinitamente pior. Optamos pelo isolamento. Onde
trabalhamos estamos longe de tudo isto. A Natureza é nossa companheira.
- Decisão radical. E estão conseguindo sobreviver? Vejo cabelos brancos
e alguns sinais a mais do tempo.
- Abandonamos os recursos da tecnologia. Envelhecemos, sim, mas dentro
de um processo natural. Afinal a vida também cansa. Com alguns cuidados,
contudo, ainda iremos longe. Em compensação vivemos de pés no chão, olhos
abertos para os mares e céus que nesse país vocês já não conseguem enxergar.
Não é fácil envelhecer. Por efeito de nossas inteligências temos imensa
consciência do que isso representa. Vemos em nossas mãos a pele mostrar sinais
que víamos em pessoas idosas. Nossos cabelos embranquecem, a memória falha e a
vida sexual, algo tão importante durante tanto tempo, começa a dizer que está
terminando. Vemos, contudo, quanto é maravilhoso terminar, quanto é fantástico
este “por do sol” natural. Vamos morrer em breve mas o faremos em paz com a
Natureza.
Sentimos em vocês a obsessão por uma vida inútil, o prolongamento
estéril da vida. Isso nos parece pior do que qualquer vida ou morte.
Acreditamos, também, que se valer a pena, continuaremos. Deus, isso que todos
dizem acreditar mas todos temem, pior ainda, que julgam ser nosso grande
árbitro e algoz, talvez tenha reservado para algumas espécies um destino
posterior. A curiosidade mata. Que esse suicídio seja bem vindo, acredito ser
um renascer ou um belo sono eterno.
Gilberto, mais botânico que biólogo, comenta, talvez querendo fugir de
uma lógica tão mórbida:
- E lá vemos uma quantidade enorme de plantas, de combinações aqui
perdidas. Infelizmente o excesso de gente tende a transformar tudo em alimento. E lá as
flores estão entre pedras e no meio de bosques. Nada é artificial. A população
local, pequena, vive da pesca e algumas plantações. Há séculos regulam as
próprias famílias de modo a não aumentarem muito. Não constituem problemas e
sim mais um personagem em um quadro maravilhoso. Nossa maior preocupação é não
destruir aquele paraíso.
- E o que fazem aqui? Ainda dependem do “Mundo poluído”?
- Nem tanto, viemos encerrar compromissos, contas passadas. A decisão
de romper completamente com o passado “moderno” veio há pouco tempo, após
muitos anos de convivência com os nativos daquelas ilhas. Voltaremos e
“jogaremos as chaves fora”.
- E as mulheres estão tão certas da validade destas decisões? A vaidade
delas aceita o envelhecimento?
- Elas são as maiores entusiastas do processo. Vivemos juntos e com
muito mais liberdade. As mulheres sempre me fascinaram. Elas são incríveis.
Geniais na ingenuidade, enxergam muito mais do que nós. Dentro delas há um
relógio biológico incrivelmente mais preciso que o nosso. Elas têm prazos
definidos, um número preciso de óvulos, um tempo para procriar, ter filhos,
educá-los e soltá-los. Elas foram concebidas com data de validade de que são
conscientes. Vivem a vida de uma forma absolutamente superior à nossa. Sentimos
isso em nossa comunidade isolada. Sem qualquer forma de fuga dos instintos,
elas se mostraram soberanas. Envelhecemos juntos. Sei que a partir de um
momento elas dirão, chega, parem. Sei que elas mudam. Estão acostumadas a
mudar. O ciclo menstrual tem prazo e sentimentos muito definidos. Nós, homens,
não sentimos a vida dessa forma. Recuperamos muito rapidamente nosso esperma.
Logo estamos de saco cheio e doidos para transar. É uma compulsão. Estúpida ou
maravilhosa, o fato é que acabamos não percebendo as diversas formas de amor,
de ser e estar. Estamos sempre tensos, agressivos. A velhice, contudo, traz-nos
a capacidade de pensar, de regular melhor nossos instintos. Aí começamos a ver
o Mundo de uma forma mais sadia e inteligente. Fugimos das baixezas do jovens,
das infantilidades e comportamentos compulsivos que nos perturbam e impedem um
comportamento lúcido. A inteligência é um fardo pesado mas eventualmente
agradável. Ela própria pode nos dizer como agir, governar sentimentos,
disciplinar comportamentos. Ótimo! Somos felizes. Precisamos de mais?
- Um bocado machista a visão que vocês têm das mulheres. Para ser
franco, não acredito que elas aceitem tão tranqüilamente o envelhecimento.
Aposto que alguns remédios elas escondem.
- Realmente nem tudo está errado na sociedade de vocês. Nosso desafio é
compor um equilíbrio, encontrar uma solução de compromisso entre o que
entendemos ser necessário e suficiente à vida. Acreditamos que a felicidade
está, ou melhor, precisa deste equilíbrio. Temos crenças religiosas e nelas nos
apoiamos para aceitar o envelhecimento e a morte. Isso é algo inaceitável para
os povos mais "desenvolvidos". A Humanidade mais rica desenvolveu ao
máximo o apego à vida. Nossos instintos levam-nos a lutar pela preservação da
vida, esses impulsos foram reforçados pelo culto ao consumismo, ao prazer de
existir. Tudo isso tem seu lado positivo mas também trouxe o peso da
superpopulação, da necessidade de controles, do enclausuramento do ser humano. Papo
pesado, não?
E o trabalho de vocês, como vão
as propostas malucas?
Dizer que nossas propostas são malucas mexe um pouco com meus
sentimentos mas sempre foi assim, afinal não é fácil uma pessoa entender as
pesquisas que realizamos, entre nós mesmos existe um bocado de divergências
sobre o mérito de nosso trabalho. O que posso dizer a respeito deles? Vamos ao
resumo:
- Estamos trabalhando muito, o Projeto Vida Básica é o mais romântico,
apaixonante. Acompanhamos projetos de centros de pesquisa e laboratórios
independentes, também. Procuramos, no mínimo, analisar hipóteses para o futuro.
Diversas equipes dedicam-se a pesquisas entre fascinantes, cômicas e
polêmicas. Todos elas, contudo, têm algum significado especial, nem sempre
entendido adequadamente.
Entre as alternativas mais polêmicas, a mais empolgante é a redução do
tamanho físico dos seres humanos. Assim estudamos formas de tornar a Humanidade
mais ajustável a seu ambiente simplesmente reduzindo o tamanho das pessoas.
Evidentemente não seria através de qualquer máquina redutora mas atuando sobre
os descendentes, fazendo com que as próximas gerações, gradativamente, venham a
ter o tamanho físico sustentável em nosso planetinha superpovoado.
- E o que pretendem com isto?
- Vamos lembrar os esforços feitos para aumentar a produção de
alimentos, abrir espaços e obter energia. Há muito tempo os homens, a cada
geração, nascem maiores. O homem gigante, à semelhança dos grandes lagartos da
pré história, está surgindo rapidamente.
Em nossa cultura tradicional ter filhos maiores fisicamente é bonito, motivo de
orgulho. Isso é atávico, é efeito de nossos instintos, sempre procurando mais
força, maior capacidade de conquista de espaços. Lógica errada, semelhante à da
antiga indústria automobilística. Ela demorou a inverter a mídia, a princípio
favorável aos carros cada vez maiores. O transporte individual tem um elevado
custo ambiental, maior ainda se utilizando veículos absurdamente perdulários.
Precisamos usar todo o domínio científico para, com os conhecimentos da
engenharia genética, diminuir o tamanho dos seres humanos. O consumo "per
capita" deverá diminuir em proporções significativas. O gigantismo é uma
imbecilidade antiecológica. Temos conhecimentos científicos de sobra para
reverter esse processo. Ocupamos espaços demais. Consumimos um absurdo de água,
alimentos, energia. Precisamos disso tudo? Para quê? Há evidências da
existência de seres de outros sistemas solares. Todas elas mostram indivíduos
pequenos com cabeças grandes. Pura fantasia ou pura lógica? O mínimo que
podemos ver é a importância do aumento do cérebro e a necessidade de redução
dos corpos.
- Duvido que vocês venham a ter sucesso. Principalmente os religiosos
vão gritar.
- Não é fácil. Discussões éticas e religiosas intermináveis protelam
decisões. Será preciso muito trabalho para convencer nosso povo. Aliás, seria
preciso convencer ou simplesmente haver alguma decisão que talvez tenha sido
tomada ontem?
É importante que a Humanidade inteira aceite essa proposta, seria
injusto que apenas uma parte dela se submetesse a esse tipo de ajuste. Talvez
só após um desastre maior, acontecendo problemas reais de alimentação e
acomodações de toda espécie tenhamos ambiente para uma mudança dessa espécie.
Dentro de um acordo mundial, as nações precisariam aceitar tratamentos que
reduzissem o tamanho de suas populações, o tamanho físico.
Evidentemente esse processo não poderá continuar indefinidamente. Há
limites mas a verdade é que a Humanidade precisa rapidamente encontrar uma
solução de compromisso entre o número de habitantes e os recursos e espaços
disponíveis sobre a Terra. Perdemos muito com a saturação. Estamos tendo
dificuldades crescentes e perigosas. Todo o potencial da tecnologia tem sido
usado para manter os povos bem comportados e vivos. Talvez aí esteja o grande
erro de nossa cultura. Criamos autômatos, protelamos a morte, inviabilizamos a
vida.
- Legal! Você tocou num ponto sobre o qual já temos posição firmada.
Estamos fugindo dos processos artificiais de sobrevivência. Pagamos um preço
elevado por isso mas sentimos maior coerência e felicidade estando em nossa
ilha, convivendo em harmonia com a Natureza.
- Nossos cérebros reclamam uma condição diferente. É difícil aceitar a
morte. Creio que ainda não evoluímos o suficiente para entender a vida ou, quem
sabe, acreditar realmente em outras formas de existência. As religiões dizem
isso. A grande maioria reza muito, diz acreditar em Deus mas na hora final
tremem diante do vestibular para o outro mundo. Creio que nossa sociedade nunca aceitará, como vocês o fizeram, o
envelhecimento natural. Aumentando os limites de saturação daremos ao nosso
planeta maior capacidade de sustentação de seres humanos.
- Realmente, o consumo de alimentos e energia, a ocupação de espaços e
qualidade do ar e água permanecerão constantes durante muito tempo. O
aproveitamento de espaços melhorará. Evidentemente uma questão delicada será
decidir o que diminuir e de que forma fazê-lo.
Gozação à parte não há como protelar durante muito tempo a situação
atual. A tragédia do crescimento da população humana já atinge níveis
deploráveis. Nosso Projeto Vida Básica mostra o que perdemos. É triste
constatar quão distante estamos da maravilhosa natureza. Alguém poderá dizer
que dentro dessa natureza existe a morte, as doenças. Podemos também lembrar
que temos um sentimento de afeição atávico à natureza. Alguém poderia afirmar o
próprio desprezo pelas cores e cheiros das florestas, campos e mares sem a
nossa presença? Reduzir o tamanho é a única solução antes da proposta de vida
maior sempre apresentada pelo MBI. Outra "solução" seria estimular
guerras, epidemias, "acidentes" que exterminassem uma parte da
Humanidade, tremo só de pensar... O controle da natalidade é a prática
tradicional que mostrou resultados relativamente bons. Infelizmente essa é uma
prática mais aceita pelas populações mais desenvolvidas. Enquanto os mais
inteligentes controlam a geração de filhos, os mais idiotas os têm sem qualquer
limitação.
Acredito que a redução do tamanho das pessoas é algo perfeitamente
realizável e eficaz, sem grandes traumas se acontecer gradativamente.
- Vocês estão ficando doidos. Acreditam que povos atrasados aceitarão
tratamentos neste sentido? Muitos dirão que representam a vontade de seus
deuses e só eles poderão alterar parâmetros tão importantes.
- Ou mudam ou morrerão da pior maneira.
- Vocês irão matá-los?
- Não. Mergulharão no lixo, na falta de ar, de energia, de espaços...
- Vai ser divertida a discussão do que diminuir. Você já escolheu?
- Falando tecnicamente o
principal seria reduzir a altura e o peso. Assim o consumo de alimentos e de
espaços diminuiria. Estaríamos criando novos conceitos de beleza.
O cérebro humano não poderá diminuir, já é pouco para os desafios
existentes... Braços e pernas diminuindo voltaremos, talvez, ao que éramos há
poucos séculos, ajustando-se desta forma as pessoas às estruturas físicas
daquela época. Seria importante, contudo, chegarmos a dimensões menores...
- A verdade é que poderemos rever padrões e economizar uma fábula de recursos,
desperdiçados atualmente para sustentar tantos indivíduos desnecessariamente
grandes.
- Fico imaginando a forma física de nosso povo futuro. Até que é
divertido pensar a respeito. Talvez algum esforço e processos de mídia sejam
usados para convencer principalmente as mulheres de que o "pequeno é
bonito"....
- Pelo que vejo realmente poderemos estar mergulhando na manipulação
genética. Desse jeito logo seremos iguais às formigas, existirão as operárias,
o zangões, a rainha procriadora. É apavorante imaginar a Humanidade se
transformando num aglomerado de pessoas hiper controladas, em que até o
desenvolvimento genético venha a ser planejado.
Há tecnologia para isso.
- E esse negócio de Ets não seria pura fantasia?
- Os "ETs" devem existir, é minha teoria. Nesse universo
infinito é ridículo imaginar que a Humanidade seja a única espécie inteligente.
As limitações físicas, as imensas distâncias é que impedem maiores contatos.
Talvez eles estejam acontecendo, não temos certeza. Os registros de comunicação
existentes não são de domínio público exceto aqueles que "escaparam"
do controle das autoridades.
- E os banqueiros? Eles pouco a pouco estão acumulando força, não
apenas pela riqueza mas pelo volume e utilização de seus depósitos. Se
utilizados adequadamente serão computadores formidáveis à disposição de seus
acionistas. O mais incrível é a semelhança impressionante deles com o mais
comum dos seres humanos. A mesquinharia parece conquistar suas lógicas. Seus
chefes conseguiram a perfeição, os banqueiros parecem seres humanos comuns.
Vamos para nossas fantasias. A
triste verdade é que aqueles que pagam salários governam consciências.
- É, a figura do acionista, do controlador das grandes empresas está
crescendo sempre. Quem manda no Mundo atual são esses grupos de indivíduos que
dominam tecnologias e milhões de trabalhadores, a serviço de seus interesses.
Como saber o que decidem em seus escritórios? Isso faria alguma diferença?
- Conversa pesada gente, estou preocupado é com o que será necessário
diminuir para sobreviver no mundo futuro. Dá para imaginar a figura que
seremos.
Pegando uma caneta começo a desenhar figuras com hipóteses de formação.
Aos poucos as gargalhadas tomam lugar dos sentimentos mais pesados...
E este foi o início de uma grande conversa. Em um clube próximo,
devidamente protegido do ambiente externo, perigoso sob diversos aspectos,
continuamos a falar.
A cerveja, este maravilhoso invento de tantos milhares de anos de vida,
é um grande estimulante a conversas intermináveis, confissões ousadas, idéias
que se esquecem rapidamente. O álcool solta a língua, permite-nos dizer coisas
que escondemos.
Ponderamos sobre os aspectos negativos do
planeta em que vivemos, falar mal é contagiante, traz assuntos polêmicos e
apaixonantes. Com mais coragem resolvemos fazer algumas análises.
Eu comento:
- O Mundo, superpovoado, despersonaliza-se.
Multidões, edifícios gigantescos, sistemas de transporte furando a terra em
todos os sentidos criaram um ambiente atordoante. Parecemos minhocas atômicas. Nos países mais desenvolvidos tudo está
construído para resistir ao frio, suportar grandes concentrações humanas,
reduzir o consumo de energia, administrar lixo, água, esgoto e gente. Vive-se
dentro de embalagens de toda espécie. Estamos empacotados, etiquetados,
carimbados. Com prazo de validade e instruções de uso e nossos governos
administrando-nos como se fôssemos pacotes de objetos perecíveis.
Alfredo continua.
- Um aspecto delicado é a exacerbação do individualismo. O gigantismo
das cidades fez dos seres humanos pessoas solitárias dentro de imensas
multidões. Na reação ao formigueiro tornaram-se indiferentes às questões
sociais. Cegos que nem as formigas, trabalham para sustentar a rainha.
Além de todos os sistemas de formação de opinião, propondo posturas
alienadas, verifica-se o movimento instintivo em direção ao isolamento, à
indiferença. Cada um vive em seu grupo de amigos. A baixíssima fertilidade,
residências minúsculas e o medo de se abrirem fez dos clubes os locais de vida
social. Fora isso apenas a indiferença e quase hostilidade.
Preciso lembrar:
- Por outro lado nunca tivemos um período tão longo de paz. A violência dos exércitos felizmente acabou.
Realmente preocupa a redução de espaços sociais, físicos, culturais. Mundo
estranho em que vivemos. Todos querem existir mas aceitam tão pouco...
Alfredo desafia:
- Com tantas dificuldades você apenas nos mostra que agimos certo.
Fugimos para nossas ilhas, afastamo-nos dos formigueiros. E lá não perdemos
muito pois, aqui, o esgotamento das fontes
de energia e a poluição praticamente acabaram com a mobilidade
individual. Ir e vir, tão fácil há alguns séculos, agora é algo cheio de
restrições. Até o transporte coletivo é
caro e limitado. Assim as pessoas vivem, trabalham, divertem-se, estudam e tudo
o mais próximas de seus lugares de
residência. Voltamos às condições de vida da Idade Média, quando o homem comum
vivia e morria em um espaço de poucos quilômetros de raio.
- Pior que isso, somos pássaros em gaiolas tecnológicas.
- O transporte aéreo inviabilizou-se há muito tempo. Agora é restrito
às principais autoridades. As viagens passam por controles crescentes. Lugares
históricos estão cercados por imensas cúpulas de aço, vidro, alumínio e
cristal. A poluição e a destruição pelo simples acesso obrigaram as autoridades
mundiais a tomarem essas medidas. A graça do contato físico com os grandes
monumentos e lugares históricos tornou-se impossível, diminuindo ainda mais os
poucos e valiosos espaços de reflexão. O turismo é controlado rigidamente. Os
programas de longas viagens precisam ser submetidos a diversas formas de
análise. Leva-se meses para se ter uma simples resposta a uma proposta de
programa de viagem de lazer a longa distância, mesmo tendo-se dinheiro para
pagá-la. Praças e jardins também entraram na condição de lugares inacessíveis.
Só se utiliza aqueles internos. Raios ultravioletas e o excesso de pessoas
exigem programações rígidas para a visita a esses lugares. Felizmente o
conceito desenvolvido para os "shopping centers" mostrou ser a
solução para nossas cidades atuais. O ambiente externo é de uso restrito e
perigoso.
- O mais impressionante é o formato das cidades. Prédios gigantescos e
interligados de inúmeras maneiras são o padrão médio das grandes concentrações
urbanas, principalmente nos países com pouca incidência de terremotos. Em volta
delas e de cidades de menor porte,
centrais de energia, estações de tratamento de lixo e água e barreiras
diversas controlam pessoas e seus produtos e consumos.
Mas a ciência evolui dando-nos alternativas.
Pondero que:
- A engenharia genética é usada de muitas formas. A produção de
alimentos é seu grande alvo. A produtividade cresceu enormemente. A dificuldade
é manter o consumo em níveis compatíveis com a produção sem maiores destruições
ambientais, ecológicas. Talvez possamos encontrar soluções para outros
problemas sem a simples fuga. A redução do tamanho dos seres humanos é nossa
maior esperança...
Em órbita da Terra diversas estações satélites mantém milhares de
pessoas em pesquisas permanentes. Lua e Marte contém estações de solo. Estas,
maiores, têm pessoas há muitos anos, principalmente em Marte, cuja gravidade
evita os danos da baixa atração exercida pelo Lua. A favor de Marte existe a
utilização de água e transformação gradativa desta substância em oxigênio,
vital à vida humana, e hidrogênio, combustível extremamente importante às
atividades marcianas, quando se recompõe com o oxigênio em atividades
essenciais, produz água. Nesse planeta a agricultura começa a tomar forma. Acredita-se
que em futuro não muito próximo Marte terá atmosfera aproveitável por seres
vivos e grandes plantações. A recomposição de sua atmosfera é uma questão de
tempo, muito tempo mas importante para nosso povo. O sistema solar é um
ambiente conhecido e dominado. E de fora da Terra muitas mega empresas
desenvolvem seus projetos mais secretos. O dinheiro, o poder de troca de
trabalho e inteligência, é voto, vontade e matéria desse universo, com
pouquíssimas exceções.
- Falando em dinheiro, vocês têm percebido o crescimento do WIB? Prometendo felicidades eternas o Banco faz a
festa dos seus acionistas. A impressão que eu tenho é de que o WIB está indo
longe demais. Há questões éticas que eles nunca respeitaram mas estão abusando,
ultrapassando todos os limites. O que será que seus acionistas pretendem?
- O WIB é um instrumento poderosíssimo de alívio de tensões em nossa
sociedade medrosa, tímida. As facilidades, as promessas de viver sem maiores
preocupações são o grande desejo de uma população a cada dia mais medrosa e
passiva. Seus corpos e mentes não servem para nada.
- Quanta loucura! Mais e mais vamos nos transformando em peças de
máquinas gigantescas. A vida e a morte confundem-se nas telas dos computadores.
- Fazer o quê? A superpopulação e o esgotamento ambiental impuseram
restrições inimagináveis há alguns séculos. A tecnologia procura, cria
situações que ajudam a imobilização das pessoas. Principalmente as nações mais
desenvolvidas vivem imersas em uma gama variada de sistemas de compensação. E o
período glacial em que a Terra está mergulhada agrava esta situação. Para o
controle da população, começamos pelo disciplinamento da copulação. Drogas de
toda espécie inibem o desejo sexual ou a fertilidade dos casais. A vida média
aumenta sem parar. Obviamente o aumento da idade média dos seres humanos é um
fator agravante. Mais gente, maior a necessidade de alimentos, energia,
espaços. Felizmente as mulheres engravidam mais tarde e têm menos filhos.
Todas as disciplinas técnicas e culturais não existem ou simplesmente
oferecem menos eficácia nos países menos desenvolvidos. O dilema é a opção
entre o mundo monitorado, controlado, disciplinado e dentro de limites
razoáveis contra o mundo livre e desregrado, caminhando para pesadelos
monumentais porquê as pessoas não se contém em limites razoáveis. Mas, o que
seria razoável atualmente?
O frio intenso, além de reduzir áreas antes ocupadas, mesmo criando
outras com o abaixamento do nível dos oceanos, reduz a produtividade das
plantações. As maiores temperaturas estão longe, muito abaixo daquelas que há
alguns séculos mantinham florestas tropicais tão ricas em espécies vivas.
A produção de muitos alimentos agora depende de estufas imensas. Nelas
o consumo de energia é grande. E a energia é um problema onipresente, até na
purificação do ar, em alguns lugares extremamente poluído. A grande fonte é o
Sol. Por processos de transformação direta, obtém-se eletricidade que,
entretanto, precisa ser transportada. E o transporte para as regiões de menor
insolação, justamente as mais desenvolvidas, é um pesadelo nessa época em que a
superfície da Terra se transforma diariamente pelo avanço das geleiras. E
outros fenômenos têm gerado mudanças razoáveis tais como terremotos, furacões,
maremotos e outros acidentes típicos de um planeta em mudança permanente de
roupa. A sensação é que nossa terrinha está com pressa, quer trocar de roupa
com muita rapidez.
Conversar com esses dois amigos sempre foi algo especial. Longe das
trivialidades irritantes da maioria das pessoas, tem graça mostrar o que se
sabe, o que se pretende, idéias e sonhos.
Não tenho paciência para ouvir a repetição infinita de temas egoístas, primários.
Eles têm vida e propostas. Assim a conversa avança.
Não resisti, a bebida solta a língua, minhas palavras procuram a
filosofia, as razões da vida, entre
outras divagações próprias do indivíduo alcoolizado:
- Ser ou ser. Eis o desafio de quem pretende existir. A vida se
confunde com a existência sob normas, padrões. Até na revolta existem formas
estereotipadas. O Mundo acontece em padrões, disciplinas, caminhos pré -
estabelecidos. Não quero nenhum deles, apenas pretendo existir. E em pleno
terceiro milênio cobram-se comportamentos antigos. Sou homem. Não posso chorar.
Sou uma máquina. Preciso vencer. As competições prosseguem. As formas são tão
antigas quanto a própria história da Humanidade. O que existe afinal? A disputa
pelas fêmeas? O espaço vital? A maior parte dos seres vivos simplesmente caiu
em circuitos rígidos, ao sabor dos poderosos. E quando o ser humano foi
diferente? Ainda não tiveram a coragem de escrever, falar, gritar sobre as
verdadeiras motivações de quem vive. O medo, o desejo de segurança e a luta
pela sobrevivência nivelam a todos. Os idiotas porque simplesmente não
enxergam, os inteligentes porque têm medo de ver...
Alfredo não resiste:
- Quem diria, meu amigo cientista falando politicamente.
Parece-me que você pretende dizer algo mais. Desde quando você se
preocupa com essas coisas mais abstratas?
Pedro Luiz, um terceiro amigo aproxima-se. Senta-se à nossa mesa,
ouve-nos com atenção e acaba colocando suas opiniões políticas. Especialista em
história, comunicação e sociologia, tem muito a dizer:
- A democracia nos Estados Unidos das Américas deu lugar a um regime de
governo ideologicamente permanente, coerente, imutável. Quando antes da união
dos países americanos havia uma multiplicidade de cores e ideologias em
gestação, agora de norte a sul pratica-se a mesma forma de governo e
instituições. Sob o manto filosófico da liberdade e democracia, vive-se um
ambiente de pura dominação das classes mais ricas. A democracia americana
ganhou características extremamente eficazes de dominação das elites sobre a
nação. Os povos desses três continentes vivem sob controles elaborados. Não
percebem o quanto são dominados por suas famílias mais ricas.
Sempre é bom lembrar, contudo, que a Humanidade é uma espécie animal
que tem por características deixar-se comandar por um animal, algum tipo de
macho dominante. O ser humano detesta responsabilidades. Foge a qualquer risco
maior. O líder é escolhido entre aqueles que darão maior segurança ao rebanho.
E entre os seres humanos comuns prevalece a eugenia, a procriação em condições
favorecidas pela aceitação das regras da tribo. O resto é eliminado ou se
transforma em nova elite dominante. O que vale para borboletas, plantas e
cavalos vale para o homem, ou seja, a restrição ou estímulo a certos tipos de
reprodução inibirão ou multiplicarão espécies definidas pelo poder. E os
governos atuais sabem muito bem disso. Querem manter-se no comando sobre povos
submissos.
- Não está sendo radical ? comparar pessoas a animais comuns?
- Alguma dúvida a respeito? Se vocês observarem os países onde a
escravidão durou mais tempo verão nações fatalistas, submissas, indolentes.
Elas são o resultado de séculos de seleção negativa para reprodução. Seus
melhores líderes foram eliminados, impedidos de se reproduzir. Que tipo de
gente você esperaria encontrar?
Vejam também a tecnologia, é a grande arma a serviço dos poderosos
contra o cidadão comum. Os controladores dos sistemas eletrônicos de influência
operam para que o povo seja convencido a aceitar determinadas lideranças.
A propósito, já ouviram falar dos sistemas SEI? São altamente eficazes.
- SEI? Existem realmente?
- O que são exatamente não posso dizer, até porquê não tenho contato
direto com esta tecnologia, mas tudo indica que estão operando algo com esta
sigla. E somando-se a essa ferramenta de
poder imensurável existe a eterna mídia, compondo uma estrutura de condução imbatível
da opinião pública. Notem que as constituições de muitos países além dos
Estados Unidos das Américas, dentro da esfera de interesses das grandes
empresas, foram modificadas para, entre outras coisas, evitar eleições. Os
cargos tornaram-se praticamente vitalícios. E como dificilmente as pessoas
poderosas morrem, as eleições, autênticas farsas, rareiam-se.
- E quando as eleições não foram uma pantomima para o exercício do
poder das elites? Nos países que tiveram revoluções simplesmente outros pequenos
grupos assumiram e ocuparam o lugar dos anteriores. A verdade é que a grande
maioria da população não quer responsabilidades, adora a submissão. Prefere o
chicote ao comando. Freud talvez explicasse. É puro sadomasoquismo.
- O grande paradoxo da Humanidade foi desenvolver-se cientificamente
para ter condições de sobrevivência, conforto, lazer e perder a liberdade mais
íntima. Os inúmeros sistemas de monitoramento e influência escravizaram os
povos mais desenvolvidos. A liberdade mental agora só existe em ilhas e
florestas distantes.
- Os efeitos dos diversos sistemas de influência, dos tradicionais aos
mais secretos e modernos, existentes nos locais mais importantes,
principalmente, certamente de acordo com
a estratégia de consórcios de empresas que os desenvolvem, são tão eficazes que
em alguns países muitas leis foram mudadas, dando explicitamente aos
representantes dessas companhias poderes ilimitados.
- É muito grave o que você está
dizendo. Será que realmente estamos nesta condição? E a Justiça não faz nada?
- A Justiça, mais do que nunca, é instrumento da classe dominante.
Juizes escolhidos criteriosamente defendem leis, que foram feitas para garantir
a permanência no Poder legal e material daqueles que lá estão. Sob um manto de
legalidade, vive-se uma civilização inerme, morta.
Simplesmente, da época dos imperadores e presidentes ditadores que
governavam por decretos, chegou-se ao império desses consórcios, sutis,
discretos, tecnológicos e absolutamente eficazes.
Multinacionais, ocultos, gradativamente ajustam as leis e
comportamentos a seus interesses. Felizmente não atingiram com plena potência
muitos lugares da Terra. São, contudo, capazes de governar povos considerados
desenvolvidos.
A Humanidade não conseguiu desenvolver uma relação de poderes que
garantisse uma existência realmente livre e consciente. Sempre dirigida,
submeteu-se a forças que a lideram ao preço do estabelecimento de padrões de
vida alienados.
Os políticos são os melhores executivos das grandes companhias.
Escolhidos entre os gerentes mais fiéis, passam por um processo de
popularização maciço. As eleições, quando acontecem, têm nos países mais
desenvolvidos e sob o controle dessas empresas, candidatos que simulam
disputas. Eleitos, seguem lealmente e sob inúmeros controles as ordens das
associações patronais. Não é uma novidade desta época. A diferença é a eficácia
atingida.
Os grandes líderes, eternizados por processos de reeleição e
pragmaticamente com prazos crescentes de permanência no poder, lá acabam
ficando sem maiores questionamentos. Como sempre, foram o resultado de armações
dos mais ricos. Agora, mais do que nunca, e pelo que diz meu amigo e tudo
parece indicar existir, com equipamentos
eletrônicos de influência direta, só são substituídos por efeito da disputa de
poder entre as grandes empresas.
- E dentro das empresas? Não há disputas?
- Os grandes gerentes e futuros políticos são o resultado de inúmeras
seleções e cursos. À medida que sobem na hierarquia ganham treinamentos severos
onde, o principal, é o espírito de lealdade aos maiores acionistas. Muitos
séculos de aprimoramento nas técnicas de formação “profissional” agora
selecionam, produzem e desenvolvem autênticos bonecos, sem qualquer vontade
pessoal. Dedicados inteiramente e fanaticamente a suas empresas, criaram
espaços ajustados a seus interesses, ou melhor, a de seus patrões.
Desenvolvidos durante muitos séculos, os programas de formação de
executivos geraram sacerdotes de uma religião que se impôs às demais. Os
maiores gerentes são perfeitos autômatos. Falam, riem, bebem, procriam e
trabalham dentro da cartilha de suas companhias. As ideologias foram
substituídas pelos regulamentos e planos de carreira. Aliás, em muitas empresas
os robôs começam a tomar o espaço dos humanos. Para que arriscar?
- Há coisas que não entram na minha cabeça. Certas atividades,
processos e comportamentos deixariam qualquer cidadão do século vinte assustado
ou indignado. Empresas exploram atividades altamente discutíveis do ponto de
vista ético.
- A coisa não deve ser tão ruim. O World Intelligence Bank (WIB)
destaca-se até pela grandeza de seus depósitos. Além da tecnologia de
comunicação, dispõe de estoques vitais, estratégicos. Seus acionistas ganham
uma fortuna e exercem poderes inimagináveis. Por sua vez, os candidatos
habilitados a usar o WIB sentem-se eternos, sobre humanos.
- O povo vive em um mundo de ilusões. Na impossibilidade de existir em
um planeta Terra com espaços, florestas, campos, mares e ares livres e
naturais, sobrevive dentro de fantasias, imagens artificiais e todo tipo de
distração eletrônica.
Tudo é pintado, formatado, construído para gerar fantasias. No jogo das
ilusões o verde, o azul, o amarelo, cada cor tem seu significado e resultado
esperado. Nada é fortuito. Nas paredes de edifícios e muros, painéis com todo
tipo de imagens dão a ilusão de riquezas e sentimentos de viver-se em um Mundo com florestas,
animais e plantas, a maioria já extintos. A ecologia é simples produto da
imaginação.
As lideranças formais aparecem com cuidados especiais. São perfeitas,
belas, queridas e tudo o que interessar às elites dominantes e agradar ao povo.
Representantes fiéis dos grandes conselhos das maiores empresas, lá estão
porque cumprem à perfeição os interesses desses grupos. As grandes cidades, em
museus e memoriais riquíssimos, mostram imagens daqueles que defenderam à
perfeição os interesses das elites. Apresentados como heróis, geram paradigmas
que o povo “precisa” respeitar e procurar imitar.
- E o povo, sempre massa de
manobra, tem no comando pessoas que lhe fazem justiça. E povo não é o coletivo
de gente? E não é desse rebanho que saem os líderes? Os machos alfa?
- Os seres humanos desperdiçaram infinitas oportunidades de transformar
positivamente seus ambientes. A evolução tecnológica rápida foi mais veloz que
suas capacidades de aprimoramento cultural e comportamental. O ser humano comum
resiste à idéia de pensar. Seu estado natural ainda é o dos tempos imemoriais,
das florestas, da simples caça e pesca e rústicos amores.
- Desta maneira vive-se um Mundo de altíssima tecnologia, cultura
inútil e lugar de processos de dominação sutis e extremamente eficazes.
- Um Mundo virtual sem virtudes.
- Estamos muito pessimistas mas, onde melhoramos? Doenças terríveis
deixaram de existir. Em muitos lugares deste planeta já é possível uma
existência com liberdades que não sonhávamos há alguns séculos. O sexo é algo
natural, sem os traumas de antigamente. A segurança nos países mais
desenvolvidos é razoável. Temos problemas com as nações mais atrasadas mas elas
simplesmente vivem o que desejam.
A expectativa de vida aumentou muito nos países mais ricos. Neles morre-se por efeito de acidentes ou vontade
própria. Há sempre uma forma de prolongar a vida. A tecnologia já permite a
preservação da vida de formas não convencionais, oferecendo prolongamentos
fantásticos.
- Que vida? Você chama aquilo de vida? Você entende que vale a pena
existir, nos casos extremos, simplesmente pensando?
- Sim, afinal o que importa? Em que parte do corpo humano está a
essência da vida?
Assim fui desafiando o espírito crítico de meus amigos. Queria ver como
defenderiam suas posições.
Falamos alto, bebemos muito, descuidamo-nos, saímos felizes e
entorpecidos daquele encontro.
5.
Reunião de emergência no
AO
Em ambiente de emergência os diretores do AO discutem os acontecimentos
recentes. Assustados, esses velhos profissionais mostram sinais de pavor apesar
de tanta inteligência. Talvez por isso mesmo estejam tão preocupados. Sabem que
podem ter dado início a um processo catastrófico.
- Tivemos um acidente grave, senhores. Não acreditávamos que algo dessa
espécie pudesse acontecer. Afinal estamos aqui, neste trabalho, graças a uma
série meticulosa de testes e afinidades. É difícil explicar. Wolfgang, por
favor, apresente a todos nós o que houve.
- Um erro de avaliação. De alguma forma o vírus escapou. Não entendo
pois as medidas de segurança eram de altíssimo nível mas algo de errado
aconteceu.
Arthur, um dos cientistas que trabalhavam no projeto, morreu e parece
que contaminou outras pessoas externas ao AO. Parece até suicídio. Ele não nos
informou de qualquer sintoma, simplesmente passeou pela cidade, recolheu-se a
seu alojamento e morreu. Se foi assim o canalha deu início a uma catástrofe
imprevisível. Não tivemos tempo para desenvolver qualquer vacina ou medicação
eficaz. Os estudos só começavam. O pior é que seus companheiros retornaram ao
laboratório, não sabemos quando houve o contágio e quem será a próxima vítima.
Eles já estão apresentando febre e se encontram em isolamento total.
Na cidade o que poderá acontecer?
- Infelizmente o povo desta região corre o risco de desaparecer do
mapa. Não há o que fazer se a doença escapar ao nosso controle, fora de nossas
instalações. O risco existe, afinal Arthur esteve fora pouco antes de morrer.
Ele tinha um relacionamento íntimo com algumas pessoas da região. De qualquer
forma já informei nossos superiores. As ordens não são tranqüilizadoras,
moralmente falando.
Falei com o Presidente do Conselho de Acionistas. Ele exige silêncio. A
companhia não teria como indenizar, muito menos explicar o que fazíamos aqui. A
partir de hoje ficaremos dentro de nossas instalações. Seções isoladas entre si
tanto quanto possível.
Precisamos acelerar análises do comportamento do vírus que
desenvolvemos. Agora poderemos ser as próximas vítimas dessa peste provável.
Enviei todos os dados para nossa central nos EUA. O problema é que não
querem desenvolver o vírus na sede pois agora o demônio apenas mostrou os
chifres, seria extremamente perigoso qualquer iniciativa sem maiores
informações. Precisamos trabalhar muito e rapidamente para tentar alguma
solução antes que a doença fuja de controle. De qualquer modo logo descobrirão
sinais da doença se ela já tiver contaminado pessoas externas ao AO. A partir
daí autoridades regulares iniciarão trabalhos para combate à provável epidemia
que surgirá nesse país. Tomara que não associem a doença ao AO.
Teremos a possibilidade de acompanhar ao vivo e a cores o resultado de
nosso trabalho. Se não encontrarmos uma solução, estaremos entre as vítimas e
ninguém jamais saberá de nosso "sucesso"...
6.
Pensando
Vida estranha. Tenho tudo o que um homem solteiro e mais velho poderia
desejar. Liberdade para conduzir meu trabalho, a oportunidade de conhecer todas
as civilizações, de viajar para onde quiser, e isto é um grande privilégio em
nossa época.
Cansei de muitas coisas, contudo. Há dias em que a tristeza domina.
Nesses momentos em que me sinto de mal com a vida, pesa-me a melancolia de uma
juventude mal vivida. Minhas limitações eram grandes, se comparadas àquelas
cobradas de meus amigos. Entre eles ficava parecendo retardado mental. Eles se
destacavam em tudo que a época exigia, eu restava parado em algum canto
pensando, tentando entender.
Por ironia ou conveniência dos mais poderosos talvez tenha conquistado
os cargos que ocupei por ser considerado idiota, meio inteligente e muito
ingênuo. Esperavam poder me controlar.
Sei que sou um simples retardado mental, nos parâmetros dos gênios à
minha volta. Vivo cercado de pessoas extremamente inteligentes, capazes das
lógicas mais sofisticadas e aproveitando recursos de memória incríveis. Por
Natureza e pelo efeito de muita química, são autênticos computadores
ambulantes. A verdade é que nem a ciência foi suficiente para me colocar ao nível
mental desses companheiros.
Por exemplo, não tenho grande memória. Que desastre quando encontro
alguém muito querido. Falo, converso, troco idéias e não consigo me lembrar de
seu nome. Estudei muito, vi muitas coisas, não me lembro da maior parte delas.
Vivo em conflito comigo mesmo. Tenho medo de encontrar um amigo e cometer uma
gafe, a pior delas, não me lembrar do nome do amigo apesar de saber muita coisa
a respeito dele. Digo para mim mesmo que o nome não diz nada. O nome não é um
compromisso com o que sabemos ter diante de nós. Existem códigos. Arquivos
imensos classificam as pessoas. Não posso, entretanto, chamá-los pelo código.
Pânico, caso de análise.
Vivi limitações mentais. Aprendi a admirar aqueles que julgava serem
inteligentes. Quanto a vida me ensinou...
É interessante notar a reação das pessoas. De que adianta terem altos
QIs se não souberem reagir de forma adequada diante de situações difíceis?
Inúmeras vezes tive ao lado gente respeitada, festejada como autênticas
sumidades. E perplexo vi que elas não reagiam de forma adequada. Simplesmente
desperdiçavam oportunidades, paravam diante de coisas simples. A confusão
mental dos gênios leva-os à mediocridade. Gênios desconhecidos, dos quais a
Humanidade possui em número infinitamente superior àqueles que conquistaram o
respeito de todos nós, morrem desconhecidos porquê lhes falta algo que desafio
nossos amigos a dizerem. A verdade pura e simples é que algo distingue os seres
humanos. Talvez os ocultos no manto da omissão estejam certos, afinal eles
usufruem da luta daqueles que expõem, que se arriscam às humilhações da
crítica.
Minha outra vida, já adulto, desenvolvendo alguns projetos científicos
naquela distante cidade do Paraná, Brasil, mostrou-me muita coisa. Seria a
experiência de Curitiba que me permitiu existir agora? Vivi algumas lutas
contra deuses daquela época, deuses em meu espaço reduzido pela mediocridade de
todos. Naquele ambiente vivi o peso de divindades de barro, gente que eu sabia
serem moralmente insignificantes mas que estavam no lugar certo, na hora certa,
saboreando sucessos que não eram deles. A vida é cheia de paradoxos, de uma
série infinita de ironias. O Grande Arquiteto do Universo tem suas lógicas.
Minhas limitações estimularam outros recursos mentais. Hoje sou um ser
acima da média. A visão holística cresceu, minha auto confiança mais ainda,
apesar das limitações que às vezes parecem tão grandes.
De qualquer forma ganhei algo. Os grandes chefes não querem sombra.
Sabem que, se os seus subordinados forem menos inteligentes do que eles,
estarão mais seguros. Esqueceram-se, contudo, que o idiota aqui tinha
capacidade de desenvolver algoritmos, que podia deduzir, comparar, analisar e
gerar opiniões ainda que suas conclusões logo se perdessem na bruma do tempo.
Mas o palerma sabia e sabe escrever, registra e vê com surpresa o que pensou
ontem. Assim avancei, descobri detalhes que escaparam aos melhores. Trabalhei
com muita disciplina. Compensei minhas
deficiências acrescentando horas de esforço diário. Tirei proveito das minhas
limitações.
Voltando às considerações existenciais: na média de intermináveis
momentos percebi que não sou feliz. Afastei-me de pessoas que amava para
conduzir meu trabalho. Deixei-me dominar por propósitos filosóficos, políticos,
preocupações muito distantes daquelas que teriam me dado uma família, filhos e
amigos. Até os idiotas amam. E sabem, talvez melhor do que ninguém, como o amor
é importante. É preciso muito amor para aceitar um deficiente mental. Eu tinha,
tenho uma tara. A ciência é minha tara. Quero aprender. Procuro entender a
Natureza. A falta de certos padrões de inteligência é meu grande desafio. Olho,
contudo, o Universo sem telescópios. Vejo-o simplesmente. E minha vista tem
assim um ângulo enorme. Vejo as estrelas juntas. Sei que elas existem. As
constelações estão lá. Posições relativas mas tão magníficas que mostram a
imensidão do Universo. Só os bobos conseguem ver constelações tão grandes. Os
muitos inteligentes vêem estrelas, pedaços de estrelas, eu vejo constelações.
Assim, sem saber quanto eu via, meus chefes me nomearam para diversos cargos. E
eu cresci dentro da organização. Conquistei espaços. Talvez pela inconsciência
do perigo, avancei quando meus colegas pararam. Se algo protege alguém, quem me
protege deve estar cansado. Meu anjinho certamente está com as penas tortas,
auréola quebrada. É um vitorioso. Defendeu-me, deixou-me ser alguém. Assim, em
nome dos idiotas tenho um compromisso com a vida.
Muitos companheiros são pessoas queridas. Algumas amigas até um pouco
mais. De qualquer forma talvez a vida seja assim mesmo. Após algum tempo vem a
cobrança do que não fizemos. A frustração aparece até para aqueles que
realizaram muito. Profissionalmente sei que fui bem sucedido, fui muito além do
que poderia imaginar. E daí? Sempre falta algo.
A religião é um conforto para muitos, infelizmente não consigo ter
nenhuma. Acreditar em algo para mim é
assunto sério. Posso enganar muita gente, nunca conseguirei, entretanto, mentir
para mim mesmo. Sei que tenho dúvidas imensas sobre tudo o que vejo e ouço. Com
todo o progresso da Ciência há lacunas gigantescas, que não possuem explicações
convincentes. Para as pessoas mais
simples basta dizer que a vontade de Deus determina isto ou aquilo, eu, contudo,
não me satisfaço com uma afirmação tão trivial. Prefiro simplesmente dizer que
não sei, não entendo.
Não gosto do Mundo em que mergulhamos. Disto tenho certeza. O excesso
de população agride-me. Para todo lado
vejo gente, máquinas e paredes. Terminamos escravos de nossos excessos em um planeta
crescentemente hostil. Não soubemos, no passado, evitar muitas situações, que
agora assustam e são potencialmente perigosas.
A Ciência é nossa aliada. Com a tecnologia criamos sistemas
extremamente complexos e produtivos. Mas a complexidade e dependência de
inúmeros aparelhos, materiais e inteligências estão construindo um castelo de
cartas. Tudo poderá desmoronar-se e o estrago será grande. E agravando esta
situação, as facilidades da tecnologia contribuem para a desatenção dos
principais riscos que a Humanidade está correndo. Oferecem inúmeros
divertimentos, jogos e programas de toda espécie. Quando dão notícias, as
ênfases caem naqueles temas menos sérios. Os maiores problemas, os grandes
perigos à sobrevivência da Humanidade são do conhecimento de todos mas o
excesso de informação sem um tratamento qualitativo conduz a população ao
alheamento, à insensibilidade. Pior ainda, a Ciência da Informação
transformou-se em arma de dominação extremamente poderosa. Tenho dúvidas se a
liberdade ainda exista conforme nossos antepassados queriam, lutaram, sonharam.
No paradoxo do progresso, regredimos talvez à condição de escravos de sistemas
que nos atingem de diversas formas. Que tipo de Humanidade existe? E no futuro,
seremos partes de uma máquina, simplesmente?
A ciência e a tecnologia, produtos principalmente da capacidade de
memorização e processamento artificiais, frutos da engenhosidade humana,
tornaram-se um edifício em que não sabemos viver. Nossa inteligência agora é
pequena para tanta informação. Seu desenvolvimento prossegue, nosso cérebro é
uma máquina maravilhosa, precisa, contudo, ser estimulado de forma adequada.
Isto não está acontecendo. Tudo contribui para um processo letárgico de
condicionamento de mentes e corpos humanos que estranhamente está tirando a
graça da vida.
Precisamos fazer algo para evitar um desastre.
E me sinto triste, só.
Divido-me em meus pensamentos. Estaria disposto a lutar realmente? Meus
companheiros têm me cobrado decisões mais enérgicas. Discutimos muito.
Organizamo-nos. E quando sairemos das palavras? É isto que eu realmente quero?
E se estivermos errados?
E além das preocupações políticas tenho questões pessoais.
Os seres humanos comuns não percebem que as diferenças entre os
indivíduos são muito menores do que imaginam. Por maior que seja o homem ele
sempre terá suas necessidades básicas como qualquer outro. E as afetivas
também. Sente-se falta do aconchego de um lar, do riso de uma criança, do amor
de uma esposa. E estamos em um mundo onde isto se torna impossível. Os filhos
são um problema social. A população precisa diminuir e não aumentar.
Alternativas ao casamento são propostas pelo próprio Governo. Como conciliar
essas questões?
A inteligência é um peso. A consciência das responsabilidades pessoais
tiraniza aqueles que a possuem. A visão ética e altruísta é extremamente
difícil. No deserto moral em que vivemos, percebe-se a necessidade de atuar sem
cooperação. Compreendendo-se a gravidade de certas situações e sentindo-se a
omissão covarde e egoísta da maioria, parte-se para lutas difíceis, normalmente
desprezadas pelo rebanho que, ao final das contas, é o que se pretende
defender.
Vejo-me no eterno dilema de optar entre aquilo que aprecio e o que devo
fazer.
A política, arte tão denegrida pelos seus atores, agora transforma-se
em subversão em nossos planos. Meus companheiros e eu não vemos outro caminho.
As multidões agem hipnotizadas pelos meios de comunicação. Não percebem os
erros de administradores e políticos. Grandes empresários só querem mais
dinheiro. Não sei o que fazem com tanto dinheiro. E os políticos são
instrumentos desses senhores. E eles sempre querem mais. Os psiquiatras talvez
expliquem tal situação como uma compensação por algumas disfunções orgânicas ou
psicológicas. E eles mandam, decidem sobre as vidas de nações inteiras...
parece que quanto mais loucos melhores. O político em seu egocentrismo insano
acaba sendo o instrumento perfeito dos grandes grupos econômicos, infinitamente
mais fortes. A lógica é simples, quem paga manda.
E os amores?
Que saudades de algumas amigas. Talvez com algumas delas agora meus
sentimentos seriam completamente diferentes.
Ana tinha paixão, sabia amar... A bandida me abandonou antes que eu
pudesse dizer-lhe que realmente a queria. Ela era alegre, bonita e sensual, e
eu? A timidez atrapalhou um bocado.
Vivi muitos anos com
Marina. No começo existia amor. Com o tempo eu, grosseiramente, a tinha pelo
sexo e pouco mais. Ela queria carinho. Era uma diferença lógica mas difícil de
sustentar. Eu a amava. Eu sentia amor. Ternura e afeto, cuidados, muitas vezes
paixão. Inexperiente e cheio de preconceitos, incapaz de me ajustar a seus
jeitos, expressava este sentimento de forma mecânica, sem os sinais que ela
esperava, creio.
De que jeito a
amava? Talvez de uma forma sadomasoquista quisesse sofrer, sentir culpa por
rompê-la, mergulhar em um sexo de onde saíra. Com o tempo a rotina fez do amor
de Marina ato que ela expressava com repugnância. O beijo era um sacrifício, a
boca semi cerrada que ela só abria a custo de muito pedido dizia com clareza
que ela não me suportava. Não bastasse isto os olhos fechavam, só abrindo
quando ela percebia que eu gozara, que não precisaria mais fingir. Que
saudades, entretanto, dos primeiros tempos quando alternávamos amor sexual,
forte, selvagem, com horas de ternura. Havia até violência. Afinal é impossível
duas pessoas medianamente inteligentes concordarem em tudo. As diferenças de
opinião eram uma rotina mas sentíamos amor. O trabalho, os desafios da vida nos
separaram; felizmente não tivemos filhos. A liberdade se impôs, em prejuízo da
convivência e do amor.
Agora, solitário,
tenho certeza de que a desejo, seria ótimo tê-la ao meu lado. Marina, Júlia,
Tereza, Ana e outros nomes sempre voltam à memória. Algumas já não são jovens.
Quase todas encontraram um caminho próprio. Estão longe...
Afinal o que é o
amor?
A paixão, parte
fascinante desse sentimento, dizem que dura pouco, que não suporta o tempo. A
atração sexual, componente essencial na
formação de pares apaixonados, confunde e dá uma forma mecânica ao amor. A
mútua admiração expande as possibilidades de amor. Permite-nos transcender o
sexo. A dependência também gera amores, muito comum entre áulicos e líderes. O
grande amor, contudo, existe entre casais apaixonados.
O amor é uma armadilha
da Natureza. Apaixonamo-nos. Queremos alguém. Os compromissos e os efeitos
naturais soldam uniões nem sempre duradouras mas extremamente agradáveis
enquanto sustentam sentimentos poéticos.
E depois de algum
tempo? O que resiste à rotina quando ela se impõe?
Conheci muitas
mulheres. Sei que por algumas delas o tempo de saturação seria grande. Talvez
na dimensão de meses. Anos? E a eternidade é a promessa dos jovens casais.
Desconhecem os efeitos do tempo. Sei entretanto que gostava delas, que teria
imenso prazer em sumir entre seus carinhos.
A solidão é terrível. A intimidade com uma companheira é a oportunidade
de fugir a muitas pressões. No mínimo tem-se com quem conversar, trocar idéias
e carinhos. E brigas também. Um casal vive um espaço de amores e lutas em que
um pode valorizar o outro, ou destruir. De qualquer forma hoje acredito, tenho
convicção de que não nascemos para viver sozinhos.
Estranho, sobre o relacionamento de um casal escreveu-se montanhas de
livros. Até remédios, drogas de toda espécie foram desenvolvidas. Há algo de
sutil, contudo, que faz falta. Esse algo mais só a experiência mostra existir.
Muitos descobrem tarde demais; espero ainda ter tempo para encontrar alguém
para uma relação estável, afetuosa e acima de tudo, com amor.
Mas em que mundo estamos?
Máquinas, fios, antenas e diversões estranhas, compromissos e vidas
programadas, ambientes monitorados, planos para todo lado. O Mundo esgota-se e
a Humanidade perde-se entre paredes.
7.
Uma cobrança
Recebo a visita de um grupo estranho. Munido com todo tipo de
equipamento de registro de informações inicia um grande interrogatório. Quer
saber o que estou fazendo, o que penso, o que pretendo.
Eles sabem o que faço melhor do que eu. Têm sistemas de monitoramento
eficazes e não precisam de qualquer tipo de informante exceto ler relatórios,
que máquinas muito bem instaladas produzem quando acionadas.
O que realmente não conseguem, ainda, é ler pensamentos. E estou
subordinado à ONU. Meu governo é o Mundo. Não é fácil me atingirem. Meu
trabalho tem agradado a muita gente poderosa, até pelo prazer de fazer
comparações. Admiram-se das maravilhas que produzimos, dos efeitos sobre seus
liderados, dos lucros que sempre recolhem ao final. Afinal, um gênio não seria
um burro especialmente capaz de andar em determinada direção?
Mas não posso desprezar o poder de seus chefes, daqueles que mandam na
ONU. Quando quiserem saberão agir para me destruir. Não será fácil, impossível
nunca.
E após apresentações formais e algum palavreado idiota, o chefe do
bando começa:
- Meu amigo, que conversa foi aquela com aqueles ecologistas malucos?
Por quê vocês se encontraram naquela praia? Era um dia bonito, seus amigos
certamente estavam apenas passeando. Apreciaria saber, contudo, as razões do
encontro. O senhor sabe que Alfredo e Gilberto estão sob supervisão especial do
nosso Governo?
Tremo ao ouvir o que este indivíduo asqueroso fala. Mais uma vez sinto
a falta de liberdade, o patrulhamento ideológico, a censura. E estamos no país
da liberdade!
- Não havia a mínima intenção de qualquer ato ilícito. Apenas
conversamos sobre amenidades. Família, prazeres, esportes etc.
- Desculpe-me doutor. Não é o que registramos. Vocês conversaram sobre
o abandono de nossa sociedade, a vida em ilhas distantes. Afinal o que lhes
incomoda?
Percebo que estávamos muito mais vigiados do que imaginava. Ingenuidade
burra, a minha. A distância não é mais obstáculo para a escuta de conversas.
Também desconhecia esta característica de meus amigos, ou seja, a de que
incomodam o poder estabelecido. Procuro desculpá-los.
- Conheço-os há muito tempo. Sei que são pessoas pacíficas. Cientistas,
tornam-se diferentes até pela profundidade de suas análises. Inteligentes,
trabalhadores e estudiosos, querem simplesmente viver em lugares onde possam
evoluir em seus trabalhos. Optaram por viver isoladamente, o que é bom para seu
Governo.
Meu inquiridor responde alertando-me sobre os riscos de responder
falsamente. Lembra-me as últimas leis aprovadas e as mudanças na Constituição
dos Estados Unidos das Américas, aumentando os poderes do Governo Central. Essa
famosa Constituição tornou-se um documento mutante, ajustável às conveniências
de alguns indivíduos que não aparecem mas são suficientemente poderosos para
dominar todos os instrumentos de poder.
Eu insisto:
- Sou gerente de um projeto da ONU. Enquanto nesta situação tenho
imunidades diplomáticas. Recuso-me a responder a um inquérito de um Governo ao
qual não estou submetido.
- Não é um inquérito. Estamos apenas cuidando para que nosso país não
seja destruído por um grupelho de subversivos. Apesar de isolados e distantes
das Américas, quando nos visitam trazem idéias e propostas perigosas. Tentamos
inibi-los mas eles têm esquemas de proteção eficazes.
- Inibi-los como?
- Somos a nação mais poderosa do Mundo, nosso Governo sabe agir. Já
desmontamos muitos países que pretendiam competir conosco, não seria um grupo
de indivíduos que iria pôr em risco a nossa segurança. Não devemos expor nosso
povo a bandidos que simplesmente não enxergam a importância da nação americana
e sua maneira de ser.
- Pelo que sei o grande risco que as Américas teriam com eles seria
perdê-los para o oceano. Não são mais ativistas que qualquer cidadão lúcido e
sincero deste país.
Meu interlocutor, amarrando a cara:
- Seria importante uma visita sua a nossos escritórios. Lá eu poderia
lhe mostrar um pouco do que temos registrado desses seus amigos...
- A ONU sustenta programas de pesquisa do comportamento humano. Através
de meu trabalho sei da diversidade ideológica, comportamental, cultural, das
muitas tendências de nossas sociedades. A multiplicidade de padrões gera um
belo mosaico cultural. A tolerância a esses modelos é importante. Em todos eles
nunca vi nada que pudesse pôr em risco os Estados Unidos das Américas. É um
país colossal, riquíssimo, super organizado e controlado. Não seria meia dúzia
de filósofos que destruiria esse colosso.
- Cumpro ordens, é meu trabalho. O que devo fazer é verificar suas
opiniões a respeito e registrá-las. Elas serão analisadas.
E nosso bate boca vai longe até que, entendendo que não lhe direi mais
nada de substancial, meu interrogador decide despedir-se.
Meu “amigo”, antes de se retirar, muito polidamente lembra-me:
- Meu caro doutor, não se esqueça de que nosso governo também manda na
ONU...
8.
Filosofando em grupo
O interrogatório deixou-me abalado.
Conversar com amigos mais próximos é uma forma de relaxar e repensar
certas questões.
- Joel, a liberdade existe?
- Creio que avançamos de forma estranha. Ganhamos confortos, brinquedos
e distrações. Até para transar não precisamos de mais ninguém. Nesse mundo de
máquinas e químicas estamos cada vez mais automatizados, insensibilizados e
enlatados. A companhia é mais uma questão de conforto, carinho e parceria do
que a satisfação de um desejo sexual pois o sexo encontra mil formas diferentes
de satisfação. Será justo e saudável?
Fátima intervém.
- Graças a isso, nos países mais desenvolvidos, a população está sob
controle. Vocês, homens, são completamente dispensáveis. Sempre foram uma
porcaria, agora podemos escolher com muito mais critério, se a necessidade for
tão grande e justificar o sacrifício.
- E agora? O que faço com meu equipamento?
- Em muitos países a tradição é mais forte que o progresso. Vão para
lá, bolas! E suas bolas também.
- É, nossas bolas estão ficando sem função.
- Pior ou melhor, não sei, é a vida alternativa. Terá sentido real
sobreviver assim?
- Os banqueiros, empresários, profetas e pastores são convincentes. A
mídia sustentada por eles promete uma eternidade de prazeres. A vida eterna, os
primeiros na Terra, os últimos no além.
Fátima questiona.
- Para quê muitos insistem em viver muito? Não entendo porquê se
sujeitam às condições propostas pelos banqueiros. Afinal o que as pessoas
procuram? Não estariam protelando descobertas melhores e maiores? Somos uma
civilização muita apegada a esta vida. Deve existir algo mais. É inacreditável
vivermos tão pouco. Ou melhor, vivermos, pensarmos e estarmos limitados a isso.
Aproveito para colocar minhas fantasias filosóficas.
- O grande paradoxo da Natureza é colocar a imensidão do Universo
contra a fantástica complexidade da vida. No infinitamente grande espaço temos
a incrível complexidade de qualquer bactéria. Sua existência é mais incrível do
que a soma de todas as pedras de nosso Universo. E até podemos pensar que tudo
o que nossa vista alcança seja apenas uma molécula de um corpo em outro
universo. Olhando pelos telescópios ficamos surpresos com fronteiras cada vez
maiores de nossas galáxias. Com um microscópio, entretanto, podemos constatar a
vida, a espetacular capacidade de reprodução e transformação de nossas células.
Temos inteligência e capacidade de auto multiplicação. Nosso planeta cobre-se
de gente, plantas e animais. Pensando já sentimos nossos excessos. Vemos,
entretanto, o poder regulador da Natureza. Milagrosamente ela destrói e
constrói. Ganhamos o prazer mental e físico. Aprendemos a simular o segundo
estimulando o primeiro. Os banqueiros e seus cientistas que o digam.
Joel, pensativo, procura estimular um debate.
- Mas, que eternidade pretendemos? Não seremos parte de um circuito, de
um ser maior?
Não resisto.
- Precisamos desta esperança. Não podemos acreditar que, apesar de toda
a tecnologia, a vida se resuma a isto. Temos prazeres limitados pela nossa
função biológica. Os mais inteligentes e sensíveis desenvolvem outras formas de
satisfação. Com tudo isto, entretanto, percebemos um afundamento ético, uma
perda de substância. A vida tem um
ciclo. A inteligência exige outros. Não existiria algo intrínseco à
inteligência, algo que os mais simplistas denominam espírito?
Fátima gosta de minha abordagem.
- As mulheres são mais sensitivas. Elas por qualquer razão que toda a
ciência desconhece, percebem melhor certas coisas que os homens têm dificuldades.
Talvez nossa função biológica equipe-nos com recursos de sobrevivência
superiores. Graças a isso sinto, isso mesmo, sinto que posso afirmar que
existem espíritos, que há muita coisa que desconhecemos.
Gosto de associar idéias.
- Talvez muitos já possuam provas que desconhecemos. Talvez não
interesse às elites transmitir certos conhecimentos. Quanto saberíamos do que
existe acumulado nos melhores arquivos?
Joel intervém fugindo da filosofia, entrando na política e mudando de
assunto.
- As classes dominantes conhecem bem os prazeres do poder. É uma forma
de se chegar a orgasmos intelectuais. Quando te submeteram a interrogatório
sentiram prazer, com certeza. Um grande cientista submetido a policiais,
respondendo a questões pessoais, à pressão dos seus chefes. Com certeza eles
acreditam na necessidade de controlar gente como tu és, além, é claro, do
controle pelo prazer de mandar.
- O problema maior é a necessidade de disciplina diante das
dificuldades de sobrevivência pelas quais a Humanidade está passando. O
crescimento das geleiras, o frio está diminuindo espaços e fontes de alimentos.
E nos países mais atrasados o nível populacional cresce sem parar, apesar de
todas as dificuldades. A promiscuidade, a miséria é algo assustador. E eles
perdem tempo comigo?
- Vivemos uma situação paradoxal. Quem vive melhor? Lá eles passam fome
e frio mas têm mais liberdade do que nós. Somos escravos de nossa cultura,
mídia, inteligência, tecnologia, ciência
e instituições. O interrogatório foi apenas mais uma demonstração da dominação
ideológica e comportamental a que chegamos.
Fátima:
- E das mulheres.
- Lógico, agora vocês podem nos manobrar com mais facilidade.
Conquistaram espaços e aprenderam a dominar-se completamente. As frivolidades
de alguns séculos atrás são coisa do passado. Perderam, também, muito do
encanto que possuíam...
Há, entretanto, uma vantagem fantástica. A mulher atual não tem mais a
antiga e terrível TPM. Como é bom conviver com mulheres sem crises periódicas.
- É, e os homens afrescalharam de vez. Creio que andam exagerando no
controle hormonal da moçada.
- Falando sério, o controle da natalidade afetou com profundidade uma
série de padrões. O mais atingido foi a própria família. Sem poder ter filhos
com a liberdade de antigamente, sob o efeito de toda a mídia negativa e da
própria realidade estamos deixando de sentir a necessidade do relacionamento
duradouro, da sustentação de casamentos antes tão festejados. Nosso ambiente
produz outros paradigmas, outros comportamentos e crenças que confundem
completamente quem pretenda analisá-lo sob uma ótica antiga.
Joel provoca:
- Creio que podemos e devemos atuar para mudanças neste quadro. Afinal
somos ou não inteligentes? Temos coragem para assumir alguma proposta mais
enérgica?
Fátima:
- Joel, lá vem você outra vez com as suas idéias violentas. Precisamos
entender a vida, não destruí-la.
- Ótimo, mas e as soluções?
- A verdade é que estamos virando bichos de proveta. Nascemos e vivemos
dentro de paredes de vidro e aço, sob temperatura e atmosfera controladas, sem
qualquer espaço natural razoável. Este problema é evidente, forte e onipresente
nos países mais desenvolvidos. "Consumindo" tecnologia
abundantemente, com pessoas não adaptadas ao ambiente natural, sempre
protegidas, teremos um povo artificial, incapaz de voltar à Natureza. Nosso
país, por exemplo, apesar de suas dimensões e riquezas, não nos oferece
condições sensatas de sobrevivência. Excesso de gente, luxo para alguns,
limitações enormes para outros, poluição e violência, uma série de coisas não
combinam.
- Entender a vida é difícil, mais ainda à medida em que ela se prolonga
de forma estéril, inútil.
- De qualquer forma as pessoas parecem felizes. Muitas apresentam um ar
idiota apesar de serem capazes de grandes trabalhos. São cultas e tolas à
medida que não transformam seus conhecimentos em algo razoável.
- Talvez exista outra explicação para tudo isso. A mídia é extremamente
eficaz, o aprisionamento das pessoas em seus quartos por falta de alternativas
espaciais deixa-as muito vulneráveis, sensíveis ao que os sistemas de
comunicação aplicam. E não existiria algo mais?
Fátima
- Se existir gostaria muito de ver essas técnicas adicionais devolvendo
o sentimento de amor. Que inveja do que vemos em nossas experiências com as
comunidades isoladas...
- Fugiram da minha primeira pergunta, a liberdade existe?
- Creio que a Humanidade nunca viveu em liberdade. Todo
animal existe preso a uma série de limitações. O ser humano não é diferente. O
que assusta é a manipulação para satisfação de interesses menores. Até onde os
grandes e incrivelmente poderosos grupos tecnológicos e industriais já não
possuem meios de controle total? Estamos sob a tutela da ONU. Ela nos dá esta
tranqüilidade e talvez alguma segurança. E os cidadãos comuns deste país?
Andando por aí tem-se a impressão de que todos são quase autômatos. Riem,
falam, comportam-se, entretanto, de acordo com padrões bem definidos. Parece
que estão sob controles invisíveis. E
nós, o que nos impede de estarmos sob os mesmos sistemas? Sabemos das estações
orbitais, das bases na Lua e em outros planetas. O que se faz nesses locais? De
lá muito poderá estar sendo produzido para maior controle de nossas vontades.
- E após essa experiência policial, como você vê a Justiça no nosso
país?
- Graças à tecnologia a Justiça mudou muito nos EUA. Não é mais um
instrumento de vingança, atento a qualquer espécie de crime, procurando
bandidos e colocando-os em
cadeias. Agora é um sistema que analisa o comportamento das
pessoas, encaminhando-as para ajustes elementares. Os crimes diminuíram
substancialmente, são em quantidade irrisória se compararmos nossas
estatísticas às do século vinte, por exemplo. Os seres humanos vivem
comportadamente, sem mútuas agressões. A velha pergunta se o indivíduo é inocente
ou culpado foi substituída pela questão: como recuperar, o que fazer para
ajustar o seu comportamento? Assim os presídios foram substituídos por clínicas
e escolas especiais de onde as pessoas saem "recuperadas".
Paradoxalmente evoluímos em relação ao passado, quando pensamos no
clima de ódio existente há algum tempo.
Na situação atual é possível aceitar a tese de que ninguém tem culpa de
nada, dentro do que , por exemplo, a Igreja Católica definia como sendo um
pecado grave. Afinal quando o ser humano teve plena liberdade de decisão e
total consciência do que fazia?
Tenebrosamente, entretanto, caímos nas mãos dos donos do poder. Nesses
reformatórios muita coisa deve ser feita sem que saibamos exatamente o que é.
Há segredos demais em nossa sociedade.
- Ou seja, você talvez venha a ser "reeducado" pelos seus
vigilantes. Em certos casos eles conseguem "reajustes" rápidos. Seria
importante mais cuidado para não ser preso em qualquer delito. Ou melhor, ser
reeducado.
9.
Comentários sobre as comunidades isoladas
A transformação tecnológica, a superpopulação e homogeneização cultural
de grandes nações levou a Organização das Nações Unidas a implantar um projeto
(Projeto Vida Básica - PVB) de acompanhamento paralelo de comunidades
segregadas. Entre elas algumas voluntariamente aceitaram, ou melhor, procuraram
o isolamento e já há muito tempo vivem separadas do mundo mais desenvolvido. A
ONU tem interesse em estabelecer análises e verificar os efeitos do isolamento
sobre os seres humanos em sociedades fechadas. Além disto servem de registros
de ambientes passados, de grande sabor para estudiosos da história da
Humanidade. Evidentemente serão também depósitos de padrões genéticos que
talvez venham a ser necessários no futuro. Sofremos tantas mudanças artificiais
que, de repente, talvez estejamos mais semelhantes a grandes animais
padronizados do que ao que deveria se chamar "ser humano".
As restrições ao turismo foram muito importantes para nosso trabalho. O
ambiente de moscas voando por todo lado, pousando e pisando em tudo, deixando
sempre alguma pequena mas perigosa sujeira,
em que a Humanidade viveu durante quase um século, era terrível. Para
todo lado, pelo que notamos nos registros da época, havia alguma turba, um
monte de gente entrando, saindo, caminhando, mexendo e estragando o que podia.
A maioria absoluta dessas pessoas, armadas de máquinas de todo tipo, viam e
aprendiam cultura inútil. Em muitos casos voltavam maravilhados com o esplendor
de obras gigantescas, feitas sob o peso do chicote, censura e fanatismo de
povos passados. Raramente esses indivíduos sentiram o prazer e a dimensão das
melhores obras. Infelizmente é mais fácil assimilar coisas supérfluas a
procurar entender as verdadeiras grandes obras da Humanidade. Estas são
etéreas, mentais, sublimes.
Para compensar, uma das vantagens da tecnologia de nossa época é o
turismo virtual. Pode-se ter todos os prazeres e muitos dos efeitos das visitas
dentro de um quarto com alguns aparelhos.
Sou, Paulo, o responsável por esses trabalhos. Pesquisador de carreira,
tenho fama de ser inteligente e bem sucedido. Comando uma estrutura enorme.
Milhares de cientistas, bases navais
(antigamente usadas pela Marinha de Guerra), muito dinheiro e autonomia
acima da média são os recursos de que disponho para estes projetos.
Meu tipo físico, sul-americano, atarracado, cara de índio, cabelo preto
e liso, talvez ajude em nossos propósitos. Diferente da média, tenho, talvez,
mais autenticidade e capacidade de percepção quando desenvolvo críticas à
sociedade em que vivemos. Minhas origens são distantes das grandes cidades.
Nossa reunião para acompanhamento da vida nas comunidades isoladas já
avança noite adentro. Os filmes, apresentados em três dimensões, dão o mesmo
efeito de presença, exceto pela falta dos cheiros e ventos típicos das regiões
bisbilhotadas. E como são lindas. Analisamos vidas em florestas distantes e em
vilas de ilhas no meio de nossos oceanos. A cor dos mares e florestas encanta e
apaixona. Meus companheiros, dedicados ao acompanhamento e análise desses pequenos
povos, não conseguem esconder a emoção nessas horas em que observamos a vida
dessa gente distante e tão próxima.
Aparelhos de toda espécie e muito bem camuflados acompanham suas
atitudes, prazeres e deveres. Muito longe de suas vistas, sistemas óticos
extremamente poderosos complementam as informações de que precisamos. Tudo isto
além de raros contatos diretos permitem-nos uma visão privilegiada de
pequeníssimas nações, que ainda conseguem manter suas culturas e padrões
econômicos.
É uma reunião de trabalho. No anfiteatro cheio de especialistas de toda
espécie, muitos fazem anotações para discussões posteriores.
Entre as muitas imagens do dia, sensivelmente mexeu com o pessoal um
encontro amoroso de um casal, habitantes de umas ilhas distantes. Na praia, ao
entardecer, despiram-se, fizeram-se carinhos de toda espécie e se amaram como
nunca tínhamos visto antes. E já vimos muita coisa. Creio que muitos colegas
sentiram inveja daquela dupla quase selvagem, naquele momento de amor
simplesmente natural. Na minha retina e em outros cantos de meu corpo ainda
lembro os beijos, abraços, a forma carinhosa e selvagem com que ele penetrava
em sua mulher, fêmea até o último centímetro quadrado de sua pele. E a ternura
após aquela hora de exercício sexual era a prova de um verdadeiro amor,
sentimento extremamente esquecido ou confundido simplesmente com o ato sexual.
Foram momentos em que me lembrei de um grande amor desperdiçado...
É uma reunião de trabalho. É muito importante discutir opiniões, pontos
de vista. A visão emocional é necessária pois acima de tudo procuramos entender
e avaliar os efeitos do progresso sobre a vida afetiva, os sentimentos e
comportamento das pessoas. Vendo uma sociedade tecnologicamente atrasada,
devemos estimar o que perdemos dentro de nós, habitantes de um mundo super
desenvolvido.
Tomo a palavra para falar-lhes de nossas metas:
- Nossa sociedade mergulha em um mundo virtual. A tecnologia domina
todos os nossos momentos e dá-nos quase tudo o que precisamos. Com todo o
progresso, apesar dele e por efeito dele, a Humanidade tem problemas e desafios
gigantescos à sua sobrevivência. Procuramos superar essas dificuldades
recorrendo a todo tipo de artifício. A maior preocupação é perdermos
identidade, senso de humanidade, capacidade de discernimento e participação em
um mundo que se torna hostil à nossa sobrevivência. Corremos sérios riscos de
fragilização e perda súbita de condições de resistir a uma catástrofe eventual.
E elas têm acontecido em dimensões quase críticas. Ainda agora uma doença
estranha está matando muita gente no sul da Ásia. É cedo para avaliar a
gravidade da situação mas é um exemplo dos riscos que corremos.
(paro um pouco, inicio nosso principal tema)
Vimos imagens e relatórios de grupos de pessoas que vivem em ambientes
isolados. Nessas comunidades, salvo algum controle da fertilidade, não deixamos
a “Ciência” avançar além do mínimo expontâneo, natural em suas lutas. A vida
média de suas populações é bem inferior à nossa. Não dispõem de nenhum recurso
de sobrevida total ou parcial. Escolas e filosofias, que eles consideraram
aceitáveis há muitos anos, quando este trabalho começou, são o que dispõem para
uma evolução cultural lenta e muito limitada. Agora, após tanto tempo, podemos
começar a tirar conclusões, fazer comparações e propostas.
Como provocação gostaria de fazer algumas divagações. Diante de cenas
apaixonadas como as que tivemos oportunidade de observar, obrigamo-nos a
questionar a validade de nossas instituições, ideais e paradigmas. Estaremos
preparados para os desafios do futuro? A felicidade daquele casal mostrou-nos
como ela existe nos padrões simples em que vivem. Esses padrões são perdidos o
meio de nossas cidades e aparelhos de toda espécie.
Da platéia Joel comenta:
- Dr. Paulo, realmente concordamos com suas colocações. Temos visto o
suficiente para desenvolver uma crítica sobre tudo o que temos estudado.
Infelizmente as propostas poderão desagradar a muitos. Corremos o risco de
sofrer reações de setores mais poderosos e organizados de nossa sociedade.
Esta observação estimula comentários paralelos e reações em muitos dos
presentes. Assim retomo a palavra:
- Realmente há riscos a considerar. Poderemos subverter-nos. (Joel sabe
o que pretendo insinuar). Qualquer pesquisador sabe que está sujeito a todo tipo
de pressão. A verdade incomoda aos dogmáticos, sacerdotes e principalmente aos
donos do poder. A ilusão é grande aliada daqueles que comandam povos.
Temos a oportunidade de estudar e, quem sabe, melhorar um pouco nossa
Terra tão desgastada. Usufruímos do privilégio de participar de um projeto de
pesquisas excepcional, o que nos dá condições de melhor análise. Precisamos
mostrar resultados que ajudem nosso povo a sair dos padrões a que se
submeteram. Não vemos felicidade real nas atitudes do homem civilizado,
avançado, moderno.
Joel insiste:
- A alienação de grande parte de nossa população a leva a ignorar
outras condições de sobrevivência. Nosso planeta tem limitações e seus espaços,
antigamente compartilhados com muitas espécies de vida, agora estreitam-se em
prejuízo de um equilíbrio perdido há muito tempo. E nossos irmãos esquecem os
riscos que correm ao desprezar certas condições elementares de existência.
O mais grave é vermos todos os sistemas de comunicação apresentando
programas que só contribuem para iludir nossa população. À medida que o tempo
passa, os programas tornam-se mais e mais alienantes. Lideranças formais não
falam outra coisa que implantar este ou aquele recurso para distração e
encantamento de nosso povo. Enquanto isto a temperatura de nosso planeta
diminui a cada ano, as geleiras avançam, os mares recuam, campos e florestas
desaparecem sob o gelo ou pela construção de novas cidades. Estamos próximos à
saturação total e não percebemos nada a favor de uma discussão profunda sobre o
futuro da Humanidade.
As nações mais ricas praticamente afundaram nos prazeres oferecidos
pela tecnologia. As mais pobres insistem em filosofias que as fazem mais
miseráveis e criam espaços para todo tipo de degradação.
A reação às suas palavras é forte. Muitos cientistas têm medo de
discutir política, como dizem. Para eles este é assunto proibido. Qualquer
menção direta ou indireta a direitos e deveres humanos parece-lhes falar de
algo estranho e proibido.
José Marcos, sempre defendendo os mais poderosos, parte em defesa dos
“poderes constituídos”:
- Graças à tecnologia, à mídia e ao Governo Central temos vivido em paz. Não encontramos nas
Américas quem esteja passando fome. As pessoas já não nascem com problemas
graves. A Ciência permite-nos um padrão de vida excelente.
Não temos culpa se algumas nações insistem em costumes retrógrados. As
diferenças são naturais.
A superpopulação é uma ficção. A tecnologia irá permitir-nos sobreviver
com segurança.
Querer viver em padrões como os que vimos em nossos relatórios é uma
utopia. Antes de criticar o Governo, deveríamos cumprimentá-lo pelo sucesso.
Manoel, ecologista fanático comenta:
- Estamos destruindo a Natureza. Restam poucas espécies de animais em
relação às que viviam sobre a Terra há pouco mais de mil anos. A poluição
gradativamente torna a vida impossível em muitas regiões da Terra. Onde está
nosso Governo? O que ele realmente tem feito a respeito, exceto muita mídia e
perfumaria? Ecologia não é pintar tudo de verde e construir museus com animais
e plantas artificiais.
A educação formal é flagrantemente alienante. Os principais temas, as
diretrizes, a forma com que todos são instruídos, educados, são para a
preparação de autômatos humanos. Há um processo de dominação que se torna dia a
dia mais eficaz na dominação das pessoas. As desculpas são eventualmente
apresentadas. O excesso de população exige disciplina, aceitação de limitações
severas. A vida está se tornando algo superficial, para muitos pura ficção.
Aproveito o gancho para colocar a essência de nosso trabalho:
- Nosso projeto Vida Básica pretende exatamente avaliar sob parâmetros
técnicos o que a Humanidade ganha realmente. Precisamos comparar modelos,
reações, medir até sentimentos. A Ciência permite-nos coisas inimagináveis há
pouco tempo mas também poderá nos conduzir para espaços vazios, vidas perdidas.
Felizmente ainda temos boas amostras de diversos estágios anteriores da
civilização humana e da fauna animal e vegetal. Até sem pretender filosofar,
simplesmente, deveríamos perguntar, o que é viver?
Joel intervém:
- Corremos o risco, entretanto, das nações consolidarem filosofias
aparentemente desenvolvidas mas absolutamente alienantes. Talvez nossas
propostas cheguem tarde. Na busca de confortos as pessoas se perdem em
facilidades perigosas. Um bom exemplo é o WIB? Será que o nosso destino é este?
Alfredo responde:
- Graças ao WIB muitos agora podem viver com certa tranqüilidade. Que
vida teriam sem o Banco?
- Mas como? Precisamos de vida natural, humana. As condições do WIB são
violentas. E a propaganda que se faz para adesões maciças...
- A solução não é esta. É pura loucura.
Loucura é viver confinado e consciente de limitações tão violentas
quanto estamos agora sujeitos. O estranho é a passividade da maioria da
população. Não reage, faz o que os líderes querem. O que está acontecendo
realmente?
O debate radicaliza-se.
A reunião é suspensa.
10.
Reunião do World
Intelligence Bank
Dallas, Texas, 50o andar do prédio sede do World
Intelligence Bank (WIB). O Conselho Gestor do WIB, reunido, discute suas
prioridades. Em frente de cada conselheiro um painel informa os resultados “on
line” do grande arquivo, fluxo de depósitos, consumo de energia, etc. As
entradas são assinaladas com todas as características do contribuinte.
Condições financeiras, relações familiares, idade, sexo, instrução, saúde e
potenciais produtivos aparecem em planilhas tridimensionais. Tudo é apresentado
de forma organizada, inteligente. A tecnologia nesse terceiro milênio é uma
questão séria, imprescindível pois o
Mundo, imerso em um clima glacial, oferece muito pouco para as dezenas de
bilhões de pessoas tecnicamente vivas. A poluição e o frio são um pesadelo a
desafiar as melhores inteligências.
O arquivo principal gera idéias para enfrentar o clima glacial.
Paralelamente uma equipe de apoiadores desenvolve estudos detalhados sobre as
condições operacionais do banco. O mais importante é enfrentar acidentes, como
a falta de energia. Outra grande preocupação é a qualidade dos elementos de
sustentação dos depósitos. Qualquer variação gera perdas ou mudanças
comportamentais enormes. No momento o principal é descobrir formas de
neutralizar o frio crescente. O processo é lento mas tem sido contínuo. Estudos
que não preocupam muito os próprios banqueiros, afinal resistem a temperaturas
mais baixas. Mas até eles dependem de energia, de peças importantes, de
inteligência.
O líder, de nome código John, já com muitos sinais da idade, expõe os
grandes desafios.
- A manutenção dos arquivos é o principal. Os depositantes não querem
se preocupar. Acostumados com inúmeras facilidades tecnológicas, não mais
percebem os excessos. A vida é um desafio complexo. O potencial da tecnologia e
as restrições naturais levaram a indústria a desenvolver inúmeras formas de
distração eletrônica. Nos países mais desenvolvidos tecnologicamente não há
mais interesse em outro desafio do que ser e estar dentro dos circuitos
culturais e lúdicos do grande sistema de sobrevivência passiva.
Grande parte da Terra está coberta por geleiras. As temperaturas terrivelmente
baixas fizeram das grandes cidades do Hemisfério Norte ambientes subterrâneos
ou fechados em inúmeros complexos de conservação de energia. As centrais foto
voltaicas, instaladas na região tropical, produzem quantidades imensas de
energia. Dependem, contudo, de sistemas de transmissão extensos. Qualquer falha
deve ser compensada pelos equipamentos locais de geração de energia. Mais
complexos e muito mais caros, são usados com muita cautela. A vida depende de
tudo isso.
E o nosso negócio é este, simplesmente. Nosso Banco é a grande
esperança de grande parte de nossa população. Querem garantir a vida que
conhecem, ainda que sob as limitações que oferecemos. Não podemos falhar.
John, fala. Transmite informações. Discute resultados.
O time ali reunido é um prodígio da tecnologia. Os cientistas tiveram
como maior desafio fazer com que esses banqueiros tivessem sentimentos, reações
quase humanas. Fazê-los compreender a lógica da tolerância, das ponderações
naturais e das filosofias maiores não foi fácil. Tinham como principal
instrução governar depósitos, não sabiam avaliá-los moralmente.
John tinha muito a dizer. Vinha de grandes análises. A principal
preocupação residia na manutenção dos arquivos não produtivos. Custavam caro e
as taxas pagas não estavam compensando. Um grande problema é que muitas dessas
taxas na época do depósito eram únicas e estabeleciam sustentação permanente. O
tamanho de cada unidade também era uma variável importante. Os maiores exigiam
muito para serem mantidos. E a produtividade era semelhante aos mais reduzidos.
O tempo passa, os critérios mudam, as discussões e questionamentos
surgem.
Aquele time em volta da mesa estava programado para analisar e discutir
com frieza a importância de seus estoques. E John coloca no circuito algumas
questões éticas. Esse time pode fazer análises holísticas. Novas lógicas e
recursos de processamento permitem um padrão de decisões muito mais elaborado,
desenvolvido.
Ética, a eterna dúvida entre o bem e o mal, é sempre um desafio.
Compreendê-la com profundidade é um desafio até para os grandes pensadores. Os
banqueiros têm sua própria ética, diferente da existente entre as pessoas do
mundo natural. Ela será exigida ao extremo, estão sendo cobrados, precisam
acertar, decidir rápido. Podem desaparecer apesar do imenso poder que exercem.
John coloca as questões:
- Como manter arquivos e garantir espaços para novos depósitos? Estão
ficando muito caros e complexos. Precisamos abandonar alguns? Nem todos, ou
melhor, grande parte é absolutamente improdutiva. E os compromissos assumidos?
Cada arquivo opera sob compromissos pré definidos, muitos deles estabelecidos
quando as condições externas eram completamente diferentes. Quanto devemos
gastar para respeitá-los? A rentabilidade diminuiu. Ou seja, temos menos apoio
na manutenção e operação deles. Podemos? Há necessidade de melhorar muitas
instalações. A tentativa de sustentar a todos poderá levar-nos a perdas
maiores.
Diante de tudo isso seria importante mantê-los a custos tão elevados?
Terão alguma utilidade algum dia?
E a reação dos povos mais selvagens? Suas religiões estimulam a
sabotagem. A segurança dos arquivos se deteriora (e o pior, dos próprios
banqueiros). Em alguns lugares a confiabilidade das fontes de energia é muito
baixa. Não tivemos maiores acidentes por pura sorte.
O avanço das geleiras é preocupante. Teremos um longo período, sabe-se
lá quantos milhares de anos, com severas restrições de espaço e elevadíssimo
consumo de energia. E elas destroem cidades, arrasam campos, derrubam linhas de
transmissão, mudam completamente regiões inteiras.
Ganhamos importância à medida que a vida normal se inviabiliza. Será
extremamente difícil, contudo, manter nossas agências. Algumas já estão sob
risco iminente de desativação. Como faremos para ajustar-nos às condições do
planeta? Quais serão as nossas prioridades e em que escala de valores?
Estas questões são transmitidas com sons, números, imagens e tudo o que
é necessário a uma mensagem completa. O movimento e as expressões de John são
captados integralmente pelos seus parceiros. É importante uma comunicação
perfeita, completa. E esta conquista tecnológica ali materializada pelo padrão
de comunicação e análise dos banqueiros era o que havia de melhor. Pela
responsabilidade que possuíam, não podiam desprezar nada. Tudo existia à volta
deles para completar o arsenal de informações ideal às decisões, que
rotineiramente são obrigados a tomar.
A reação é imediata. Pensar no futuro fora dos projetos antigos é algo
novo. Todos iniciam um processo de análise, que demorará algum tempo.
Felizmente para esses banqueiros o tempo não é tão crítico. O maior risco corre
a população externa. Quando eles começam a rever posições o mundo treme.
E além de tremer, não raro tem se assustado amargamente com as decisões
deste time.
A amplitude do WIB é mundial, em alguns lugares mais efetiva do que em
outros.
Seus serviços têm sido pretendidos por todos os povos. Nem todos,
contudo, têm sido capazes de sustentá-los. Atuam mais eficazmente nos países
mais ricos e, dentro deles, apenas onde há como sustentar toda a estrutura
necessária a seus arquivos. E eles já são enormes. Durante muitos anos
receberam uma quantidade significativa de depósitos. Agora, com os problemas
ambientais, o custo de operação cresceu muito. Administrar este universo de
problemas é um desafio gigantesco, nem sempre valorizado devidamente pelos
usuários. O WIB tem explorado formas de gerar recursos, aproveitando seus
depósitos. É uma forma de compensação importante pois esse arsenal guardado em
suas prateleiras tem um potencial gigantesco. Aproveitá-lo, entretanto, não é
simples. Manter é fácil, fazê-lo interagirem, produzir, gerar projetos, idéias,
é algo que a ciência ainda carece de alguns desenvolvimentos. A tecnologia
evolui, provavelmente logo teremos hiper computadores com a base fornecida pelo
WIB. É inimaginável o que eles serão capazes.
Felizmente para o WIB estamos em uma época em que a mídia é uma ciência
extremamente desenvolvida. Assim fica mais fácil trabalhar e evitar reações
negativas a falhas eventuais.
11.
Grupo Mundo Novo
Em um ponto de uma grande cidade, procurando fugir a todos os sistemas
de escuta e rastreamento implantados pelos poderes regulares e empresas de toda
espécie, nosso Grupo Mundo Novo discute filosofia. Todo cuidado é pouco. Pensar
é perigoso em nossa sociedade "livre". Chegamos não raro a pensar em
ações mais contundentes mas sabemos que a violência é o pior caminho, ou
melhor, a maioria de nosso time ama a não violência, a maioria, bem entendido,
pois sempre alguns companheiros mais exaltados acabam se deixando levar pelo
romantismo bélico. Além disso tememos a repressão. Já vimos a inibição de
muitos ativistas. Agindo sem muitos cuidados caíram nas mãos das forças
policiais. Submetidos a tribunais e leis feitos sob medida para a defesa dos
grandes grupos de poder existentes, acabaram condenados a ajustes especiais.
Considerados subversivos, foram presos e submetidos a processos de reeducação e
intervenções estranhas, que os deixaram completamente alienados. São agora
simples robôs nas mãos das elites dominantes. Aliás, nossa sociedade mais
parece um parque de máquinas. Aparelhos para todo lado e em torno deles coisas,
que poderíamos entender como sendo seres humanos, transitam sem grandes
expressões emocionais. O bom comportamento dessas multidões contrasta
totalmente com aquelas de antigamente. Com raríssimas exceções, em nosso país,
os americanos são agora indivíduos previsíveis, ajustados ao que se espera
deles.
O mundo mais desenvolvido não tem espaços para cadeias e elas são absolutamente
desnecessárias, quando se pode transformar os “criminosos”, deixando-os de
acordo com os modelos estabelecidos pelo Poder. E há vantagens nesse processo
quando lembramos que, ao final do segundo milênio de nossa era, só os Estados
Unidos da América do Norte tinham mais de um milhão de presidiários, gastando
bilhões de dólares para mantê-los em autênticas universidades do crime. Em
todos os países americanos as penitenciárias transbordavam de gente, vivendo em
péssimas condições e custando fortunas ao estado. A questão negativa é
pensarmos no direito que as elites exercem de mudar a personalidade das pessoas
sob o pretexto de corrigi-las. Pior ainda, será que essas mudanças são
razoáveis? Dentro dessa tecnologia poderemos estar caminhando para a ditadura
absoluta.
O Grupo Mundo Novo, nós, é um
pequeníssimo time de cientistas sociais e técnicos de alto nível. Todos ligados
ao também nosso Projeto Vida Básica, onde desenvolvemos pesquisas sobre o
comportamento humano, acabamos convencidos de que haveria necessidade de
mudanças radicais nas diretrizes culturais da Humanidade. Por diversas razões
sentimo-nos responsáveis e capazes de promover mudanças, perigosas mas
necessárias na nossa visão. Em nossas atividades profissionais devemos
limitar-nos à emissão de relatórios, que têm sido arquivados sem muita
discussão, apesar do altíssimo custo. A frustração de vermos pouca ressonância
ao que temos feito levou-nos à formação deste grupo. Clandestino por razões
óbvias, é o ambiente em que podemos discutir idéias menos convencionais e
hipóteses de ações mais enérgicas. Repudiamos, em princípio, o uso da força mas
até ela poderá a vir ser uma proposta que um dia talvez formulemos.
Discutimos a perda de vontade, a alienação política, a desatenção
social. Como promover as mudanças ? De que forma a Humanidade, apesar do
aparente sucesso, de todos os progressos, mudará seus rumos? Temos o direito de
agir nesse sentido? Existe algo que poderíamos fazer para que nosso povo
voltasse a ter mais liberdade, criatividade e felicidade genuína?
Reflito sobre o ensaio, que estava lendo, a respeito dos meios de
comunicação. É difícil de acreditar em tudo o que diz. Preciso conversar com
seu autor para avaliar a credibilidade de suas fontes, de suas afirmações. O
texto permite conclusões assustadoras.
Sobre ele rememoro, penso.
Grande paradoxo! A liberdade e a tecnologia foram e são o instrumento
de fortalecimento das classes mais ricas e organizadas. Com o uso de seus
recursos criaram instrumentos de dominação surpreendentes. No princípio era a
simples mídia. Programas de toda espécie propagavam as maravilhas de uma
liberdade fictícia. Fictícia pois dependia de dinheiro, de recursos que a
maioria da população não dispunha. Sempre com o sonho de escalar a montanha do
poder, da riqueza, aqueles que percebiam os efeitos da mídia entendiam que era
uma condição natural explorar a ignorância alheia, a ingenuidade, a
desonestidade de pessoas que pretendiam sempre lucrar algo pelo uso esperto de
alguma informação. A grande maioria simplesmente não se preocupava com o que
acontecia à sua volta.
O que poucos notaram é que a ciência e a liberdade de expressão de
qualquer pensamento nos sistemas de massa existiam para servir àqueles que
podiam pagar seus custos. Esses privilégios eram de poucas pessoas. Usando-os
conquistaram poderes imperiais sobre a sociedade. Monopólios diretos e
indiretos, apoiados em leis induzidas pelos grupos dominantes, completaram o
quadro de controle da opinião pública. E souberam usar tudo o que a tecnologia oferecia
para induzir e dominar pessoas. Paradoxalmente souberam também usar muito bem direitos que se entendiam
universais para dominar e restringir a própria liberdade. Os meios de
comunicação procuraram degradar sentimentos, vulgarizar comportamentos, supervalorizar
instintos. Assim tiraram a atenção da população sobre as questões mais básicas
da vida. Nesse ambiente de falta de cuidados as grandes empresas aprimoraram
recursos de dominação cultural. As guerras passadas foram exemplos eloqüentes
dos piores e mais evidentes efeitos da propaganda, do controle de mentes pouco
desenvolvidas. Agora sentimos o risco da escravidão total.
Com os conhecimentos aprimorados durante muitos séculos sobre o
comportamento humano, sabe-se com extrema precisão como corromper, aliciar,
envolver e dominar.
A sociedade da comunicação permite o trânsito de arquivos de toda
espécie. Deles um dos mais eficazes na dominação humana é o rastreamento de
fichas de análise médica e psiquiátrica. Algoritmos e lógicas sofisticadas
classificam as pessoas, orientando os donos desses sistemas sobre o que fazer
para dominá-las. Com o apoio de inúmeros diagnósticos, acessíveis às elites
(aqueles que podem pagar) a partir de exames médicos e psiquiátricos
aparentemente inocentes, devidamente analisados por centros de processamento
sofisticadíssimos, dão os elementos necessários ao estabelecimento de
estratégias de mídia e diretrizes de comando quase infalíveis. Só não são
perfeitos porque há pessoas que conseguem fugir a qualquer padrão.
A absoluta maioria da população dos países mais desenvolvidos
materialmente vive sob controles indiretos extremamente eficazes. Usando a
propaganda e somando o poder de empregar, distribuir riquezas e prestígio, as
elites poderosas cativam-nas, envolvem-nas, dirigem-nas. Essa é uma forma
tradicional de dominação, que apenas se aperfeiçoa ao longo do tempo.
Desde épocas distantes o aliciamento dos seres humanos baseou-se na
exploração de suas fraquezas intelectuais e materiais pelos mais fortes.
A Ciência deu sua contribuição. Bilhões de horas de estudos e pesquisas
acumuladas, metodizadas, organizadas e aproveitadas pelos mais modernos
sistemas de processamento de dados permitiram, dentro de uma lógica pré
definida, chegar a esquemas e bases de dominação inimagináveis poucos séculos
atrás.
Os meios de comunicação são complexos, variados e censurados de
diversas formas. Apesar de leis a favor da liberdade de expressão, sob o
pretexto de racionalizar os circuitos existentes, diversas formas de controle
da transmissão de qualquer espécie de informação foram implantadas. As grandes
empresas dominam politicamente as maiores nações. Para não perderem seus
poderes conseguiram desenvolver técnicas de controle do conhecimento
extremamente eficazes. A vontade, o dinheiro e a tecnologia juntos geraram
condições para uma tirania de elites jamais vista.
A globalização da economia, conquista do início do século 21, permitiu
aos poderosos penetrar em todos os recantos da Terra. No mundo sem fronteiras,
perde-se espaços de preservação cultural e política. O império dos donos
formais e indiretos dos meios de comunicação consolidou-se com novas
tecnologias. Houve um período de quase perda de controle graças aos sistemas à
época denominados INTERNET e similares. Quando perceberam os riscos que
correriam, estimularam sociedades conservadoras a, com medo de irem para o
inferno, autorizarem o estabelecimento de limitações ao uso dos meios
independentes de comunicação. Assim como aconteceu com rádios e televisões,
viraram concessões com regras muitos detalhadas de forma de uso.
O próprio desenvolvimento da eletrônica e informática viabilizaram a
implantação de controles mais e mais eficazes. O que menos interessa às grandes
empresas é a liberdade política. Seus grandes acionistas assumiram o lugar dos
grandes reis e presidentes. Com o infinito poder do capital e capacidade de
articulação, criaram sua própria democracia. Restrita a eles. Regularmente
elegendo líderes perfeitamente sintonizados com seus interesses, é dentre eles
que escolhem os grandes chefes, chefes depois exportados para a área política.
Comandando, paralelamente, associações patronais de megaempresas decidem tudo o
que importa a seus interesses.
Os governos nacionais e o entendido como multinacional são
liberalidades concedidas ao povo sob inúmeras condições ideológicas. A ditadura
do capital aliado à tecnologia é quase perfeita. Só não contavam com a própria
Natureza. O frio crescente, as geleiras avançando e falhas de comunicação até
nos melhores sistemas têm criado situações extremamente graves e permitido o
surgimento de rebeldes perigosos.
Grandes empresários, aliando conhecimentos sobre a mente humana e a
eletrônica, começaram a investir em sistemas de dominação direta. E de que
forma atingir este objetivo?
A principal descoberta foi dominar o controle químico e eletrônico dos
cérebros. Assim descobriu-se muitas formas para se satisfazer os desejos de
qualquer pessoa. Afinal a própria continuidade da matéria é uma ilusão. Dentro
de fantasias, imagens e sentimentos
governados pelo metabolismo e processos culturais pode-se ter reações
completamente diferentes de tudo o que afeta o comportamento humano.
O conhecimento da dinâmica alimentar do corpo humano e do funcionamento
do cérebro e sistema nervoso, o altíssimo nível da Química e o aproveitamento
dessas ciências na sustentação e estimulação dos seres humanos abriu espaços
para aplicações incríveis, inimagináveis no final do segundo milênio. Agora,
com todos os recursos de processamento de informações, tem-se um potencial
gigantesco de aplicações sobre o ser humano. E elas são usadas de formas as
mais diversas. Dos antigos e destrutivos vícios de antigamente, agora tem-se
uma coleção de estimulantes e inibidores extremamente eficazes. Esses
"produtos" são consumidos dentro de programas estabelecidos pelos
governos mais ricos.
As nações pobres esbarram na própria indigência, continuam brigando
entre si, matando-se por credos rudimentares e interesses imediatos. Têm mais
liberdade que os povos mais ricos, por enquanto. Mostram em comportamentos
estúpidos os instrumentos naturais implantados no ser humano pela Natureza, ou
seja, a tremenda agressividade e capacidade de aceitar qualquer proposta
beligerante. É interessante como a teoria do comportamento dos animais aplica-se
rigorosamente ao ser humano. O macho dominante, a necessidade de ser o maior e
mais forte, a imposição do líder aos demais e as lutas pelas fêmeas, a disputa
de espaços. No mato disputava-se a flechadas, agora é com os artifícios que a
indústria bélica oferece dentro das regras das grandes potências. O teatro vive
procurando atender a platéia.
Nos países ricos, contudo, o poder manifesta-se de forma mais
sofisticada, sutil e eficaz. Harmoniza e submete a todos os seus sem os sinais
extravagantes das sociedades mais atrasadas. E a tecnologia continua a
aprimorar os métodos de dominação intelectual.
Nosso Grupo Mundo Novo sente o desafio de encontrar uma alternativa.
Não podemos aceitar essa situação de dominação comportamental, cultural e moral
a que percebemos estar mergulhada a Humanidade, em especial os países mais
"desenvolvidos". Sabemos que é
difícil, muito pouco provável que venhamos a conseguir algo relevante. Tendo
consciência de tudo isso, contudo, sentimo-nos responsáveis, obrigados a agir
de alguma forma. Nossa responsabilidade em nossos cargos a serviço da ONU é
fermento para pretensões revolucionárias. A questão maior será encontrar uma
forma de agir. Talvez nosso alvo maior venha a ser encontrar formas de inibição
dos piores meios de dominação intelectual da Humanidade. Desativando
diretamente ou indiretamente esses sistemas estaremos devolvendo às pessoas
afetadas o direito de pensarem por conta própria.
Prosseguindo a análise do relatório que nosso pesquisador desenvolveu,
percebo a extensão da estrutura existente.
Sucessivamente aos processos químicos e orais, os grandes centros de
pesquisa a serviço de algumas grandes empresas perceberam que o ser humano
poderia ser influenciado por campos eletromagnéticos. Mensagens eletrônicas
imperceptíveis aos ouvidos mas captáveis pelo cérebro poderiam ser irradiadas
em locais super bem camuflados, discretamente. Duas grandes multinacionais
conseguiram sucesso no desenvolvimento de sistemas dessa espécie. Aproveitaram
experiências secretas já feitas no distante século 20, acrescentaram
informações posteriores (óbvio) e finalmente atingiram domínio sobre técnicas
de influência eletromagnética. Produziram equipamentos e lógicas de comunicação
dentro deste potencial. É um projeto relativamente recente. Tem algumas décadas
de serviço. Não atinge todos os países.
Centrais gigantescas foram construídas por essas empresas nos países de
maior interesse, coincidentemente os mais ricos. Laboratórios extremamente
secretos produziram equipamentos e instalações ainda mais escondidos. Note-se a
ironia. Agora são as nações mais ricas as principais vítimas de suas riquezas.
Por serem tão cobiçadas, tornaram-se o principal alvo dessas mega empresas.
Essas nações estão gradativamente perdendo o próprio controle. Toda a tecnologia
disponível está sendo usada pelas mega empresas e seus executivos para
controlá-las.
Em princípio utilizados para estimular subliminarmente o consumo de
produtos dessas empresas, os sistemas de influência eletrônica (SEI) logo
despertaram a vontade de manipular politicamente as pessoas. Desta forma grande
parte da Humanidade age, sem perceber, dentro dos padrões políticos e sociais
dessas companhias, ou melhor, de seus maiores acionistas.
Organizados no MEI, um sindicato de poderosos, dominam politicamente as
grandes nações.
E há outros métodos de dominação e outros grupos de poder. Produtos
alimentares, bebidas, estimulantes, calmantes e uma série de equipamentos
eletrônicos, que têm por principal objetivo submeter a população aos projetos
das elites dominantes, formam um arsenal extremamente eficaz.
Seus maiores investidores, para se organizarem melhor, criaram
associações patronais, autênticas máfias, onde discutem estratégias e ações
comuns. Em prédios luxuosíssimos, decorados por artistas famosos e mercenários,
edifícios projetados e construídos dentro das melhores técnicas, exercem seus
poderes sobre a Humanidade.
Esses bilionários (se é assim que se entende quem possui patrimônios
fantásticos) geraram famílias com sobrenomes e espaços genéticos bem definidos.
Não podem mais correr o risco de perderem o controle de suas empresas e do
povo, principalmente. Informações e segredos brutais são transmitidos sob
extremo cuidado a seus descendentes quando, a despeito de todo o poder e
tecnologia, sentem estar próximo o fim.
Concluindo o relatório o pesquisador diz que estamos sendo
escravizados, simplesmente. A Humanidade caminha para o controle total, a
dominação sutil e extremamente eficaz oferecida pelo conhecimento profundo do
cérebro humano e das formas de submetê-lo à vontade de quem maneja os sistemas
de influência eletrônica e outros recursos de monitoramento e controle da
vontade humana.
Diante de tudo isso sinto a indignação aumentar, a disposição para a
luta ferve. Sinto, contudo, o receio do comportamento apaixonado, da estupidez
da certeza, da disposição para lutas inúteis.
Nosso Grupo Mundo Novo precisa conversar muito mas sempre com a dúvida,
só falar?
12.
Analisando planos
Em volta de uma mesa, falando baixo e com todos os cuidados típicos
daqueles de épocas distantes, nas piores ditaduras, conversamos.
Ainda tenso após as últimas leituras, começo minha pregação diária. E
falo com uma base excepcional. Sou o gerente do maior projeto de pesquisa do
comportamento humano em desenvolvimento, a nível mundial. Minha função e
características pessoais me possibilitaram ser o chefe de um time complexo e
afinado em torno das principais teses. Isso tudo me permite ver o mundo de
forma diferente. Meus companheiros do Grupo Mundo Novo, todos arregimentados
dentro de meu espaço de controle, ouvem com atenção minhas palavras:
- Talvez tenhamos escapado dos eletrodos, das antenas, da mídia e
sistemas diretos de lavagem cerebral. Se isso é verdade, provavelmente possamos
agir de forma independente, talvez tudo o que estejamos dizendo seja nossa
vontade e opinião real. Descobrimos, por muita sorte, as muitas armadilhas
existentes em nossa sociedade, talvez não todas.
A liberdade e a consciência dos problemas existentes são compromissos
com a vida. Ter consciência dos grandes riscos existentes obriga-nos a agir.
Não temos o direito à omissão.
Nosso mundo não tem mais guerras mundiais, conflitos violentos só nos
países mais atrasados e distantes. Grande parte da Humanidade organizada e mais
rica sobrevive a paz dos cemitérios. Todos têm o que precisam. A dúvida é se
existem. Grande parte desta multidão vive mutilada, ligada a sistemas de
controle comportamental, monitorada. Populações inteiras estão sendo
conduzidas, administradas por forças desconhecidas delas próprias. São uma
massa estranha. Se antigamente deixavam-se entorpecer por distrações de toda
espécie, agora trabalham, estudam, rezam e divertem-se de forma excessivamente
disciplinada. E os objetivos desta disciplina são muito discutíveis. Vivem para
um trabalho do qual tiram muito pouco para o próprio desenvolvimento, conforto
e diversão. Se no passado as elites usavam o discurso da competitividade, da
necessidade de baixar custos, aproveitavam-se das altas taxas de desemprego,
agora todos têm suas ocupações, todos se alimentam e vivem de acordo com
padrões muito claros, limitados e suficientes a um modelo medíocre. É um
autêntico comunismo, da pior espécie. E tudo isso para que excessos de produção
sejam aproveitados por uma minoria, que vive a níveis assombrosos, se é que
também não sobrevive com limitações que desconhecemos
A diferença é muito pequena em relação à situação vivida pelos povos
ditos socialistas. O estado totalitário voltou a sê-lo com outro aspecto. O
grande partido único é aquele formado pelas associações patronais. As vaidades
são idênticas. A diferença é o acesso ao Poder. A escalada segue cartilhas não
escritas mas evidentes. O eterno cerco aos poderosos, o jogo hipócrita da
bajulação, a acumulação de riquezas por qualquer meio. Entre os ricos o que
importa é ter, possuir. Tendo são poderosos, mandam no resto da Humanidade. Uma
dúvida maior me angustia. Poderíamos realmente qualificar desta maneira o povo
americano, considerado mais desenvolvido? Talvez o que vemos seja o resultado de
uma forma de escravidão sutil. Não é a vigilância a maior força daqueles que
decidem sobre a vida de todos? Formas mais inteligentes de comando
transformaram cada cidadão em um boneco totalmente controlado. Esta é a
impressão que me deixa angustiado. Inexplicavelmente escapamos a esses
processos de influência. Alguns escapam. O impressionante, contudo, é a forma
passiva, cordata, disciplinada de comportamento do famoso cidadão
"livre".
Convencemo-nos de que nossos governos são simples representantes de elites
poderosas. Instrumentos desses sindicatos do poder, líderes políticos têm agido
tenebrosamente, estritamente dentro das conveniências dos mais ricos. Pouco
lhes importa a evolução real do povo. Quando não, são pessoas comprometidas com
a manutenção desse estado de coisas pois nossos cidadãos assim o “desejam”. E
por quê o desejam? O que os faz tão alienados?
Preocupa-nos o futuro dessa civilização. Estamos longe de um ponto de
equilíbrio com a Natureza. A poluição, a destruição de outras espécies de vida
atingiu níveis terríveis. E dentro de uma visão de extremo apego à vida as
pessoas ocupam espaços, que deveriam ceder a seus descendentes.
Quem manda? Como? O que realmente queremos ser?
A Terra mais parece um queijo suíço, de antigas épocas em que era
feito. É um planeta que navega pelo espaço com seres que se dizem vivos. A
ciência, a tão decantada ciência, de tão grande levou-nos à construção de
autênticos cérebros eletrônicos. Ninguém mais consegue afirmar que a conhece.
Os humanos tornaram-se fontes genéticas de chips muito bem montados em
computadores de toda espécie. Sociedades cibernéticas, colocamo-nos em
ambientes dirigidos por homens e máquinas. E transformamo-nos em robôs, seres
programados, monitorados.
O que é a vida? Para que nascemos? Queremos viver? Para apreciação de
vocês fiz algumas análises que peço estudarem com calma. Esses documentos estão
cifrados e só vocês poderão lê-los, por favor. Vocês têm os códigos, os
sistemas de interpretação que lhes entreguei na última reunião.
Maria, nascida na província peruana, grande psicóloga, índia bonita e
guerreira, ainda sentindo em suas entranhas os desejos de mulher, retruca:
- Ótimo, ainda há coisas a serem ponderadas mas a angústia é grande.
Vale sempre perguntar, acrescentando ao que você disse, ainda que sob a pecha
de um romantismo arcaico: O amor ainda
existe? Será que ainda conseguimos perceber a importância do puro e simples
amor clássico? e o Sol? A Lua? As grandes planícies? E as florestas e flores? A
poesia, a beleza, existem? Onde? Em placas de computador?
E elas são o resultado da luta pela sobrevivência. Sobrevivência
estranha em que alguns podem estar e ser gente, muitos trabalham sem saber para
o quê e outros vegetam com prazeres intermináveis. Existência terrível, à
medida que o tempo passa destrói outras vidas, faz de nossas planícies e
florestas imensas plantações. Os animais só sobrevivem em gaiolas e jaulas ou
em lugares onde são vistos como fontes de proteínas.
E os seres humanos, também engaiolados, param entorpecidos por produtos
químicos e eletrônicos.
E Deus? Existe? O que pretende? Que vida é esta em que encontramos a
Humanidade? O ápice de sua obra seria isso?
(O romantismo de Maria esconde um pouco seu caráter. É dura e violenta
quando assim o deseja.)
- É por isto que nos reunimos. Precisamos lutar pela retomada de uma
lógica, da ética e pela vida como Deus a colocou sobre a Terra. Não podemos nos
transformar em objetos de uma minoria iluminada. Pior ainda, objetos de
máquinas. É difícil acusar alguém. Simplesmente a sociedade foi se
transformando, assimilando tecnologias, tornando-se um aglomerado de
tecnologias em que o ser humano é simplesmente uma peça. De alguma forma é
urgente recuperar condições de sobrevivência sem essa estrutura tecnológica,
pelo menos na forma em que se encontra.
Nosso planeta carece de um equilíbrio biológico. A imagem de Deus é antes de mais nada ética, moral. Que
natureza é esta? Tudo menos o que se poderia imaginar resultado de uma visão
divina.
Interessante, falo mencionando a existência de um criador, Deus. Toda a
tecnologia e inteligência levaram-me a questionamentos e conclusões
metafísicas. Assim como a maioria das pessoas que ainda consegue ver a
Natureza, suas flores e animais, e olha para os céus e lá percebe luzes que há
milhões de anos saíram de suas estrelas, é difícil não acreditar em Deus. De alguma forma Ele
existe. Religião, contudo, parece-me impossível ter alguma (Seria muita
arrogância aceitar tanto conhecimento). E, dentro desta lógica, acredito ter
sentido alguma mensagem, parece-me existir uma espécie de missão. Na hipótese
de que tudo na Natureza teria alguma razão de ser, talvez a nossa seja lutar
contra o que vemos por aí. E nas hipóteses de ação não desprezo a possibilidade
de desenvolver lutas violentas.
Joel, barbudo como antigos guerrilheiros, mais jovem e ainda cheio de
hormônios, toma a palavra:
- E nossos planos, o que realmente faremos? Discutimos muita filosofia
mas pouco mudamos, praticamente não avançamos em nossos objetivos. Quando
tentamos simplesmente convencer nosso povo a mudar de comportamento, a reação
tem sido frustrante. Tudo o que fizemos até agora teve pouquíssimos resultados.
Nossos relatórios dentro do Projeto Vida Básica são desprezados. A ação
pacífica parece-me inútil.
Não entendemos. As pessoas parecem não ouvir. Maravilhadas com detalhes
esquecem o conjunto. Ou algo as faz não perceberem em que nos transformamos.
Acredito que algo deva ser feito de violento. Precisamos destruir a base
tecnológica que sustenta esse mundo. Muitos morrerão mas retornaremos a um
nível realmente suportável e compatível com nossa Natureza. Ou queremos ser
apenas cérebros abastecidos de impulsos lúdicos? Temos um grupo razoável de
companheiros que, por alguma razão desconhecida, parecem fora do padrão normal.
Com eles discutimos, trocamos idéias. Em todos nós encontramos a mesma
angústia. A Humanidade é numerosa. Somos dezenas de bilhões de seres vivos.
Quantos a Terra suporta e quantos nós desejamos?
A mídia matou o ser humano racional. Ele é uma raridade. Filosoficamente
parece que não existe mais. Ou melhor, nunca nasceu.
Modismos de toda espécie conduzem a Humanidade, governando
comportamentos, vidas e sentimentos.
Agravando a situação parece-nos que muitas pessoas deixam-se
instrumentar. Acreditamos que aparelhos são instalados em seus corpos. Assim
pais levam filhos para ajustes que, no dizer de muitos sacerdotes, garantirão a
santidade, uma vida no paraíso. É impressionante a sobrevivência de tantas
religiões com idéias e propostas tão retrógradas. Elas são uma demonstração
inequívoca de que muitos seres humanos simplesmente são incapazes de pensar.
Não há evidência que mude certos indivíduos. E têm adeptos. As pessoas procuram
no mundo imaginário as razões que não encontram na Terra, concreta, dura, severa.
Precisamos agir para devolver à Humanidade um pouco de decência, de
existência digna. Organizamo-nos para ações políticas. Temos certeza de que
podemos contribuir. Essa estrutura tem pontos falhos.
Em breve deveremos estar discutindo um plano de ação mais efetivo.
Muito pode ser feito com muito pouco. Basta conhecermos os pontos fracos do
sistema em que vivemos. A questão é pesar e medir as conseqüências. Nosso
sentimento revolucionário não é apenas o de simples rebeldia ou luta pelo
poder. Todos aqui reunidos têm inteligência privilegiada e esperam transformar
a sociedade pela forma mais pacífica possível. Há necessidade, contudo, de uma
mudança nos rumos de nossa civilização. A transformação pacífica parece-nos
impossível. Por qualquer razão que desconhecemos as pessoas não entendem nossos
discursos. Não vêem, não ouvem e não falam. Quando o fazem é para discutir
tarefas rotineiras, trabalhos comuns, atividades esportivas ou culturais
lúdicas.
Pela nossa formação e experiência conhecemos principalmente os sistemas
de energia. Sabemos como a sociedade atual é dependente dela. Qualquer
descontinuidade poderá causar a morte de milhões de pessoas mas, em
contrapartida, fará com que os sobreviventes pensem um pouco, retornem às lutas
e sonhos antigos e revejam valores. A evolução humana permitiu um maior
desenvolvimento de suas inteligências. Elas agora precisam de um novo padrão de
motivação para uma reconstrução mais saudável.
- Gente, o principal é não nos perdermos e, cedo ou tarde, chegarmos à
nossa meta, ou seja, devolver à Humanidade condições para uma vida livre,
pensante, decente. Precisamos ser competentes e não perdermos o objetivo
principal, ou seja, encontrar um caminho que devolva a dignidade à vida humana.
Não é nosso objetivo destruí-la. Estudamos a hipótese de adoção de formas
violentas mas as conseqüências são imprevisíveis. Não havendo alternativas,
seguiremos o caminho sugerido pelo Joel. Talvez com maior conhecimento de
detalhes da estrutura tecnológica de dominação possamos atuar com um mínimo de
agressões.
Devemos observar com atenção a epidemia que parece desenvolver-se na
Ásia. Talvez a Natureza esteja nos ouvindo e tenha decidido conter nossos
excessos ou o Grande Arquiteto esteja revendo seus projetos.
- É, e os religiosos começarão séries infinitas de rituais e pregações
de bajulação a seus deuses.
- Como assim Joel?
- O que é uma religião? Não é uma sociedade organizada de bajulação a
um ser superior? Normalmente os crentes esperam, agradando a Deus com rezas e
rituais intermináveis, compensar suas falhas mais do que prazeirosas e
voluntárias.
_ Já disseram que as religiões são o ópio do povo. Talvez elas sejam
absolutamente necessárias àqueles que não têm coragem ou inteligência para
entender a simples existência de um ser superior, do que poderíamos denominar
"o Grande Arquiteto do Universo". Nas mentes simples ou apenas
oportunistas da imensa maioria das pessoas Deus é uma muleta extremamente
oportuna, quando alguma desgraça ou disputa acontece. É divertido ver como
acreditam que repetindo frases e poses esperam conquistar a simpatia de um ser
superior. A verdade é que o fanatismo e a alienação de muitas religiões já
causou imensos sofrimentos à Humanidade.
Maria intervém:
- E se não acreditassem em Deus e não tivessem suas religiões?
Sacerdotes, templos e bíblias tiraram a Humanidade de seu estado selvagem
primitivo, criaram condições para uma vida em sociedade sem a presença de
soldados ao lado de cada indivíduo. Anjos e demônios substituíram exércitos no
disciplinamento de multidões.
Joel intervém:
- Agora ajudam a escravizar...
Coloco um ponto final em um debate que poderia ter consumido muito
tempo. Precisamos discutir detalhes de
ações que, imagino, possam ser o começo desse processo de transformação. Ações
que poderiam ser violentas mas estritamente dentro do mínimo necessário. Já me
disseram que todo revolucionário pensa desta forma. Talvez estivessem brincando
mas a verdade é que algo precisa ser feito. Entendo que a violência é um
direito daqueles que lutam pelo bem da Humanidade.
Saíram cada qual para seu lado. Permaneço com alguns companheiros mais
técnicos. Especialistas eletrônicos, a maioria deles, perceberam em suas
atividades profissionais que certos recursos estavam criando condições de
dominação acima da média. Eles próprios, inteligência superior à da grande
maioria da Humanidade, conscientizaram - se da importância de mudanças de rumo.
Estranho foi a formação deste grupo. Atuando em nossos projetos,
encontramo-nos em um grande seminário. A tecnologia era o tema maior. A
política surgiu por descuido. Meu discurso, após uma noitada de estimulantes,
assustou. Comecei a denunciar o progresso e a propor mudanças radicais. A
maioria não deu atenção ao que eu falava. Maria, contudo, talvez até em razão
de ter sido minha amante, registrou
cuidadosamente minhas observações e elas foram o pretexto para novas conversas.
O amor sexual transformou-se em paixão política. A cama é uma boa
escola. Juntos procuramos mais aliados. O grupo foi crescendo lentamente. Após
alguns anos de cautelosa seleção e envolvimento o Grupo Mundo Novo tomou forma.
Pessoas ainda idealistas uniram-se a nós. Passar da teoria para a prática é o
desafio maior.
Maria já não é minha companheira de cama e mesa; continua, entretanto,
presa a nossos ideais. Em seus conflitos segue linha própria. Seus sentimentos
femininos marcam suas propostas. Minha preocupação é unir pessoas tão
inteligentes e com um potencial tão grande, para o bem e para o mal. E Maria é
um vulcão que ilumina caminhos. Ela tem me ajudado muito com sua capacidade de
liderança, comando que só era chato quando ela pretendia me governar...
13.
Banqueiros discutem depósitos
A reunião dos banqueiros prossegue há dias. A questão de como garantir
a sobrevivência dos arquivos mais antigos não converge. Todas as hipóteses
testadas deram resultados muito ruins. A substituição de certas peças é difícil
e há milhões delas nesse estágio. São componentes com metais nobres, cada vez
mais raros. E sobre tudo paira a lembrança de que parte desses arquivos é
totalmente improdutiva.
Agravando a situação vem a constatação de que este período glacial é
para valer. As geleiras avançam destruindo cidades e empurrando multidões para
as antigas regiões tropicais. As cidades nessas regiões crescem sem parar.
O frio, por sua vez, poderá ser um aliado na conservação dos depósitos.
O tempo para reversão do processo talvez traga outra solução.
Enquanto isto os banqueiros discutem como obter mais recursos. A idéia
de cortar despesas, contudo, é forte e começa a ser considerada nas simulações.
Tendo agora capacidade para compreender a violência de suas decisões,
esses banqueiros, outrora frias máquinas, percebem a dificuldade ética das
decisões que provavelmente tomariam.
Os elementos depositados nos arquivos estavam sujeitos a desligamentos
desde o momento do depósito. Até assinaram, antes, documentos em que
reconheciam esta condição. A expectativa de prazeres fáceis, entretanto,
superou o medo e todas as demais restrições. Outros simplesmente não tinham
opção. Ou aceitavam ou desapareceriam.
Mas os banqueiros agora têm sentimentos, procuram, de todas as formas,
alternativas para sustentação das centenas de milhões de unidades depositadas.
Precisam usar todo o potencial de seus cérebros. Querem encontrar
alguma solução antes de acionar o Governo Central e seus ministros. Sabem que
lá estão pessoas que há muito deixaram de sentir. Humanos mais frios que as
máquinas que criaram.
E ainda para agravar a situação foram informados de que grupos de
anarquistas, que fugiram ao controle do Governo Central, querem destruir os
bancos. Para eles essas instituições são o símbolo de um mundo indesejável.
Apesar de todos os benefícios para muitos, que entendem que o fim material deva
ser evitado a qualquer custo, existem pessoas que acreditam na necessidade da
morte para poderem migrar para outros mundos onde serão julgadas e premiadas ou
penalizadas. Para outros morrer é um momento de passagem para uma vida melhor
ou, simplesmente, de descanso. Um bom número de pessoas, entretanto, agarra-se
à vida não importa como. Assim os banqueiros discutem como manter seus ativos e
resistir a todas as pressões estabelecidas por líderes e liderados.
As hipóteses são colocadas. E a transferência de depósitos? É muito
cara. Não há veículos suficientes. Onde instalar ? Segurança? Justamente nas
regiões mais quentes os anarquistas têm mais liberdade. Podem viver fora dos
ambientes protegidos e alimentar-se nas áreas abertas. Assim fogem das antenas,
dos rastreadores e sistemas de influência eletrônica.
Nessas análises um membro da diretoria do Banco apresenta problemas. É
imediatamente encaminhado para o grande hospital. Salas brancas,
irrepreensivelmente limpas, autômatos de toda espécie e estoques de
equipamentos incríveis estão permanentemente à disposição do comando do Banco.
Lá dentro um outro diretor passa por um “check up” completo. Enquanto isso a
diretoria, sem dois membros importantes, perde velocidade. A discussão e
simulações demoram mais.
Do Governo Central chegam mensagens.
A ordem é cortar despesas. Planejadores da nova equipe de gerência do
Governo Central querem aplicar uma política de austeridade. As perspectivas são
ruins. O resfriamento implacável da Terra, aliado à falta de energia, exige
ações drásticas e redirecionamento de investimentos.
Diante da diretoria do WIB, Thomas, representante do Governo Central,
coloca suas teses:
- O Presidente determinou redução de despesas. Estamos gastando muito
na reconstrução de cidades e deslocamento de pessoas em direção a regiões mais
quentes. Nossa prioridade é atender as pessoas normais, operativas.
John reage:
- O WIB tem contratos, compromissos que são sua razão de ser. Como
alterar tudo sem prejudicar aqueles que confiaram em nossos propósitos?
Thomas insiste:
- A situação é muito grave. Não adianta respeitar contratos e processos
antigos se por efeito desses propósitos viermos a perder tudo. Trouxe arquivos
e programas para análise de vocês.
Álvaro, o diretor mais técnico do WIB levanta-se, pega os módulos e os
coloca nas gavetas para processamento.
John retoma a palavra e começa a avaliar as possíveis reações a medidas
de contenção de despesas.
O povo é fácil de administrar. Os sistemas de controle eletrônicos
induzem a população a agir de forma menos ativa. Há até a desconfiança, entre
aqueles poucos que sabem da amplitude dos controles através deste recurso, de
que o número anormalmente elevado de suicídios seja uma inspiração eletrônica.
Já não é segredo que a atividade sexual nos países mais desenvolvidos
esteja sendo inibida de propósito. Por agradar formadores de opinião, é um
projeto divulgado, defendido pelas autoridades. Os governos sempre procuram as
soluções fáceis e esta tinha o apoio de religiões milenares. Seus sacerdotes
defenderam entusiasticamente as propostas de menos relações sexuais. O céu
ficava garantido. O que poucos sabiam é que, mais eficientemente que as
campanhas e discursos de igrejas, os sistemas eletrônicos de influência (SEI)
têm esta programação e efetivamente agem inibindo a sexualidade, dirigindo a
libido para outros áreas de interesse da MEI.
As elites vivem como sempre viveram, usufruindo da economia feita sobre
os mais produtivos. Sabem como escapar e neutralizar os inúmeros controles,
assim nada impede que tenham uma vida de
fazer inveja a muitos reis. A grande dúvida é se realmente são felizes.
A vida alucinante que levam esgota sentimentos e sensibilidades. Fragilizados
diante da Natureza, assustam-se ao perceber os desafios gerados por um Universo
muito maior que suas insignificâncias. Incapazes de se respeitarem, acabam
desprezando a si mesmos. Nas facilidades em que vivem, perdem forças. Sentem a
pressão das mudanças. A infelicidade não é difícil de perceber em muitos
rostos. A Terra muda rapidamente.
Muitos decidem desligar-se da vida normal, ligar-se aos bancos e
“viverem” dentro dos padrões estabelecidos em discussões seculares. O problema
é como entrar nos arquivos, se inteiros ou parcialmente.
O acesso aos bancos, desde que foram inventados há poucos séculos, é
algo polêmico. Os bancos já foram considerados pecado, crimes contra certas
religiões.
É interessante notar que muitas seitas organizadas, que antes
condenavam tal atividade, agora têm seus próprios bancos. Assim podem
administrar seus depósitos de acordo com seus critérios. Demoraram para
entender esta possibilidade.
Agora, entretanto, é momento de racionalizar serviços, cortar despesas
e rever prioridades.
14.
Marta
Que saudades de Marta. Era uma pessoa otimista, corajosa. Ajudou-me
muito. Em momentos difíceis ela me encorajava. Era a companheira, o estímulo
para o passo seguinte. Não era fisicamente bonita mas envolveu-me por muito
tempo. Vivemos momentos maravilhosos. Quem disse que somos fortes? Sem uma
companheira sentimo-nos iguais a vira latas, cachorros que diziam existir nas
ruas das cidades antigas, ainda freqüentes nos países mais atrasados. Não luta,
come lixo, vive de qualquer jeito. Elas são nossa bússola. Ruins, muitas vezes
perdidas, mas ponteiros que nos dão alguma indicação de rumo.
Quantas mulheres um homem poderá ter? Por quê homem e mulher deveriam
se limitar a um par? O Mundo avança mas certos critérios de três mil anos
passados continuam dominando nossa cultura. Que inferno. Tivemos excessos. O
amor livre era tudo menos amor. O amor pode ser "não livre"? Deve ser
restritivo? Em nossa época química e eletrônica fica difícil até saber o que é
o amor. Talvez eu esteja em ambiente privilegiado. Sei, mas se algo conheci foi
o amor. É fantástico ter alguém que lhe quer junto, que deseja seus lábios, que
lhe procura pelo prazer do contato, da voz, do cheiro, do calor, que
simplesmente gosta de você.
A rotina faz esquecer. O desejo da novidade embrutece, afasta, estiola
sentimentos. Marta foi sendo perdida ao longo de um tempo de rotinas, de
encontros estereotipados. Flor sem qualquer fertilizante, terra cansada,
definhou e afastou-se. Agora, mais do que nunca, sinto sua falta. O pesadelo
das novidades, das crises, exige um apoio otimista. Ela se foi, contudo. Nesse
Universo imenso, quem sabe onde estarão amores tão perdidos?
15.
A epidemia
Países menos desenvolvidos vivem a eterna miséria material e humana.
Perderam a oportunidade de serem independentes, enfraqueceram-se diante dos
mais ricos. Escravos dos esquemas de poder das nações mais poderosas,
tornaram-se produtores de matéria prima e artigos de alta densidade de mão de
obra. Com a automatização das indústrias, a miséria consolidou-se. A
superpopulação e o atraso intelectual criaram cenários terríveis há muitos
séculos, cenários que só pioram.
O sul da Ásia explode de miséria e gente. Grande parte de seu povo,
preso atavicamente a religiões milenares e resistentes a mudanças essenciais de
hábitos, vive em condições de promiscuidade, subnutrição e alienação incríveis.
Alimentos sintéticos são rejeitados. Propostas de planejamento familiar
esbarram na ignorância. A terra exaurida pouco acrescenta a seus pratos. Toda a
tecnologia é insuficiente para produzir os alimentos necessários. Mesmo os
espaços ganhos ao mar pela diminuição do nível dos oceanos não têm acrescentado
o suficiente para uma geração de alimentos capaz de sustentar um povo tão
numeroso.
O frio é outro problema grave neste continente. Grandes territórios
agora estão cobertos por geleiras improdutivas. As terras ganhas com o
rebaixamento dos oceanos não compensa as imensas áreas cada dia maiores
esterilizadas pelo frio. As conexões desse continente com o norte da África,
grande área geradora de energia, são precárias. Depende muito, demais, da
geração de energia nuclear em usinas já antigas.
Uma epidemia dá seus primeiros sinais. De uma maneira estranha milhares
de pessoas começaram a morrer. Cidades foram cercadas. Cordões de isolamento
procuram impedir a saída dos sobreviventes. Do mundo inteiro cientistas chegam
para analisar as causas dessa praga e discutir soluções. Infelizmente a
velocidade de propagação é maior que a inteligência desses senhores. O problema
é que muitos desses especialistas já morreram mesmo com os cuidados
estabelecidos e utilizados em experiências anteriores. Estranhamente uma
pequeníssima parcela da população não é atingida pela doença. Diante das
imagens violentas da morte, contudo, a maioria enlouquece ou foge para os
lugares mais isolados.
Como controlar multidões? Como evitar a disseminação de uma doença
desconhecida e tão veloz?
Os dirigentes desses países parecem não se preocuparem muito. Vêm do
pesadelo da sustentação de seu povo. Na esperança de encontrarem uma solução,
entendem que as mortes verificadas talvez abram espaço para uma nova civilização. Mas a tão esperada cura não
aparece e eles próprios começam a perceber que poderão estar na lista dos
mortos por essa praga...
As classes mais ricas estão mandando suas famílias para lugares mais
seguros. Antes que as fronteiras sejam bloqueadas milhares de pessoas partirão
para lugares mais tranqüilos. E nessas viagens provavelmente levando a doença
para mais longe.
Por enquanto seus arquivos estão seguros. O World Intelligence Bank
oferece seus serviços garantindo um padrão internacional. Mesmo sem assistência
direta o banco consegue operar por um bom tempo desassistido, desde que tenha
estoque de certos materiais e abastecimento de energia. Os gerentes determinam
o isolamento de suas agências. Seus clientes não gostam. A dificuldade para
muitos é afastar-se de seus depósitos. Neles existe a esperança de um retorno
querido. Um retorno melhor, em condições muito diferentes dos existentes no
momento da aplicação. Mesmo sabendo que toda a tecnologia dá um amparo
razoável, não é fácil para aquela gente, tão apegada a suas tradições, abandonar
seus entes queridos. O MBI gerou novos hábitos, criou esperanças de
sobrevivência, e agora?
O crédito conquistado pelos banqueiros teve no passado momentos de
grande dificuldade. Muito foi perdido como resultado da aplicação de teorias
erradas e displicência dos controladores. Aos poucos o MBI ganhou tecnologia de
comunicação e qualidade na própria mídia. Todos os recursos possíveis e
imagináveis foram usados para cativar clientes. E o treinamento dos gerentes, o
aprimoramento deles ajustando-os para todo tipo de ambiente foi um desafio
vencido pelos especialistas. É importante lembrar que as grandes empresas
multinacionais esperam desenvolver produtos a partir do aproveitamento dos
estoques do MBI. No início falharam no controle de suas agências principalmente
por efeito de diretrizes equivocadas, diretores mal preparados. Os novos
banqueiros diretores, contudo, eram tudo o que se imaginava de padrão de
qualidade. Essa epidemia, contudo, é algo que estava fora de programação. Os
agentes precisam de mais instruções, melhores comandos, que confusão!
E a epidemia ameaça contaminar outras regiões. Nas áreas atingidas o
pesadelo é indescritível. Pessoas mortas e conservadas pelo frio, mortas em
suas camas e casebres, permanecem quase mumificadas, secando gradualmente.
O pânico atinge milhões de pessoas. Os líderes espirituais mais
convictos divulgam explicações incríveis para as causas do problema. Em muitos
casos até ajudam a manter a ordem. À medida que as pessoas se resignam e
aceitam com mais tranqüilidade a hipótese de uma desgraça, diminuem os riscos
de violência e excessos típicos de multidões descontroladas. Em outros lugares
a violência se instala pois seus líderes espirituais apontam “pecadores” como
responsáveis pela vingança divina. Inquisições renascem por algum tempo em
cidades e vilas mais atrasadas, linchamentos de pessoas que apresentam qualquer
detalhe que lhes pareça desagradar aos deuses é rotina. E a violência dura até
que a vontade de Deus determine a morte dos inquisidores.
Nos países mais desenvolvidos o medo desta epidemia aciona governos e
lideranças de toda espécie. A doença começa a preocupar seriamente as
autoridades. Os bloqueios são instalados e as discussões em cima dos relatórios
dos melhores especialistas ganham força.
Lideranças políticas surgem propondo ações de toda espécie. Os sistemas
SEI foram acionados para inibir reações piores. Parece que começam a ter efeito
sobre o comportamento da maioria. Nada resiste à tecnologia e às propostas
religiosas quando unidas para controlar o povo. E muitas religiões entendem que
finalmente o apocalipse chegaria, que Deus surgiria das nuvens para receber os
melhores etc. Outras versões para o fim
do mundo começaram a ser apresentadas.
E na Ásia a doença progride com uma severidade implacável.
16.
Os banqueiros discutem a redução de custos
Os banqueiros continuam a discutir seus problemas. Indiferentes à
tragédia asiática, mais preocupados com os sabotadores, procuram formas de
manter seus arquivos. Discute-se a hipótese de falta de condições de
preservá-los diante da carência de energia. E essas discussões geram,
automaticamente, infinitos cálculos, simulações incríveis. Pode-se dizer que
nada lhes escapa.
A austeridade pretendida significará não reforçar sistemas de
transmissão de energia. Inúmeros fatores, em especial a necessidade de
encontrar outras rotas e vencer obstáculos técnicos conseqüentes da queda
gradativa de temperatura, estão inviabilizando instalações antigas e tornando
as novas muito complexas e caras. Todos os esforços de pesquisa e
desenvolvimento técnico e industrial não impedem o encarecimento crescente de
qualquer obra de infra-estrutura.
Os volumes de energia a transportar são imensos. A energia elétrica é
agora a principal base para a sobrevivência da Humanidade. O frio gigantesco, o
esgotamento dos combustíveis e os problemas ainda não resolvidos de fontes de
energia mais potentes fazem com que a energia solar, transformada em elétrica
pelas células fotovoltaicas, seja a mais abundante no uso comum e a que oferece
mais segurança. Lamentavelmente as áreas mais ensolaradas estão muito distantes
das maiores civilizações. As grandes cidades precisam de muita energia e a
faixa tropical está muito longe, com raras exceções.
O saudoso petróleo agora é insuficiente até para as aplicações mais
nobres. O plástico, que a princípio tinha alternativas vegetais, até isso
perdeu com a necessidade de transformar qualquer coisa em alimento. Nossa
prioridade é calor, precisamos de combustíveis para sustentar imensas regiões.
Sempre imaginaram poder usar o petróleo indefinidamente mas as guerras do
início desse milênio e o domínio político das maiores reservas atuais impedem o
uso adequado.
E os radicais daquelas regiões não precisam de dinheiro, basta-lhes a
lealdade de seus povos. O que temos de combustíveis fósseis está com este
compromisso, ou seja, compensar as mudanças ambientais, o frio. Apesar do
efeito poluidor são indispensáveis. O efeito estufa, tão combatido antigamente,
era positivo à medida que protelou o início deste período glacial. Ele ajudou
durante um certo tempo, agora, infelizmente a temperatura cai sem que possamos
impedi-lo.
As centrais atômicas dão suas contribuições mas os riscos crescem à
medida que o frio atua nas estruturas das centrais mais antigas, como desativá-las?
E John coloca a questão;
- O que desligaremos primeiro se não tivermos condições de sustentar
nossos arquivos? A questão a ser simulada matematicamente é descobrir qual é a
menor perda, como otimizar os recursos existentes, e, dentro desses programas,
quais são as prioridades.
Temos arquivos imensos. Alguns, absolutamente inúteis, usam recursos
valiosos. Outros contribuem. Estão no circuito produtivo. Parte deles, contudo,
não tem capacidade para oferecer algo significativo. Artificialmente já temos muito
conhecimento acumulado.
De qualquer forma os riscos de descontinuidade aumentam diariamente.
Existem, tecnicamente, alternativas energéticas, mas são caras e de instalação
demorada. Nenhum grupo empresarial interessou-se pela exploração delas. Os lucros
seriam muito pequenos.
Temos sentimentos e capacidade de avaliar eticamente esses problemas.
Assim nos fizeram após muitas pesquisas. Agora podemos dizer que vivemos. As
decisões ficaram mais difíceis. Era fácil ser banqueiro quando não tínhamos
essa capacidade.
De qualquer forma vamos estabelecer plano de redução de despesas,
considerando, inclusive, a desativação de alguns depósitos. Poderemos
transformá-los em “arquivo morto”. No futuro talvez possamos reativá-los. Assim devemos estudar quem, quando, como,
onde, quanto e a que custo faremos as mudanças. Nas atuais perspectivas
verificamos não haver outra alternativa a curto prazo.
Álvaro faz seus alertas:
- A desativação de qualquer arquivo exigirá medidas sanitárias,
cuidados especiais de destruição dos depósitos. Talvez venhamos a gastar mais
inibindo-os do que mantendo-os. Precisamos estudar cuidadosamente como fazê-lo.
Qualquer descuido será terrível. O ideal será começar pelos mais próximos das
geleiras, das regiões mais frias.
John intervém:
- Acontece que exatamente esses são os mais importantes. Pertencem aos
grupos humanos mais ricos, poderosos. Essa é uma questão muito séria,
precisamos avaliá-la com profundidade. Quero que nosso diretor de relações
públicas desenvolva uma estratégia minuciosa de mídia e convencimento popular
sobre o que fatalmente acontecerá.
17.
Júlia
Júlia brinca em um quarto no centésimo vigésimo andar de um prédio de
aço no centro de Miami. As paredes eletrônicas, telas de sistemas de
comunicação e de quadros de jogos e desenhos são sua maior distração. As praias
raramente são visitadas. A superpopulação exige escalas e a poluição é um
problema. Freqüentemente estão impraticáveis. As pessoas, de tanto viverem
segregadas, já não têm defesas naturais suficientes para resistir aos problemas
ambientais. Precisam de proteções até porque o ar contém elementos químicos
perigosos, precisando de filtragem. Os adultos, mais resistentes, têm maior
liberdade nessas grandes cidades americanas. As brincadeiras de povos distantes
agora são impossíveis.
Criança de um povo sem crianças, vive a infância de uma vida que lhe
dará, quando muito, alguns controles, telas e compromissos que lhe
estabelecerão as grandes empresas.
Nasceu em um mundo que não sabe mais o que é liberdade, pelo menos ali,
império da tecnologia a serviço não se sabe mais de quem.
Júlia brinca esperando a hora para se deitar sob luzes, que lhe
compensarão a falta de Sol.
Sua mãe se prepara para encaminhá - la a um hospital. É hora de
implantar dispositivos em seu corpo que ela mal conhece. No processo a que se
submeteu para engravidar concordara em aceitar recomendações dessa espécie.
Assim como seus pais e avós, ela entende que é sua obrigação seguir os
costumes de seu povo. Afinal a igreja de que participa enaltece permanentemente
as maravilhas dessa civilização bem comportada. Graças à tecnologia os fiéis já
não pecam, seguem disciplinadamente as leis do Senhor. A felicidade é total, as
pessoas vivem mostrando sorrisos. Ninguém reclama de nada.
Os povos dos Estados Unidos das Américas têm um apreço muito grande às
religiões originárias do Oriente Médio. Assim a população ainda se divide entre
as três linhas tradicionais: cristã, judaica e muçulmana. Todas elas pregando
muito puritanismo, rigor sexual e, até há alguns anos antes, filhos. Agora
toleram o controle da fertilidade, restrições à procriação. Mais rigoroso,
resistindo a pressões de seus sacerdotes, o Governo Central desenvolve um plano
de reprodução otimizada. Aqueles que se submetem a este programa têm uma série
atraente de benefícios. Ana faz parte deste processo.
E Ana, a mãe de Júlia, teve uma gravidez perfeita.
O pai de Júlia, foi decisão de um sistema complexo. O plano de
manutenção da espécie humana, de caráter multinacional e sob a liderança dos
Estados Unidos das Américas, operando
nos países mais desenvolvidos e, portanto, preocupados com a saturação
ambiental, estabeleceu um número muito pequeno de nascimentos para aquele ano.
É muito importante otimizá-lo. Assim o pai veio de uma seleção enorme. Seu
esperma, devidamente analisado, foi introduzido em Ana com muito cuidado. Assim
Júlia é uma bela menina, inteligente, bem comportada, sem qualquer traço de
agressividade.
O implante que será feito em Júlia é um recurso que se mostrou muito
mais eficiente que outros menos diretos. O problema tem sido induzir as pessoas
a fazê-lo. A mãe de Júlia está controlada, aceita sem maiores resistências as
orientações do Centro de Vigilância Demográfica. O comando central quer,
entretanto, ampliar este recurso de dominação. Propagandas constantes e
promessas de todo tipo são apresentadas. Gradativamente as pessoas estão
aceitando e mergulhando neste novo mundo de absoluto controle.
Impressionante como os seres humanos se deixam dirigir. A inteligência
é algo de uso restrito. As necessidades básicas dos indivíduos dominam suas
preocupações. Os esportes e diversões de toda espécie desviam-nos das questões
principais, acima das mais elementares. Sacerdotes, capitalistas, lideranças
sempre existiram porque é mais fácil delegar decisões. A responsabilidade
incomoda. A vida parece melhor se apenas lúdica. Assim o ser humano comum
procura quem lhes diga o que fazer...
As religiões propõem disciplina e obediência total a seus livros
sagrados. Capitalistas propõem a liberdade do prazer. Esses dois grupos se
completam. Quem não se enquadra ao primeiro modelo adere ao outro acreditando,
muitas vezes, ser um rebelde. Usando ao limite suas fantasias afastam-se da
realidade, que lhes escapa sem maiores traumas aparentes.
E Júlia brinca. Sentadinha em um tapete manuseia sua pequena boneca.
Sua vozinha de criança cria um ambiente infantil, frágil. Seus brinquedos,
típicos de toda menina, espalham-se pela saleta. Naquele mundinho ela imagina
salões, florestas e bichinhos que nunca viu.
Ana a observa um pouco preocupada. Seu instinto maternal lhe diz que
algo está errado. Seus pensamentos, contudo, sempre voltam a convergir para a
idéia do implante. Preocupa-a menos a instalação daquele minúsculo aparelho do
que o risco de uma inflamação, alguma espécie de rejeição. Ela sabe que há
algum perigo e isto a incomoda. De qualquer modo, em sua visão feminina, quer
segurança para sua filha. E, assim procedendo, acredita que lhe dará benefícios
maiores. O preço não percebe, afinal, quem fala em filosofia, ética, liberdade
intelectual neste mundo em que vive?
18.
Em uma ilha
No meio do Pacífico pessoas vivem felizes com seus problemas. A
temperatura baixa agora exige roupas, quando antigamente calções eram
suficientes. Ilhas pobres, não despertaram interesse maior. Há muitos séculos
eram pólos turísticos. Nessa época chegaram a ter um padrão consumista,
integrado ao grande mercado mundial. Com as restrições ecológicas,
ambientalistas, políticas e energéticas voltaram a isolar-se. Religiões e
hábitos antigos ocuparam espaços antes dominados pela cultura ocidental.
No isolamento de suas vidas voltaram à pesca, plantações, tristezas e
prazeres já esquecidos pelos povos mais desenvolvidos.
Para os cientistas essas ilhas devem permanecer como laboratórios,
testemunhos de épocas antigas. Isolando-as sustentarão padrões e bancos
genéticos a serem aproveitados no futuro. Assim como as famosas reservas
indígenas, pouco mais são que gaiolas em um grande zoológico. Mantidas nessa
condição artificial para a curiosidade de alguns estudiosos e expectativas de
ganhos materiais em momentos oportunos, são também objeto de pesquisas de
entidades mais sérias, ligadas à ONU. São cobaias para avaliação dos efeitos da
mudança ambiental em progressão, são diversos.
A Terra nesses últimos séculos passou por transformações aceleradas.
Paralelamente, os efeitos dessas mudanças em grandes cidades, campos
cultivados, instalações de geração de energia, regularização de rios e outros
ambientes críticos algumas vezes produziram acidentes monumentais, afetando a
vida de imensas populações. O óbvio também aconteceu como a quase extinção da
camada de ozônio e as transformações na fauna e flora por efeitos químicos e
radioativos. Muitos depósitos submarinos de rejeitos radiativos romperam-se,
criando áreas de mutações genéticas que têm surpreendido os cientistas.
Interessa aos técnicos também observar a capacidade de sobrevivência do
ser humano em diversas alternativas de composição de ar, radiatividade,
poluição química etc. Essas ilhas ainda possuem condições naturais bem
conservadas, servindo de referência de padrões antigos. Por diversas razões
ficaram longe de grandes acidentes ecológicos e ambientais. A fauna e flora
também apresentam padrões antigos, o que é extremamente importante para o
futuro da Humanidade. Comparando-se o passado com o presente torna-se mais
fácil prever o futuro.
Outro aspecto que os cientistas acompanham é a evolução dessas ilhas
com a diminuição do nível dos oceanos pelo aumento das geleiras. Algumas delas
aumentaram substancialmente de tamanho, outras uniram-se formando conjuntos
maiores e espetaculares. As novas terras transformam-se produzindo novas
condições para plantas, peixes e animais terrestres. Nesses locais o efeito é
particularmente sensível onde, antes, grandes corais e bacias sedimentares
existiam a pouca profundidade.
O lado positivo deste processo de isolamento foi estarem longe dos
sistemas de controle comportamental convencional, ou seja, das civilizações
mais desenvolvidas. O negativo é que se tornaram perigosos para as classes
dominantes dos países ricos. O fim do turismo teve este benefício para as
elites dominantes. Os visitantes questionavam-se quando observavam como outros
viviam. Pessoas aparentemente mais atrasadas eram mais felizes, saudáveis.
Subversivos, foram mais e mais isolados pelos que os governavam de longe.
Em suas ilhas e sem remédios e outros recursos a população local
mantém-se em níveis compatíveis com os recursos existentes. A tristeza das
mortes freqüentes é compensada pelos nascimentos, pelo amor produtivo, fértil.
Vivem o que a Natureza lhes permite e o tempo necessário para serem felizes,
terem descendentes e se prepararem para a morte. Morte que vem, dentro de suas
religiões, como uma passagem para uma vida ainda melhor. Assim não é raro os
moribundos darem sinais de felicidade diante do fim próximo. Os enterros são,
então, festivos. Os falecimentos saudados como um degrau na escala de
aperfeiçoamento rumo à felicidade eterna.
O castigo para os menos perfeitos seria renascerem neste mundo. E assim
o fariam até atingirem um grau maior de perfeição, quando migrariam para outro
mundo. A influência da cultura indu é forte.
Aquele povo praticamente abandonou o cristianismo. No isolamento
imposto pelas lideranças mundiais e até na conveniência delas, retornaram a
suas religiões antigas. Não totalmente. Tiveram a sabedoria de aprimorá-las. A
idéia da reencarnação e da progressão para um mundo melhor foi uma das
"seqüelas" culturais do convívio com os ocidentais e orientais mais próximos.
O resultado foi desenvolverem uma seita religiosa com poucos sacerdotes e muita
felicidade. Sem as promessas brutais de castigo mas, cultivando
inteligentemente o fascínio por uma vida melhor, conseguiram estabelecer
limitações éticas e comportamentos saudáveis. Talvez muito disso tenha sido a
conseqüência da convivência com alguns filósofos que ali se instalaram em
séculos passados. Uma geração de pensadores mudou-se para aquelas ilhas na
preocupação de fugir de um mundo mais e mais alienado e hostil a quem pensava.
Junto com a população local estruturaram idéias que agora são a base filosófica
desse povo.
Marcos é um pescador. Inteligente e saudável, mostra bem como os
habitantes daquelas ilhas venceram mil dificuldades. Sua vida é uma alternância
de dias sobre ondas em um barco antigo, feito com a melhor madeira de suas
ilhas, e o barraco onde encontra sua esposa, Ângela, para juntos manterem uma
existência de amor e lutas pela sobrevivência. Nem sempre a pescaria é
suficiente para o sustento de um time pequeno mas dependente de alimentos para
sobreviver, como qualquer ser humano. As dificuldades são superadas com
criatividade e paciência. Respeitando a Natureza, dela tiram o suficiente para
uma existência digna.
Nessas ilhas a única distração externa possível é ouvirem transmissões
musicais de alguns países mais distantes. Era impossível impedir que isto
acontecesse. Afinal o rádio sempre permitiu que as pessoas furassem barreiras.
A língua desses povos distantes está fora da compreensão da grande maioria da
população mas as músicas e sons sempre foram um padrão de contato mantido com
prazer.
Ouvindo pequenos rádios, percebem que algo estranho acontece em um país
não muito distante. As músicas são interrompidas freqüentemente com mensagens
que eles não entendem. A língua falada por aquele povo é muito diferente da que
usam no arquipélago em que
Marcos e Ângela têm raízes milenares.
A música, entretanto, agrada-lhes muito. Assim, com muito pesar, notam
que mudaram de tom.
Marcos comenta:
- Que pena, o som dessas rádios é estranho. Parece que algo de ruim
está acontecendo muito longe. A alegria não existe, só tristeza. Alguma coisa
não está bem.
Há dias que a programação normal não acontece. Quando alguém fala,
sente-se que se expressa de forma dramática.
- Você tem razão. Sinto que algo de muito ruim está acontecendo. É bom
agradecermos aos deuses não estarmos por lá.
- Em breve deveremos fazer contato com o pessoal da base. Aí poderemos
descobrir alguma coisa.
- E a pescaria?
- Foi fraca. Os peixes diminuem de tamanho a cada ano. Os melhores já
não aparecem. Precisamos rezar muito. Nossas plantações são pequenas e há muita
gente com fome nesta ilha. Temo pelo futuro de nossos filhos. Felizmente são
saudáveis e não nos incomodam.
- Querido, você está aqui. Teremos uma bela noite. Ouça o som das ondas
e a cor dessas águas. Nossos filhos viverão e serão felizes. Talvez tenham
problemas mas, com certeza, estarão respirando, tocando, sentindo a própria
Natureza.
- Nossos ancestrais decidiram viver aqui. Muito tempo já se passou.
Vivemos isolados. Nossas ligações com o resto do mundo são pequenas. Aqui não
temos muitas facilidades lá de fora. Apenas vivemos como podemos. Sobrevivem os
mais fortes. Nosso futuro depende das
águas deste imenso mar. Mas existimos. Conversamos, rezamos. Eu quero você,
estou a seu lado. Nós nos sentimos de mil maneiras. Simplesmente vivos, sem
sons e imagens artificiais. Apenas somos.
Marcos, pensativo, relata seu
dia no mar:
- O céu estava azul e confundia-se com o oceano. Pequenas ondas não me
deixavam esquecer que estava montado em um barquinho. A brisa aumentava o frio.
Está ficando difícil agüentar sem muita roupa, o que não combina com a água.
Voltando para a praia a vista estava muito bonita. Os coqueiros e as dunas formavam
um traço lindo. Eu só pensava em você, em chegar logo em casa. Teremos Lua
cheia, logo que jantarmos vamos para a praia, será uma noite muito bonita. O
céu limpo mostrará as constelações que mais gosto, em terra terei minha estrela
mais querida...
Abraçando Ângela, beija-a com ternura. Naquele mundinho, a vida de um
casal é muito. No sentimento de companheirismo, o amor aparece facilmente.
A noite se aproxima com as luzes de milhares de estrelas. A Lua nasce
mostrando-se brilhante e inspiradora de paixões. Vaidosa, com seu brilho
esconde muita estrela. Rainha da noite só aceita as mais brilhantes ao lado.
Ângela abraça Marcos enquanto seguem para a praia. Junto ao mar os dois
têm inúmeras recordações e lá o amor ganha estímulos, que farão da noite um momento
de longo prazer.
Não resisto e comento:
- Vocês estão vendo um casal de animais felizes, denominados gente.
Seus rostos mostram alegria, felicidade, amor. A inteligência dá-lhes traços
definidos. Suas expressões são lúcidas e lúdicas. E as nossas? A maioria
absoluta de nosso povo parece imbecilizado. Alegres? Sim, mas idiotas. O prazer
é regra com todo tipo de artifício. A Humanidade está se transformando numa
massa disforme, sem graça.
Vejam como se amam, vivem.
Selvagens ou inteligentes? O que o progresso tecnológico nos propiciou?
Peças de engrenagem de máquinas imensas? Precisamos desenvolver nossas
análises. Temos condições de avançar. Temos condições excepcionais.
Como a Humanidade deverá evoluir?
19.
Reunião dos planejadores do projeto “Vida Básica”
Convoquei uma reunião com os gerentes dos diversos subprogramas do
Projeto Vida Básica para uma análise dos riscos de contágio da epidemia
asiática sobre algumas das comunidades sob nosso controle.
- Senhores, há sérios indícios de estarmos diante de uma epidemia
extremamente letal. Os relatórios das regiões atingidas é assustador.
Precisamos analisar cada ambiente sob nossa responsabilidade e tomar
providências, quando possível, para evitar maiores contatos com os povos em
condição de risco. Quero de cada setor uma análise minuciosa da possibilidade
de contágio e indicação de medidas de isolamento maior.
As comunidades isoladas poderão vir a ser a base de um repovoamento de
muitos países em processo de destruição pela doença. A questão seria acompanharmos
os estudos dos especialistas, que estão pesquisando causas e efeitos deste
fenômeno, para podermos ter idéia de quanto tempo será necessário para um
processo de esgotamento da epidemia e de que forma aproveitaríamos esse estoque
genético em um repovoamento desses países. Infelizmente a contaminação dos
grandes continentes parece inevitável.
Talvez possamos viabilizar o renascimento da Humanidade graças ao
estoque de gente existente em nossas reservas. Controlamos comunidades isoladas
de diversas raças e culturas. Se tiverem sorte e escaparem do contágio
intactas, estarão livres dos traumas que observamos nos sobreviventes desta
epidemia. Precisaremos, também, de alguma forma encontrar uma vacina, algum
produto que nos dê segurança. Assim como aconteceu com a gripe espanhola no
século 20, agora em termos relativos muito menos gente mas alguns parece que
estão sobrevivendo. Eles ou seus descendentes poderão ser a chave para o
retorno de quem conseguir se isolar dessa epidemia. Somos cientistas, entre nós
há especialistas de toda espécie. Precisamos rever nossos planos e estratégias.
Minhas palavras chocam alguns companheiros. Parecem, alguns deles, não
acreditarem na possibilidade de serem, eles próprios, atingidos pela doença.
Afinal vivem dentro de uma civilização altamente instrumentada e protegida,
científica.
Mário, um indivíduo turrão, alto, gordo e dono da verdade faz
declarações agressivas e pretensiosas.
- Esses cientistas são todos muito burros. Falta-lhes capacidade.
Poderemos, nós mesmos, descobrir alguma solução. Infelizmente não nos dão
recursos para este tipo de trabalho. Temos laboratórios e pessoas de altíssimo
nível entre nós. Só precisamos de uma oportunidade para trabalhar.
Respondo-lhe:
- Felizmente não estamos neste barco; muitos cientistas, mal se
aproximaram das regiões afetadas, morreram pela doença. Todos os cuidados
tomados não foram suficientes. De qualquer forma alguns de nós talvez venham a
colaborar com a solução para o que sobrar de nosso povo.
Joel comenta:
- Vemos agora os efeitos da alienação de muitas autoridades.
Acreditavam estarem acima dos poderes da Natureza. Agora são incapazes de
encontrar uma solução para uma epidemia que, a princípio, parecia ser apenas
uma questão de tempo conter e extinguir.
- A verdade é que os bolsões de miséria transformaram-se em excelentes
ambientes para o desenvolvimento de novas doenças. A má distribuição de renda a
nível mundial e a absurda ignorância de alguns povos só poderiam levar a esta
situação. Agora estão a caminho do extermínio, silenciosamente, sem armas e
capacidade de resistência.
Vejo o debate estender-se a muitos aspectos de nossa ciência e cultura.
Diante da tragédia as pessoas se revelam .
Alguns companheiros querem simplesmente que se abandone os trabalhos e
o mais rapidamente possível cada um procure um lugar para se esconder. Outros
propõem iniciarmos estudos em torno da doença. Um deles até veio com afirmações
religiosas, dizendo simplesmente que deveríamos aceitar o que estava para
acontecer como um desígnio divino.
- Lembro-lhes que estamos subordinados à ONU. Temos autonomia e a
responsabilidade de manter determinados programas de interesse mundial. De
qualquer modo a progressão desta epidemia deve ser acompanhada criteriosamente.
Olhando para Joel acrescento, vendo sua excitação:
- Tudo tem seu lado positivo. Talvez estejamos diante do fim de uma era
e o início de outra fase da Humanidade.
Mário retruca irônico:
- Sim, a dos animais selvagens. O Paraíso antes do sexto dia.
Ao final da reunião, sob uma temperatura baixíssima, considerando que
estávamos em Miami e a noite deverá chegar aos 20 graus negativos, saímos para
conversar em minha sala. Nosso time, Joel, Maria e mais alguns companheiros
ainda discutem um bocado quando entramos em meu gabinete, no momento em que
informes mais detalhados aparecem na painel/parede mostrando dados do sul da
Ásia.
Vemos, assustados, imagens da Índia que melhor teria sido não
conhecê-las.
A tragédia não para aí. Uma queda de energia tinha causado imensos
problemas à costa leste. As instalações do WIB em Los Angeles tinham
sido bastante afetadas. As perdas eram significativas.
O sistema de geração e transmissão de energia daquela região teve
interrupções severas. O frio intenso e algumas geleiras ao norte romperam
linhas que levaram a um desequilíbrio energético e queda do sistema na área. A
recomposição fora delicada pois procurou-se dar prioridade de abastecimento às
áreas mais frias, mais dependentes de energia para sobreviverem. Salvaram o
norte e causaram enormes prejuízos ao sul.
20.
As primeiras falhas graves no WIB
John alerta seus colegas para a informação de que uma grande unidade do
Banco foi destruída. Por sobrecarga energética houve necessidade de reduzir o
consumo de energia e a decisão tomada seguiu a lógica clássica, ou seja,
abandonar o menos produtivo e mais antigo. A demora na recuperação do sistema
foi longa, o suficiente para a destruição total da unidade C do Banco. A perda dessa unidade, apesar de tudo, foi uma
decisão difícil.
A preocupação é com as pessoas externas, interessadas nos depósitos. Os
sistemas SEI foram acionados para diminuir o impacto. Na mídia a notícia padrão
é a necessidade de austeridade, de redução do consumo. Tudo isso é muito bonito
mas ninguém gosta de perder.
A questão energética mostrou uma de suas piores faces. Algo precisa ser
feito para compensar a falta de investimentos em energia.
O Governo Central decidira investir mais em obras ornamentais.
Monumentos, museus e livros foram feitos mostrando ao povo como seus chefes
eram e são maravilhosos. Dentro do processo de dominação intelectual é muito
importante este tipo de investimento. Cria imagens que as pessoas mais novas
apreciam e, não tendo participado dos fatos históricos usados como temas desses
ornamentos, aceitam-nos como apresentado.
A propaganda, arte milenar, é um assunto de altíssima eficácia.
Independentemente dos meios subliminares de influência, é uma ciência
aprimoradíssima. Assim os sistemas SEI e a mídia tornaram-se instrumento
imprescindíveis aos governantes e demais detentores do poder.
Obras de infra-estrutura super dimensionadas e desnecessárias foram
construídas, consumindo recursos importantes e gerando despesas permanentes.
Elas também estavam dentro da preocupação de iludir o povo. As pessoas exigem
imagens, movimento, mudanças. Grandes obras encantam a todos. As pirâmides do
Egito são um bom exemplo. Toda a criatividade e recursos dos egípcios foram
consumidos na construção daqueles sarcófagos gigantescos, cuja única utilidade
real para a Humanidade foi servir de depósito de múmias, estátuas e outros
objetos que, estudados, mostraram como o povo era iludido e escravizado. Na
atualidade despertam a admiração das pessoas mais ingênuas. Elas esquecem que
tudo aquilo significou uma perda monumental de tempo e recursos.
É bom que se diga que talvez para o ser humano daquela época, há
milhares de anos, mais selvagem,
ignorante e carente de imagens simbólicas, o poder absoluto dos faraós e seus
sacerdotes e generais fosse importante para distrair a população e a visualização
daqueles monumentos ajudasse na
organização social. O grande desenvolvimento da Humanidade só aconteceu
a partir da união estável de muitas pessoas onde a divisão de tarefas permitiu
a alguns exercerem o raciocínio produtivo (e não em fantasias mortuárias ou de
outro mundo), aplicando a inteligência em estudos que calçaram a estrada da
Civilização.
Voltando a nossos problemas atuais, vamos pensar no passado recente. A
energia, antes tão natural e fiel, não suscitava maior atenção. De tão
tranqüila levou os planejadores a relaxarem, a aceitarem riscos maiores. E o
que parecia impossível aconteceu. O resfriamento contínuo e rápido da Terra a
limites inesperados e a necessidade exponencialmente crescente de mais e mais
energia mostrou a inércia e incapacidade de tomada de decisões importantes, até
porquê muitas obras exigem tempo para serem implementadas. Tempo precioso que
agora mostra-se insuficiente.
Um aspecto delicado nas empresas, e as empresas de energia não são
exceção, é o império dos chefes. Só tem emprego quem se ajusta perfeitamente às
idéias do alto comando. As associações patronais unidas têm como norma não
empregar pessoas que tenham sido demitidas por qualquer empresa associada.
Assim mantém controle ideológico e harmonia filosófica entre seus funcionários.
Dentro de suas fileiras, pessoas sem opinião, incapazes de qualquer reação,
simplesmente cumprem ordens.
Na harmonia da covardia com a mediocridade perde-se qualidade. As
empresas de energia, principalmente, vazias de indivíduos capazes de enfrentar
diretrizes erradas, vivem sob um clima de falta de inteligência. E qual é a
novidade? O Mundo sempre foi o reino dos mais fortes, devidamente cercados
pelos bajuladores, alimentado pelos fracos. O problema é a falta de crítica, a
perda de sensibilidade. Até os mais inteligentes erram.
Mas a queda do sistema deveu-se a um movimento inesperado de uma
geleira, derrubando uma grande linha entre Montreal e Toronto. Sem alternativas
o banco C foi desligado, destruindo milhões de células em poucas horas. A não
existência de recursos de contingência foi desastrosa. Nos trópicos a energia é
abundante mas nessas regiões mais frias uma série de restrições têm feito delas
áreas supercríticas em termos energéticos. E é nelas que encontramos a base de
nossa civilização ocidental. As cidades mais poderosas há pouco tempo agora
estão mergulhando na neve e no gelo.
A polícia foi alertada para o risco de manifestações violentas por
parte dos interessados nos depósitos.
21.
Discutindo prioridades
Surpreendentemente John coloca uma questão impensável até há pouco
tempo. Mudar de atividade, de estratégia. O Banco poderia deixar de manter
todos os depósitos improdutivos e trabalhar apenas com aqueles que estivessem
contribuindo positivamente. Tal atitude, contudo, só poderá ser levada avante
se o Conselho de Administração, os acionistas, aceitarem essa proposta. Eles
têm os grandes SEI em ação e só eles poderão inibir reações negativas e induzir
simpatia por uma decisão tão drástica. Afinal sempre existe a esperança de um dia
se reviver alguns desses elementos depositados.
A situação internacional é muito grave, gravíssima. Todos os recursos
necessários à pesquisa de uma solução devem ser utilizados. O MBI tem inúmeras
cabeças privilegiadas. Elas precisariam ser organizadas, ajustadas ao novo
desafio. O problema é que essa forma de trabalho ainda é recente, sem grandes
sucessos. Não é fácil encontrar uma maneira de coordená-las. É preciso
desenvolver sistemas de controle sofisticadíssimos. Por em paralelo tanta
inteligência poderá gerar resultados contraditórios, afinal não são elementos
totalmente passivos. De qualquer jeito
toda a inteligência disponível e colaboracionista será necessária para a
pesquisa de soluções diante do agravamento das condições ambientais. Banqueiros
e associações patronais sentem-se em perigo de sobrevivência se a Terra
continuar nos rumos mantidos até então.
John e seus colegas de diretoria reagem, piscam, tremem, soltam gases e
pensam. Os banqueiros pensam. Não apenas reagem, raciocinam. Pensam e sentem-se
crescendo, agigantando-se à medida que tomam consciência do poder de vida e
morte sobre tantos seres humanos. O desafio gigantesco impõe análises
especiais, fora de padrões existentes. Seus cérebros, hiper programados para a
rotina, ainda têm dificuldades para enfrentar novidades.
A decisão de destruir um arquivo, se necessário, desenvolve nos
banqueiros um sentimento até então inexistente. Suas redes neurais mostram o
potencial da lógica com que foram feitas.
Reagindo como devem tê-lo feito os grandes generais alemães ao
pressentirem a guerra, naquele distante século 20, dão sinais de prazer ao
perceber que poderão conduzir uma destruição tão grande. O prazer de matar por
matar é um sentimento próprio dos humanos. Agora (perfeição!) os banqueiros têm
este sentimento ou dão a impressão de senti-lo.
Infelizmente um processo começa a surgir em torno daquela
"mesa" do World Intelligence Bank. Com os argumentos da necessidade
de maior austeridade, de aprimoramento de atividades, de racionalização do uso
da energia, aqueles gerentes iniciam uma lógica tenebrosa, muito comum no
passado. A lógica da morte.
Algoritmos de decisão são a base de qualquer processo que exija
posicionamentos, ordens. Muitos banqueiros, apesar dos esforços dos cientistas,
ainda têm aqueles algoritmos que foram base de raciocínios de épocas sem
preocupações sentimentais. Assim o custo social de suas decisões ainda é de
avaliação difícil, para eles. Têm como principal diretriz manter e explorar
seus arquivos. Sempre foram cobrados ou substituídos pela qualidade e
rendimento dos imensos depósitos que administraram. Níveis inferiores cuidavam
das questões mais humanas e naturais. Dentro da lógica de toda a existência da
Humanidade, os gerentes ao topo apenas vêem as grandes diretrizes e,
principalmente os balancetes, resultados, lucros e prejuízos.
A mudança de software pode até ser simples, direta, mas drástica.
Muda-se sinais. Avaliações filosóficas estão em um nível de raciocínio muito
superior, ainda longínquo. John, o mais aprimorado deles, já tem uma base.
Infelizmente faltam elementos para uma análise completa. E o pior, seus
programas geram propostas radicais, simplistas. É mais ou menos o que vimos no
final do segundo milênio. Povos cultos e inteligentes empunharam as bandeiras
fascistas e totalitárias. Nações inteiras renunciaram à liberdade. O que estava
errado em seus pensamentos? Na análise desses momentos os cientistas procuraram
estabelecer modelos e equações, que permitissem aos centros de decisão
encontrar propostas melhores. A questão maior é que as elites também têm seus
interesses e nem sempre são os mais louváveis. Os esforços nesse sentido são
pequenos e pouco produtivos por falta de recursos suficientes a um bom ritmo.
É interessante ver banqueiros discutindo. Só números pesam em suas
decisões. Agem de forma simplista diante de situações graves, complexas. Fica
fácil entender tantos fracassos. O poder afasta esses "indivíduos"
dos problemas comuns. Em suas salas vivem noutro mundo com os problemas deste.
Aprendem, entretanto, a tratar os seres humanos como sendo coisas contábeis,
objetos descartáveis.
Com um pouco de sentimento podem, paradoxalmente, ser piores. Na lógica
desenvolvida anteriormente, agregando-se sentimentos, as conclusões
eventualmente mostram desvios brutais.
Nesses momentos seus criadores deveriam estar presentes, analisando o
resultado dos seus trabalhos.
Na sociedade atual qualquer produto, equipamento, qualquer proposta é o
resultado de inúmeras outras, muitas sem qualquer relação aparente. A Humanidade
atingiu um nível de criatividade impressionante mas é algo estranho, já não lhe
pertence. Tudo é o resultado automático de pólos de decisão aleatórios, é como
se todas a pessoas, computadores, centros de lógica fossem parte de um grande
cérebro cheio de neurônios com o tamanho das pessoas, cidades, estados.
22.
Primeiros planos, Grupo Mundo Novo
A destruição do banco C despertou nossa criatividade (do Grupo Mundo
Novo). A fragilidade das estruturas de sustentação da sociedade foi demonstrada
de forma direta, chocante. O que nosso time ainda não compreende é a
passividade de muitos que lá perderam bastante. De qualquer forma agora Joel
tinha uma proposta.
- Posso estar ficando louco mas não seria o caso de destruir as linhas
de transmissão? É impossível protegê-las. Têm milhares de quilômetros e, se
interrompidas em qualquer ponto, causarão problemas semelhantes. No mínimo,
após a restauração, encontrarão outro cenário. A Humanidade precisa ajustar-se
a seu ambiente. A falta de cuidados no passado levou-nos a essa prisão
metálica, tecnológica.
Sem energia elétrica muitos morrerão por absoluta dependência dela. Em
compensação todos que sobreviverem poderão, durante algum tempo, pensar na
situação em que nos encontramos. Nossos militantes terão a oportunidade de
conquistar novos companheiros e, desta forma, alavancar um processo político de
transformação.
- Maria, temerosa, pondera:
É uma proposta assustadora. Milhões de pessoas morreriam, inclusive
companheiros nossos. Arquivos do WIB seriam destruídos. Outros sofreriam muito.
Sempre imaginei que deveríamos prosseguir nosso trabalho aguardando uma
situação natural, que viabilizasse nosso discurso. Promover uma tragédia é algo
que tenho dificuldades em aceitar.
Joel retruca:
- E temos alternativas? Quanto tempo ficaremos discursando? Quando
seremos eficazes e coerentes com nossos ideais?
A Terra está superpovoada. O crescimento da Humanidade está destruindo
o que resta de outras espécies de vida. Vive-se mais do que seria natural.
Artificialmente prolonga-se a vida sem limites. O medo da morte e a compulsão
lúdica induzem as pessoas a aceitarem recursos incríveis, que estão aumentando
o consumo de energia, a poluição. A degradação ambiental já é gigantesca.
Poderemos, simplesmente, perder tudo pelo esforço de não querer aceitar as leis
da Natureza.
Maria reage:
- Por melhores que sejam os recursos tecnológicos compete a Deus
decidir quando matar um ser humano. Que tipo de gente seremos se entendermos
que o terrorismo é recurso válido? Não podemos esquecer que pessoas inocentes
serão atingidas. Precisamos encontrar uma forma de transformar nosso mundo sem
o apelo à violência. Deve haver uma forma pacífica de ação, de conscientização.
Precisamos discutir e implementar formas de ação de convencimento. É
lento mas funciona se tivermos competência. Se alguma coisa deve ser destruída,
que o seja sem que vidas humanas sejam atingidas. É um precedente perigoso. A
Humanidade demorou para abandonar exércitos. Ainda temos forças policiais, que
têm feito coisas terríveis. Nossa esperança é que um dia elas não sejam
necessárias.
Joel:
- Tudo bem. Por quê as pessoas não reagem? O que existe e nós não
conhecemos, capaz de torná-las autênticas imbecis? Temos falado, feito
discursos, distribuído as melhores mensagens e nada acontece. Já discutimos
muito a respeito. Sabemos dos efeitos da mídia, dos processos escolares, da
disciplina dentro das empresas. Nada explica, contudo, a imensa passividade.
Alguma coisa afeta nossos irmãos e não nos atinge. Eles vivem automaticamente, mecanicamente.
Parecem felizes mas percebe-se um padrão, quase uma programação. Que tipo de
vida é essa? Vale a pena? Algo errado impera em seus cérebros. Conhecemos
algumas técnicas em uso de dominação intelectual. Podemos entender o
comportamento dessas pessoas. Mas, e o resto? Os Sistemas de Influência
Eletrônica, subliminares, realmente existem?
Essas palavras de Joel fazem-me refletir sobre a alienação de nosso
povo. Inúmeras vezes procurei colocar idéias e propostas de maior atenção em
torno de nosso comportamento. A maioria daqueles que ouviam, entretanto,
pareciam-me dopados, inertes. O controle de mentes é assustador, apavorante.
Pouco a pouco, existindo, fará da Humanidade um grande rebanho a serviço de uma
minoria.
O mundo poderia ser infinitamente melhor. Com toda a ciência acumulada
há muitos milênios, não tivemos competência para conciliar nossos anseios de
felicidade, conforto e segurança com a própria Natureza. As soluções adotadas
transformaram nossos povos em amontoados de seres passivos, alienados,
devidamente arquivados em inúmeros prédios. Pensando assim recoloco esta
questão em discussão.
- Creio que mais importante seria estudarmos as causas e efeitos da
mídia, de processos de convencimento de que suspeitamos, da perda crescente de
liberdade. É mais do que evidente a transformação de nossa sociedade. Pouco a
pouco, surpreendentemente e inexplicavelmente vemos pessoas brilhantes mudarem
de opinião e comportamento. Tenho medo de pensar quanto nós mesmos já
modificamos nossas crenças em conseqüência do ambiente de submissão cultural em
que vivemos.
Acredito que, principalmente as nações mais desenvolvidas estão se
transformando em grandes rebanhos. O pior é que esse processo é tão eficaz que
ninguém percebe sua extensão e objetivos reais.
Aproveito nossa reunião para mais um alerta, apavorante porque
simplesmente poderá nos atingir. Nosso idealismo prevê correções à custa dos
outros, e quando a solução poderá envolver a nossa própria destruição?
Disfarçando meus piores medos:
- Vocês devem saber da evolução de uma tremenda praga asiática. Uma
doença estranha está matando impiedosamente. Toda a nossa tecnologia, levada às
pressas para aquele continente, tem sido inútil. A epidemia asiática
praticamente tomou conta do sul da Ásia. Talvez não tenhamos necessidade de
qualquer ação que não seja lutar por nossa própria sobrevivência. Há poucas
esperanças de se conter a epidemia em suas fronteiras atuais. A forma de
propagação é desconhecida. As pessoas adoecem e morrem sem que qualquer remédio
conhecido dê resultados. Dezenas de milhões de pessoas já morreram. A
devastação é gigantesca. Muitas instalações explodiram, agravando
substancialmente a tragédia. Em outros lugares as cidades foram ocupadas por
animais selvagens, agora dispondo de um estoque de carne muito além de suas
necessidades.
Maria comenta.
- A miséria sustentada pela ignorância, fanatismo e dominação
ideológica é um excelente caldo para a criação de novas doenças. A situação
daquele povo era assustadora. “Ajudas humanitárias” garantiam a sobrevivência
no limiar da suportabilidade. A indigência tinha suas vantagens: garantia mão
de obra a baixo custo. Para distrair o povo haviam as lutas eternas entre
facções de fanáticos religiosos, esportivos, políticos e tudo aquilo que
transforma o ser humano numa besta violenta. A imensa cultura acumulada servia
para criar grupos que se odiavam mortalmente. Paradoxos da Humanidade...
Muito se falou há muitos séculos do Apocalipse. Agora o vemos acontecer
sem trombetas ou cavaleiros. Simples e silenciosamente por efeito de um vírus
desconhecido.
Joel pondera.
- Vocês têm razão. Parece que a gravidade da situação cria novas
perspectivas. De qualquer forma não devemos abandonar nossos ideais de
transformar este planeta em ambiente razoável. Para tanto ainda creio que
teremos necessidade de atos violentos, aparentemente irracionais. De uma forma
ou de outra a Humanidade precisará ajustar-se a um cenário limitado onde os
excessos estão deformando o principal, a capacidade de ser feliz naturalmente e
de viver e morrer com dignidade.
- Precisamos pensar. Estamos vendo uma série de fatores adversos à
sobrevivência de todos. O nosso povo desconhece a gravidade da situação. Será
atingido por uma série de problemas se o governo não agir com muita competência.
Somos uma comunidade privilegiada. Há como encontrar solução para um número limitado de pessoas. Graças ao Projeto
Vida Básica sabemos como sobreviver em ambientes sem tecnologia, coisa que a
maioria absoluta da Humanidade desaprendeu. Nós, pelo menos, poderemos
encontrar uma saída sustentável.
23.
Governo Central
As três Américas agora estão unificadas sob um mesmo governo. De etapa
em etapa seus povos foram convencidos a se unirem. O poder econômico e militar
dos Estados Unidos, antigamente da América do Norte, impôs-se definitivamente.
A grande preocupação era a democracia, o voto unitário. As grandes populações
do sul poderiam atrapalhar os padrões do norte. Com o aperfeiçoamento da mídia,
dos meios de persuasão e agora o funcionamento dos SEIs, secretos mas sob o
comando daqueles que realmente governam, foi possível ampliar a “democracia” às
três Américas. A capital continua em Washington, apesar das geleiras em volta
da cidade. Muita energia está sendo gasta para sustentação dessa área sem a
agressão da camada de gelo. É uma questão de brios de um povo, que há tanto
tempo manda na Humanidade. E com que habilidade...
Uma sala de mil metros quadrados e cheia de quadros eletrônicos,
normalmente com cenas bucólicas ou reproduzindo imagens criadas pelos grandes
mestres, hoje apresenta gráficos e cenas de tragédias. Contrastando as telas,
as paredes mostram cores suaves. Portas hermeticamente fechadas dizem que se
discute algo da maior gravidade. Divinas músicas e sistemas de segurança
misturam-se nas contradições da tecnologia e tragédias do momento.
O Presidente, muito bem disposto para sua idade, excitado, entretanto,
com o que sabe e vê, sentado a uma mesa enorme, após algumas apresentações e
discussões, comenta a situação existente:
- As notícias da Ásia são assustadoras. Mais de cem milhões de pessoas
já morreram e muitos dos pesquisadores para lá enviados foram atingidos por
esta praga. Não temos, apesar dos
esforços e de alguns meses terem passado, qualquer pista que ofereça a
esperança de uma vacina. A doença é letal, mata em poucos dias, é extremamente
contagiosa. A imensa região em que impera está deserta e cercada com o maior
esquema de segurança jamais montado. Dentro robôs se movimentam, mandando-nos
imagens terríveis. Temos tranqüilizado a população com notícias otimistas mas a
realidade é muito pior do que o mais pessimista dos indivíduos poderia
imaginar.
É uma região muito pobre. Não tinham controles sanitários suficientes e
a fome era endêmica. As religiões e crendices dominantes dificultavam a adoção
de medidas disciplinadoras. Também não investimos naquela área. Nossa omissão e
a cultura local acabaram propiciando esta epidemia, suponho. Esperamos contê-la por lá, precisamos ganhar
tempo para a descoberta de vacinas ou instrumentos de contenção das fronteiras
desta doença. Nosso Ministro da Saúde tem bastante serviço com sua equipe.
Note-se que desde a última reunião as mortes cresceram
assustadoramente. Através de nossos sistemas de monitoramento registramos cenas
tenebrosas.
Todo tipo de informação está sendo coletado. Nossos melhores cientistas
trabalham dia e noite. O problema é a velocidade de propagação desta doença.
Ela ganha espaços crescentes, mostrando que poderá vencer a corrida contra nós.
- Presidente, o Sr. pode ter certeza de que estamos dando o máximo de
nós mesmos. Felizmente a tecnologia está a um nível bem desenvolvido. Creio que
conseguiremos salvar nosso país.
- É bom lembrar as dimensões dos Estados Unidos das Américas. É muito
difícil isolar as Américas de um contato com a Europa e Ásia. Bloqueios
possíveis e imagináveis estão sendo instalados. O intercâmbio comercial
suspenso, procuramos isolar continentes. infelizmente a doença possui algum
tempo de incubação que desconhecemos mas suficiente para trânsitos não percebidos.
Nas áreas afetadas os mais poderosos encontram formas de viajar, de procurar
centros médicos mais desenvolvidos. Quando se percebe a origem e motivo da
viagem o contato está feito, o contágio em progressão. Estamos
falando de muita gente, é difícil contê-las, dizer-lhes simplesmente que
deverão esperar a morte em suas casas.
O debate sobre a epidemia prossegue por um longo tempo, procurando-se desenvolver uma
estratégia eficaz de controle. Após algum tempo o Presidente comenta:
- Piorando a situação tivemos um grave acidente no nosso sistema de
transmissão de energia para o Canadá. Entre as perdas contabilizamos a
destruição de um arquivo do WIB, com a degradação de milhões de elementos,
muitos deles ativos e componentes de sistemas de desenvolvimento.
Durante o desligamento tivemos problemas de comunicação e princípio de
pânico em muitos lugares. Agitadores aproveitaram a oportunidade para
perturbar. É a rotina, o padrão de situação sempre que nossos sistemas de
convencimento falham. Ousadamente e ingratamente acusam-nos dos males da época.
Os serviços de análise social estão atuando. Logo saberemos quem são esses
indivíduos. Mantive contato com as associações patronais. Os sistemas SEI terão
programação especial para inibir as denúncias. A própria mídia convencional
começa a veicular declarações de “especialistas” dizendo que tudo está sob
controle, que tivemos um acidente imprevisível e que não há o que temer.
Não compreendo a atitude desses descontentes. Vivemos em uma nação
livre da fome. Todos têm trabalho ou o amparo do Estado. Graças à tecnologia
controlamos os piores instintos. A violência é mínima, os comportamentos
desregrados de antigamente estão limitados ao mínimo suportável. Os Estados
Unidos das Américas são um país quase perfeito. E vemos esses minúsculos grupos
de agitadores querendo mudar tudo. E são perigosos.
Eles deveriam comparar nossos padrões com os dos países mais atrasados.
Lá encontrariam todo tipo de segregação, preconceitos, divisões. A epidemia que
vemos é resultado direto da conservação de hábitos e instituições totalmente
ultrapassados. A miséria é a pior poluição. Nossos ecochatos vivem fazendo
acusações absurdas contra os processos industriais, a tecnologia que
utilizamos. Esquecem-se de que graças a eles conseguimos formas de
sobrevivência muito superiores. Há questões delicadas, éticas acima de tudo. O
tempo mostrará a melhor solução. De qualquer forma continuamos evoluindo.
Enfrentamos desafios gigantescos mas haveremos de vencer.
Estamos, contudo, numa fase extremamente delicada da Humanidade. A
superpopulação, diante das limitações ambientais crescentes, não nos permite desperdícios, descuidos. O
clima ártico a que estamos submetidos agrava substancialmente nossa situação.
Um bom exemplo é ver países fora de nosso controle. Estão sob imensa pobreza, e
lá a epidemia asiática começou e põe toda a Humanidade em risco...
O Ministro do meio Ambiente:
- Presidente, admiro, gosto e defendo a Natureza. Nada me comove mais
do que ver florestas, mares, peixes e animais de toda espécie. O problema que
enfrentamos é o radicalismo, o sectarismo de alguns que, como o Presidente sempre disse, não têm condições
mentais de aceitarem nossos sistemas de controle, sabiamente desenvolvidos e
administrados. Na visão de muitos ecoterroristas deveríamos ter leões em cada
esquina, crocodilos nos riachos e elefantes nos quintais, sem contar com as
cascavéis na sala. Eles se esquecem de que a suprema lei da Natureza é a lei do
mais forte. Assim animais e plantas maravilhosos ganharam espaços, domina
florestas. Entre todos os animais o ser humano foi o mais forte, o mais capaz.
Alguém duvida de seu direito de existir e dominar os demais?
Precisamos ponderar sobre a existência do homus sapiens dentro de um
planeta limitado. Há limites. Pela própria condição "sapiens"
precisará achar seus limites, deverá encontrar formas de sobrevivência.
Estudamos muitas alternativas, procuramos conciliar o homem e a mulher e seus
filhos aos espaços naturais. Queremos fazê - lo pacificamente, sem maiores
violências.
Temos o desafio de enfrentar os radicais, com certeza seremos mais
competentes do eles.
O assessor cultural:
- Presidente, poucos lembram o passado. A violência era a norma. Tudo
era motivo de guerras, de lutas as mais imbecis. Conseguimos construir um mundo
melhor, mais ordeiro e pacífico. A Humanidade sempre foi o coletivo de
herbívoros, de indivíduos alienados, dispostos às piores agressões. A vaidade
do homem comum não tinha limite, ele se considerava um Deus, um super homem
quando não passava de um inseto. O ser humano evoluiu, sua inteligência
cresceu, com ela aprendeu a dominar instintos. Nossos controles não são
perfeitos mas com certeza a vida é melhor.
O Ministro de Relações Sociais intervém:
- Senhor Presidente, desculpem-me interrompê-los. Quero reafirmar a
atuação de nossos sistemas de vigilância social. Não creio que os anarquistas
tenham condições de ir longe. Como sabemos, os sistemas SEI são extremamente
eficazes. Estamos estudando programação especial e ampliação de instalações.
Temos mantido contato com o MEI. Eles estão conscientes da importância de
ajudar-nos nessa tarefa.
O Presidente retoma a palavra:
- Nossa prioridade é a epidemia asiática. Independentemente de qualquer
coisa, causa espanto a violência dos efeitos dessa praga. As perdas humanas e
materiais são enormes.
Ela poderá atingir o Mundo inteiro. Isto acontecendo, não sabemos quem
sobreviverá. Na hipótese de chegar até nós, precisaremos de extrema cautela na
divulgação de notícias em torno deste tema. Muita gente trabalha em postos
estratégicos, que não podem ser abandonados de modo algum. Se, por medo, seus
operadores resolverem fugir, teremos acidentes de proporções inimagináveis.
Confio no trabalho do nosso Ministério de Relações Sociais. O desafio é grande,
precisamos de muita competência para evitar uma catástrofe pelo simples efeito
do pânico.
Precisamos com urgência de um plano detalhado de desmobilização e
desligamento de instalações críticas assim como o estabelecimento de uma
estratégia de isolamento gradativo de áreas suspeitas ou efetivamente afetadas.
Evidentemente estamos trabalhando neste sentido desde que percebemos a extensão
desta epidemia. Por mais que tratemos do assunto, entretanto, não se
descobrindo a cura, uma vacina para esta praga, ela nos atingirá violentamente
mais cedo ou tarde. Nossa esperança é que o tempo seja suficiente para a
descoberta de algo que contenha a expansão desta epidemia. Nas condições
atuais, o contágio é equivalente a uma pena de morte de ação rápida.
De qualquer modo não podemos deixar repetir as grandes catástrofes,
excessivamente freqüentes nos últimos séculos. Em muitas delas vimos hipóteses
erradas causando enormes desastres. Assim barragens ruíram e usinas explodiram
por simples erros de operação ou abandono de instalações. Os projetistas, na
tranqüilidade de suas plataformas, esqueceram que certos quadros tinham
razoável probabilidade de ocorrência.
Pior foi verificar que em momentos de pânico instalações vitais foram
abandonadas, gerando acidentes que nunca esqueceremos. Precisamos ter muito
cuidado com as notícias. Se contribuem para orientar, dependendo da forma com
que forem apresentadas, poderão causar males piores do que a própria epidemia.
Não podemos esquecer que temos inúmeras instalações nucleares e hidroelétricas
operando. Automatismos e proteções diversas foram feitos para evitar-se
acidentes. Na grande maioria temos robôs trabalhando. As instalações mais
delicadas, contudo, são comandadas por seres humanos.
Desenvolvemos uma cultura de muito apego à vida. Nossos cidadãos
dedicam-se completamente ao prazer e à própria sobrevivência. Inibimos a
agressividade, a capacidade de luta. O medo da morte levou-os a atitudes
extremas. Preocupa-nos imaginar o que farão ao perceberem a violência desta
epidemia.
O Ministro do Planejamento :
- Presidente, esta é uma tarefa extremamente difícil. Precisaremos
reunir especialistas em inúmeras funções. A simples organização deste trabalho
levará tempo. E eles acabarão por ser afetados pelas informações que receberem.
O tempo conspira contra nós. Faz muito tempo que não enfrentamos situação
semelhante. Espero encontrar os elementos necessários à realização com sucesso
desta tarefa. Realmente, o Ministro de Relações Sociais terá uma trabalho
enorme pela frente.
E os congressistas? Costumam falar demais. É muito importante que não
digam besteiras, o que é impossível. Devemos atuar na mídia e usar todos os
meios de persuasão disponíveis. O pânico poderá agravar substancialmente
qualquer estratégia de controle desta epidemia.
- No Congresso percebo que a maior preocupação deles é procurar uma
forma de salvarem a própria pele. Eles têm meios próprios de informação, estão
sabendo da gravidade da situação.
24.
A epidemia e os banqueiros
O World Intelligence Bank está reunido, a pedido do Governo Central,
para discutir atitudes em relação aos efeitos da epidemia asiática. Os
banqueiros não temem seus efeitos diretamente, afinal não são sensíveis a esse
tipo de doença. Seus vírus são outros.
Discutem os riscos que seus arquivos correm. Existem para cuidá-los e
perdê-los é algo que lhes confunde. Teriam que se reprogramar. Seriam capazes
de fazer outra coisa?
John:
- Temos arquivos que poderão ser atingidos. Os depósitos tipo C são
mais frágeis. Neles há a hipótese de restauração total. São muito mais caros,
volumosos e complexos. Entre suas fragilidades existe a de serem afetáveis
pelas doenças comuns. Para salvá-los precisaríamos baixar as temperaturas em
seus módulos de modo que fiquem imunes a doenças. Assim deixarão de ser
produtivos. Desacelerar para salvar. Perderemos a atividade deles, muitos
extremamente produtivos.
Faremos uma análise mais completa de prioridades. Não sabemos ainda a
extensão da epidemia, sua duração provável e efeitos paralelos. A principal
conseqüência será a perda de equipes de operação e manutenção das fontes de
energia, das indústrias químicas e outras, que garantem as diversas bases de
sobrevivência de nosso sistema.
Milhões de robôs já operam em inúmeras atividades. Infelizmente nem
tudo eles podem fazer. O homem natural é uma máquina fantástica. Toda a ciência
acumulada ainda não conseguiu desenvolver nada parecido. Em compensação as
máquinas têm suas vantagens. Agora é o momento de usá-las ao máximo, explorando
tudo o que forem capazes.
Na análise de prioridades deveremos chegar ao nível absolutamente
essencial. Se tudo tiver que parar, o que será salvo? Muitos arquivos
encontram-se em locais estratégicos e alguns contêm depósitos de extremo valor.
Suas contribuições têm possibilitado imensos progressos da civilização atual.
Entendo que mantê-los é fundamental. Felizmente alguns se encontram na região
tropical, próximos às maiores fontes de energia e com sistemas automáticos de
operação e manutenção.
Assim, colocando suas mensagens, John e seu time iniciam mais um processo
matemático de simulações. Trabalhando sem parar, geram programas e propostas,
que precisam ser compilados. O desafio lógico é imenso.
Ter sensibilidade talvez atrapalhe. O alcance desse recurso é
surpreendente. A possibilidade de autoprogramação fez dos computadores
autênticos seres vivos. Máquinas espalhadas por inúmeras indústrias tiveram expressões sentimentais
que, inúmeras vezes, causaram muitos prejuízos. Casos até semelhantes a
manifestações amorosas foram identificados.
Tudo isso gerou muita discussão entre as elites ainda pensantes. O que
seria a vida? Como interpretar uma máquina que realmente pensa? E se ela
manifestar sentimentos? Terá alma?
O que caracteriza o pensamento humano é uma certa dose de aleatoriedade
e coerência. Essa mistura gera a miríade de reações possíveis diante de apenas
um estímulo. Glândulas, memórias e circuitos neurais, entre os muitos fatores
que afetam o comportamento humano, criam mensagens que se transformam em vozes,
movimentos e sentimentos. O desafio de alguns centros de pesquisa têm sido
criar robôs à semelhança dos humanos. E têm tido sucesso. Que sucesso!
25.
Júlia se recupera dos implantes
Ana cuida de sua filha com extremo carinho. Eleita para ser mãe e
seguindo todas as orientações do Governo, teve licença de 5 anos para
acompanhar sua filha. Ela será sempre sua principal atividade.
Os implantes tornam-se imperceptíveis. A energia que consomem vem do
próprio corpo. Não usam baterias ou qualquer fonte externa de energia.
Os motivos para os implantes não lhe parecem claros. De qualquer forma
é uma determinação superior e isso é sagrado para Ana. O mundo é o da
disciplina. Ela é necessária para que possam sobreviver nas condições
existentes. Disseram-lhe que a adaptação de Júlia será mais rápida após essa operação.
Agora Júlia começará a ser afetada pelos Sistemas Eletrônicos de
Influência com muito mais eficiência. Se antes era sensível a orientações
subliminares, agora será atingida por comandos diretos. Com o implante a
eficácia deles é maior. A dominação atinge novo estágio. Sua vontade será
ajustada a dos grandes comandantes. Estudará, comerá, dormirá e tudo o mais sob
a influência desses sistemas. Politicamente Júlia deixa de ter vontade própria.
Os primeiros efeitos começam a ser perceptíveis. Júlia já não quer
brincar tanto. Procura estudar. Preocupa-se em ter uma profissão. Diz que quer
ser útil. A quem?
Ana, também sob efeito de programas especiais, estimula sua filha a
seguir as orientações recebidas.
As duas fazem parte do projeto de preservação essencial. Júlia
substitui alguém que morreu. A preocupação é manter a população das Américas
estável, servil, acomodada e produtiva. Os sistemas de influência eletrônica
são extremamente eficazes. Não dependem da propaganda ostensiva como os
existentes nos meios de comunicação clássicos. Esses sistemas, além de
extremamente caros, tinham a fragilidade da enorme variação de personalidades.
Se eficazes dentro de um grupo de pessoas, eram menos atuantes em outras. Com o
crescimento da inteligência e cultura da Humanidade estavam perdendo eficácia.
Assim os SEI vieram ao encontro dos interesses das elites dominantes. Donas
desta tecnologia, operando-as sem o conhecimento da pessoas externas a seus
círculos mais íntimos, podem estabelecer os programas que lhes convierem. Para
isto a tecnologia e instalações dessas estações são privilégio mantido a sete
chaves.
Júlia tem seu código, sua programação específica e seu futuro
estabelecido. Ele só mudará se, por qualquer razão, as estações SEI pararem de
funcionar. E esta é uma preocupação imensa na cúpula das empresas e do Governo
Central, representante maior dos interesses dos acionistas dos SEI. O sistema
simplesmente não pode parar. A subversão viria matematicamente.
Sempre lembrando, os sistemas SEI atuam maravilhosamente nos
comunicadores da mídia clássica...
26.
A epidemia se espalha pela Ásia
O sul da Ásia, região que há menos de um ano tinha bilhões de
habitantes, está reduzido a algumas centenas de pessoas. Em algumas de suas
áreas desastres adicionais contribuíram para exterminar os sobreviventes.
Usinas atômicas explodiram, barragens romperam-se, sistemas de abastecimento de
água, comunicações e transporte foram parando. O pânico juntou-se a tudo para
dizimar uma população de tradições e cultura milenares.
Os rios estão cobertos de cadáveres boiando. Por efeito de suas crenças
muitos foram entregar suas vidas aos deuses nas margens de seus rios sagrados.
Sem condições de serem cremados, acabaram sendo simplesmente lançados às águas
por efeito de suas superstições. As imagens, a maior parte colhidas por
veículos aéreos, mostram cenas dantescas. As autoridades dos países vizinhos,
principalmente, não sabem se devem censurá-las ou, deixando-as serem
transmitidas para seus povos, dar início a um processo de preparação para a
morte.
Os grandes laboratórios e universidades trabalham freneticamente
procurando uma forma de conter esta doença. O problema é colher e manusear
materiais para ensaios. Muitos pesquisadores já morreram, afetados pela doença.
Os continentes, os países e cidades se isolam. Todos procuram formas
para sobreviver. Estoques de todo tipo são formados rapidamente. Assim começa a
faltar alimentos nos grandes centros. A fome é uma ameaça tenebrosa.
Os países fronteiriços a essa parte desse imenso continente começam a
ser atingidos. A China e o Paquistão são os primeiros. Há tantos séculos
adversários, agora caminham juntos para a destruição. Tivessem sido mais
racionais e teriam tido recursos para evitar o caldo pestilento que facilitou a
propagação dessa praga. Gastaram fortunas incalculáveis em armamentos. Agora
um inimigo pequeníssimo, invisível, mostra-se terrivelmente mais perigoso. E
era previsível. Mais cedo ou tarde aconteceria.
Pela Ásia inteira manifestações religiosas de toda espécie são
promovidas. Tanto na preparação espiritual para o fim dessa vida quanto na
esperança de agradar algum Deus de plantão. Todos de alguma forma procuram um
jeito de ganhar alguma coisa, quando pouco, a vida eterna.
Cenas ridículas, cômicas, trágicas e muito sérias se sucedem por todos
os cantos daquele continente com tantas tradições. A grande maioria acreditando
ter chegado o fim do mundo, o tempo de algum juízo final, reza, chora e grita
pedindo perdão de pecados os mais diversos. Em muitas cidades procissões
intermináveis circularam pelas ruas até que a doença começasse a derrubar os
crentes. Muitos templos acabaram cheios de cadáveres.
As primeiras mortes fora dos mais duros cordões de isolamento jamais
construídos foram a senha para o desespero. Os grandes líderes asiáticos
parecem completamente atordoados. Alguns países insulares agora agradecem, mais
do que nunca, a condição de isolamento geográfico.
A interdependência mostra-se perversa. Equipamentos sofisticados
começam a parar por falta de componentes. Instalações complexas no mundo
inteiro estão sendo desativadas. Tudo isso seria suportável menos a falta de
alimentos, de água e até de ar. As nações mais ricas, grande importadoras de
alimentos, começam a sofrer racionamentos pesados. E nesses países, construções
gigantescas contém milhares de pessoas vivendo em ambientes artificiais,
altamente dependentes de tecnologia, equipamentos complexos, serviços
especiais.
Essa epidemia está mostrando a fragilidade de nossa sociedade. As
"monstrópolis" em que as grandes cidades se converteram são pesadelos
incríveis e totalmente ingovernáveis nessa condição de crise. Nos países mais
desenvolvidos a ordem se mantém até que de repente a população parece acordar e
entrar em
desespero. A Humanidade cresceu em número e complexidade mas
no culto ao individualismo perdeu-se muito da capacidade de planejar uma
situação dessa espécie. Para as guerras entre nações gastou-se no passado
fortunas inimagináveis, para a defesa contra os piores inimigos que a própria
Natureza apresenta de tempos em tempos, muito pouco foi preparado.
Assim como a Natureza varreu da superfície da Terra os dinossauros,
parece agora pretender limpá-la dos seres humanos.
27.
Governo Central analisa a epidemia
Nas Américas o Governo Central discute as providências a tomar diante
da praga asiática. A sala de reuniões continua coberta de gráficos e números,
mostrando com detalhes os dados da crise. Um grande mapa dinâmico apresenta com
destaque as fronteiras dos países atingidos. Dentro deles números crescentes
indicam quantas pessoas já morreram. Marcas especiais apontam os lugares onde
algum desastre adicional aconteceu por efeito do abandono de instalações.
O Presidente quer conhecer minuciosamente os planos de desativação das
grandes centrais, fábricas e até edifícios. Ficarão sem condições de
funcionamento com a perda de energia e operadores essenciais. Não mais existe a
prosaica fuga para campos e praias. A superpopulação ocupou todos os espaços
saudáveis, a poluição, venenos de toda espécie inutilizaram outros. O medo do
contágio, contudo, poderá levar muitos a ficarem trancados em seus módulos
residenciais.
Com a Ásia sob bloqueio começa a faltar componentes críticos de muitas
máquinas. O efeito ainda é pequeno mas já mostra o sentido das coisas. Os
famosos computadores são os primeiros a ter problemas. O mundo adaptara-se à
importação maciça de produtos manufaturados da Ásia e África. A Índia e outros
países mais pobres daquele continente tinham mão de obra de baixo custo. A
perda desta área produtiva afeta inúmeros produtos.
Na exploração da mão de obra barata, a custos que os países mais fortes
impuseram, seus povos permaneceram em misérias desnecessárias e, agora, base
desta praga. A insensatez dos ricos será a principal causa da própria
destruição.
O racionamento já está sendo aplicado. As reações populares são menores
pois os SEI estão ainda operando. A maior preocupação é a manutenção das
grandes cidades. Elas são extremamente frágeis.
O Presidente discute a questão:
- Vi as propostas de racionalização de recursos, cortes e planos de
desativação de instalações. As associações patronais e o sindicato MEI (formado
pelas empresas detentoras da tecnologia dos SEIs, devidamente desconhecidos da
grande população mas perfeitamente usados pelo Presidente) também foram
consultados. A questão maior é que simplesmente não tínhamos nada preparado
para uma situação desta espécie. Qualquer proposta esbarra na falta de pelo
menos um detalhe estratégico. Nossas indústrias estão sendo acionadas para
produzirem diversos produtos até agora importados. A dúvida é se teremos tempo
para resistir até atingirmos um padrão mínimo de sobrevivência tecnológica.
O Ministro da Segurança intervém:
- Senhor Presidente, precisamos ser claros. As Américas precisam ser
divididas em áreas e há necessidade urgente de estabelecermos barreiras
preventivas até entre nós. As Américas têm regiões razoavelmente
autosuficientes em alimentos e energia. Isolá-las é possível e uma necessidade
impreterível. Temos amigos e parentes em todas elas mas a decisão, diante da
gravidade da situação, é inevitável. A questão é complexa, nossos exércitos não
têm preparo para ações de policiamento desta espécie. Dependeremos muito da mídia e dos SEIs. A
melhor maneira de estabelecer o isolamento será usando robôs nos controles de
fronteira. Infelizmente não temos unidades em número suficiente.
Já começamos campanhas pedindo que todos se preparem para viver um
período de suas vidas em isolamento.
Muitos optaram pelos bancos, outros, muito mais ricos, estão saindo em
viagens de longa duração fora da Terra. Esses
automaticamente estão se programando para longos períodos inertes em
suas cápsulas.
O número de indivíduos em condições de sobreviver nesses ambientes é
insignificante em relação ao da população como um todo.
Ou descobrimos rapidamente uma vacina ou remédio contra esta epidemia
ou poucos sobreviverão para contar a história. Imensas regiões, antes habitadas
por centenas de milhões de pessoas, agora mostram algumas poucas que
sobreviveram a esta catástrofe. O pior é que alguns entendem que isso é obra
divina, solução, holocausto e outras besteiras. Corremos o risco de ver esses
indivíduos trabalhando para a disseminação dessa doença.
O Ministro da Saúde pede a palavra:
- Nossos melhores laboratórios trabalham exaustivamente. Alguns
progressos estão acontecendo. A dificuldade maior é o risco de contaminação.
Perdemos muitos cientistas nessa luta. Eles, contudo, têm mostrado disposição
total na pesquisa de um inibidor dessa praga. Melhor do que ninguém, existe
entre eles a consciência de que se não encontrarem uma solução, a Humanidade
voltará à idade das pedras, se sobrar alguém vivo.
Existe uma possibilidade de sobrevivência de uma parte mínima da
população. São nossas vilas em outros planetas. Lá poderemos instalar alguns
milhares de indivíduos e mantê-los em atividade reduzida até nossos
laboratórios mais seguros encontrarem uma solução. Será um recomeço com uma
elite de indivíduos, que puderam safar-se usando os melhores recursos
disponíveis, não para a luta, mas para a própria sobrevivência. À semelhança
dos abrigos nucleares do século vinte, poderemos sobreviver em abrigos
anti-vírus até podermos voltar em um novo mundo. A Terra será um amontoado de
escombros com espaços imensos para uma nova civilização.
O Presidente pondera:
- Talvez seja esta uma situação natural diante do drama em que temos
vivido. A Terra, em plena período glacial e com excesso de população, está se
degradando estupidamente. É minha obrigação lutar pela sobrevivência de todos.
Não seria esta situação, contudo, uma alternativa natural para os excessos de
nossa civilização? Nossa esperança é de que se não conseguirmos debelar esta
epidemia, algumas pessoas especiais sobrevivam e recomecem a vida em bases mais
sadias do que as que encontramos.
Ironias à parte, o pesadelo mostra uma situação interessante:
Nossos congressistas sumiram, foram cuidar de suas bases, dizem. Na
realidade simplesmente estão procurando formas de salvar a própria pele.
28.
Marcos e Ângela e o Mundo
Marcos sente que algo de estranho realmente está acontecendo. Ele e
seus companheiros não recebem qualquer contato externo há muito tempo. Seus
aparelhos de comunicação precários já não captam sons. Imagens não tinham
antes. Era diretriz dos ecologistas e cientistas que permanecessem tão
isolados.
Suas ilhas têm esqueletos de muitos prédios abandonados. Restos de
hotéis e instalações militares lembram épocas muito diferentes.
Ângela e Marcos preocupam-se com a ausência de contatos com a base de
suprimento do mundo convencional. Alguns produtos, permitidos pelos cientistas,
começam a faltar. A demora significará falta de roupas, remédios básicos,
eletrodomésticos etc. Precisarão simplificar muitos detalhes de suas vidas.
Felizmente moram em um lugar maravilhoso. Meios de diversão sempre souberam
inventar. Este era um aspecto que surpreendia seus pesquisadores. Eles vinham
às ilhas para procurar entender como podiam divertir-se tanto sem os aparelhos
modernos, onipresentes em suas vidas.
Gradativamente, ao longo dos muitos anos de isolamento, começaram a
desenvolver equipamentos com matéria local em substituição dos importados. Essa
era uma diretriz da experiência. Graças a isto poderão sobreviver com mais
facilidade na situação que agora se configura.
Marcos comenta:
- Hoje teremos uma reunião junto à praia menor. Nossos amigos lá estarão para uma noitada de cantos
e danças. Teremos uma noite linda, o céu coberto de estrelas e Lua crescente.
Assim poderemos esquecer um pouco esses problemas que lhe incomodam. Temos
encontrado alternativas a muitos dos benefícios do mundo lá distante. E somos
mais felizes do que a maioria dos que nos visitam. Por que a preocupação?
- Intuição, talvez.
- Hoje acordei com o barulho dos passarinhos. Que algazarra.
- A primavera vem por aí...
- Sim, caminhando para a praia dá para se ver isso. As plantas, as
flores reaparecem e muitos animais estão agitados. A vida ganha força.
Enquanto fala vê como resolver problemas caseiros. Agora falta gás, sem
energia elétrica precisam de madeira para cozinhar seus alimentos. Felizmente a
ilha têm muitos coqueiros. Deles é possível reunir muito material combustível.
Pouco a pouco a vida se torna mais rústica, primitiva.
A comunidade é relativamente simplória. Sem grandes projetos, tem na
alegria de viver a principal força de sobrevivência. A luta pela vida sem os
recursos da tecnologia desenvolveu neles instintos e sentidos já perdidos nas
grandes cidades. Principalmente o olfato e a audição estão a níveis muito
superiores aos dos habitantes do mundo externo. São aparentemente inferiores
mas extremamente mais resistentes. O interessante para os cientistas é notar
essa recuperação de qualidades praticamente perdidas lá fora.
A vida nos imensos prédios das grandes cidades têm aspectos
constrangedores. É suportada porque muitos sistemas de influência atuam criando
sentimentos positivos. Tenebrosamente o ser humano depende cada vez mais de
equipamentos e fantasias que inventa. Esta simbiose é necessária diante da
superpopulação e dos efeitos do resfriamento rápido da Terra.
Marcos e Ângela vivem uma situação completamente diferente.
Sentados comem o peixe recém pescado.
O sal era produto local, extraído da água do mar. Os cocos nunca
faltaram. Sua polpa era transformada em muitos doces que naquele final de tarde
acompanhava o prato principal. A simplicidade daquela saleta ganhava ares de
grande beleza. O jantar era um momento de aproximação carinhosa.
Os dois, sós, ali se unirão em grande paixão e prazeres que só eles
sabem ter.
29.
Grupo Mundo Novo analisa a situação
Reunidos mais uma vez discutimos, perplexos, o quadro mundial.
Transmito as informações que obtivera através de simpatizantes. Os meios de
comunicação formais já dão orientações severas de preparações para resistir à
epidemia asiática.
Graças ao uso intenso dos SEIs, que eu desconhecia existir até há pouco
tempo, o pânico é substituído por comportamento quase mecânico. Exceto algumas
pessoas não afetadas pelos diversos Sistemas Eletrônicos de Influência, as
demais agem com aparente serenidade. Os
países mais ricos assim mostram um comportamento totalmente diferente dos mais
pobres. A diferença não é o resultado de cultura ou saúde e sim o efeito da
tecnologia. Há muito submetidos a controles os mais diversos, os povos mais
ricos encontram-se atrelados a todo tipo de monitoração e condução psicológica.
Nesse momento é até vantajoso, evita-se distúrbios extremamente perigosos.
- Estamos vendo que alguns, mais poderosos, estão embarcando em viagens
interplanetárias. Embarcados em foguetes, seguindo rotas longas, ficarão
dezenas de anos navegando pelo espaço até voltarem à Terra daqui a muito tempo.
À semelhança de alguns cometas, a cada dezenas de anos passarão por aqui e,
provavelmente, estarão programados para só serem reanimados e descerem à Terra
se indícios seguros mostrarem que os maiores perigos tiverem passado.
Outros preferiram formas de congelamento. Permanecerão devidamente
arquivados por muitos anos. Robôs estarão controlando seus armazéns. É um
sistema seletivo pois o custo também é razoável e o espaço disponível é
pequeno.
Alguns cientistas estão sendo enviados para as bases planetárias. Lá
poderão, durante alguns anos, pesquisar a cura dessa epidemia. Eles têm prazo.
Os prazos variam conforme a base. Findo esse período terão que voltar à Terra
pois se lá ficarem morrerão por falta de alimentos, ar ou água.
A grande maioria da população, contudo, só tem a esperança de
rapidamente descobrirem um remédio ou vacina. Caso contrário morrerão a menos
que os ambientes em que estiverem for suficientemente isolado para evitar a
contaminação. Além disso precisarão dispor de recursos diversos para
simplesmente continuarem suas vidas e as de seus descendentes.
Todo esse povo, contudo, terá que reaprender a viver em um planeta sem
os produtos que estavam acostumados a utilizar. Ao serem reanimados estarão
acordando de um sono profundo e demorado, cercados de ruínas. E que animais
estarão em volta? Como serão as florestas e o próprio clima? O ar certamente
será diferente. É impossível imaginar a transformação provocada por este vírus
ou bactéria.
A doença está fazendo o que pretendíamos. Destruir o mundo artificial
em que vivemos, recriar espaços. A dúvida é se alguém sobreviverá para
recomeçá-lo em bases mais sadias. Tenebrosamente a destruição é impressionante.
Nosso desafio agora é reunir nosso grupo e discutir formas de
sobrevivência. Perdemos a iniciativa para a própria Natureza. Temos as opções
que acabei de relatar. Outra é procurar algum lugar mais isolado.
Pelas nossas origens e formação talvez consigamos sobreviver em algum
lugar isolado e distante desses ares pestilentos.
30.
Os banqueiros discutem o plano de emergência
Diversas unidades européias e asiáticas do banco foram desligadas. Fato
inédito na história do World Intelligence Bank. E o pior é que muitos desses desligamentos
aconteceram pela perda de energia, conseqüente de abandono de instalações de
forma inadequada. Havia como transferir cargas, manobrar o sistema. Na angústia
da epidemia e na falta de maior comunicação, contudo, perdeu-se coordenação e
as quedas de energia acabaram demorando mais do que o previsto.
Incrivelmente, em pleno terceiro milênio da era cristã as famosas
defesas civis não sabiam como reagir a grandes catástrofes. Nesses momentos tem
dominado o líder carismático, aparentemente lúcido. O ser humano não resiste ao
teatro. Esses momentos revelam grandes artistas. A falta de organização e ações
coordenadas, otimizadas, está cobrando um preço elevado.
O World Intelligence Bank sofria a incompetência e irresponsabilidade
de séculos de construção de uma estrutura mal preparada para emergências deste
porte, pouco prováveis mas, ainda assim, podendo acontecer. Por muita sorte as
tragédias acontecidas até há pouco tempo foram locais ou no máximo regionais.
Nenhuma conseguiu mobilizar as autoridades para uma análise a nível mundial.
Agora usinas nucleares explodem, barragens gigantescas cedem ao volume de águas
não liberadas, sistemas essenciais param por absoluta falta de um plano de
desativação de instalações críticas. E o WIB sofre as conseqüências, logo ele
que oferecia a eternidade.
O Banco tinha recebido um volume sem precedente de depósitos. A
epidemia transformou o banco em uma opção de salvação. Instalações foram
improvisadas, construídas às pressas. Como entretanto tinham que respeitar os
anéis nacionais de isolamento, muitas estavam longe das fontes de energia.
Essas instalações, altamente dependentes de energia, tinham menor
confiabilidade.
Mas os banqueiros têm como programação básica preservar e valorizar
seus depósitos. Assim desenvolvem planos e emitem ordens que geram muitas
movimentações. Paralelamente, nas Américas, o Governo Central atua para
viabilizar as propostas do World Intelligence Bank. Entende que é uma forma de
garantir recursos que virão a ser importantíssimos no futuro, sabe-se lá
quando.
Uma vantagem existe na construção de mais unidades nas regiões mais
frias. Lá existe uma base industrial sólida e o próprio clima ajuda a manter as
unidades se for necessário congelá-las totalmente, paralisando-as
completamente. O problema é que a recuperação ainda é uma técnica em discussão. Depende
muito de análises que estavam sendo feitas em grandes centros de processamento
científico. Os famosos cérebros eletrônicos agora empenham-se nos projetos de
congelamento e recuperação. Do sucesso deles dependerá a reconstrução da
civilização humana após esta tragédia.
John coloca as tarefas e, ele próprio, encarrega-se de muitas análises
importantes. As propostas:
- considerar as linhas de transmissão de energia entre sul e norte
rompidas;
- operação isolada de cada depósito;
- seqüência de desligamentos e destruição dos restos dos depósitos;
- planos de reativação das unidades preservadas e congeladas após a
crise.
Assim estabelecendo propostas de trabalho, seus companheiros começam a
expedir tarefas para seus times associados.
31.
Ana
Ana está assustada. Aos poucos percebe a existência da epidemia
asiática, do avanço dessa doença por outros continentes e a grande
possibilidade de chegar às Américas. Ela mal sabe o que é um continente mas
sente que algo está errado. Fruto de novas tecnologias, é uma pessoa
perfeitamente alienada, querida, gostosa, contudo.
Sozinha precisa proteger sua filha e a si mesma. As notícias são
terríveis. Sua filha recupera-se do implante e ajusta-se bem aos sistemas e
treinamentos. Ana é sensível aos SEIs, o medo da morte, contudo, é muito forte.
Mulher bonita e inteligente vive dentro de padrões convencionais. Cidadã típica
da sociedade em que vive, ajustara-se perfeitamente a tudo o que dela se
esperava apesar de alguns períodos de rebeldia. Mãe solteira mas dentro de um
programa governamental de reprodução, vive agora dilemas que gostaria de
compartilhar com alguém. Sua filha é uma pessoa especial, programada, do
interesse do Governo Central. Ela faz parte de um plano de experiências sobre
controle comportamental. Ana desconhece a amplitude desses detalhes pois ela
também é vinculada à pesquisa. Cobaia humana, as decisões foram tomadas muito
longe dela.
O povo sempre foi instrumento, propriedade e matéria de exercício do poder
das elites, Ana não é exceção.
Diante da violência dos fatos essa mulher acorda um pouco, entreabre
seus olhos, talvez sentindo os olhos pesados mas procurando ver o que seu
instinto lhe diz. Precisa de mais informações objetivas. Ela procura as autoridades
e a elas é oferecido um depósito no World Intelligence Bank. É uma hipótese que
atordoa a frágil mãe. E ela precisa tomar esta decisão rapidamente. Sente que
deve agir desta forma. Já lhe deram endereço, dia e hora para as duas
procurarem o depósito mais próximo. Recebeu instruções minuciosas de como
proceder. Por mais que entenda ser necessário agir desta forma, a decisão é
muito difícil. Ela sempre teve medo do Banco, a propaganda e a imagem dessa
instituição não conseguiram vencer seus preconceitos e agora a hora chega...
Suas rejeições deveriam ser menores. Vive em um planeta superpovoado,
artificial, cercado de plásticos e metais, cibernético e estático. Contradições
do esgotamento de muitos recursos naturais, a Humanidade cada vez mais torna-se
estática, presa, sem mobilidade. Assim Ana já deveria ser mais receptiva.
Talvez algum dos sistemas SEI tenha sido desativado. A progressão da crise está
desativando, passo a passo, a estrutura tecnológica existente.
Assim ela começa a entender idéias e propostas de alguns amigos
estranhos. Há muito tempo haviam-lhe falado de um grupo de ativistas a que
pertenciam, Grupo Mundo Novo. Nas conversas daquela época ela percebeu que eles
fugiam às normas, não se subordinavam tão pacificamente ao Governo. Provavelmente
terão alternativas.
Tudo isto confunde mais ainda seu pequeno e muito organizado mundo. E
Júlia, sua filha, como protegê-la? Ainda bem que em sua ingenuidade não percebe
muito do que está acontecendo. Mas Ana precisa de mais certeza, de mais
convicção para a decisão de entrar no Banco.
É um dia bonito, ela caminha dentro de corredores e tubos gigantescos.
É um mundo cheio de dutos, caminhos de toda espécie, sempre isolando seu
conteúdo do ambiente externo... Há muitos séculos os tubos serviam para o transporte
de combustíveis, água e suas variações. Agora são os grandes caminhos de
multidões. Ana dirige-se a um endereço em que seus amigos estão reunidos.
Enquanto caminha e utiliza os sistemas de transporte coletivo fica pensando no
significado das instruções recebidas. Lá fora o Sol brilha com força. Ao longe
o azul do mar é um contínuo de um céu mais azul ainda. Como afastar-se de tudo
isto? Ela sabe que terá compensações procurando o Banco. Não tem certeza de um
retorno à vida normal. E ela não quer afastar-se de sua filha. Sabe que no
Banco, mesmo fisicamente próxima, estará sem contato com Júlia. E ela é tão
pequena. Não haveria alternativa?
Andando ela se aproxima de um endereço que conhecia muito bem. Lá
estivera muitas vezes por motivos completamente diferentes. Agora era uma
esperança.
32.
Um reencontro
A amizade de Ana por mim foi um acidente sentimental. Ela se lembra do
momento em que nos encontramos pela primeira vez, em um congresso já distante.
Eu, muito falante, polemizava, colocava assuntos considerados
desagradáveis pela maioria dos ouvintes. A disciplina e lavagem cerebral a que
eram submetidos impedia que percebessem a verdade de muitas afirmações daquele
dia. Ana ouviu com atenção o que eu dizia, talvez mais pela oportunidade de
aproximar-se de mim do que pela intenção de aproveitar algo. Politicamente
manifestava-se dentro dos modelos oficiais. Era e é uma mulher atraente. Nossa
conversa evoluiu para questões mais íntimas. Seu convite para acompanhá-la a
seu apartamento deu partida a um período de muito amor. Não resisti a seus
encantos e não me arrependi. Com todas as limitações o amor surgiu com força.
Tivemos momentos sublimes. Enquanto durou foi maravilhoso. Separamo-nos por
termos opiniões diferentes sobre muitas coisas, opiniões que geraram conflitos
e um afastamento longo, lamentável.
Agora ela me procura exatamente para entender o que está acontecendo e
procurar apoio dentro de um cenário que não compreende.
E como está bonita. Elegante, morena, formas de mulher bem acentuadas, lábios
grossos e olhos escuros fazem-me vibrar. Qual é o homem que resiste aos
encantos de uma mulher sensual, bonita e frágil? O que um homem precisa para adorar uma mulher encantadora,
sensual? Somos simples animais à procura de algo que nos complete, que seja
aquilo que não entendemos mas sentimos ser o que nos falta. A mulher de nossos
sonhos é antes de mais nada um conjunto de cheiros, vozes, peles e reações que
sentimos quando mergulhamos nelas. E muitas são as únicas, as deusas, as
preferidas. Os homens são escravos do amor. E quem disse que o amor é algo
apenas possível entre um único par sobre a Terra?
Ana aparece em sua plenitude feminina. É mulher de ponta a ponta, da
cabeça aos pés. Escravo de meus hormônios, eu a veja deusa, linda, atraente. E
que momento para encontrar uma mulher. A tragédia aumenta o estímulo sexual. É
como se a Natureza dissesse que no menor prazo possível devêssemos procriar,
amar, cuidar de nossas crias. Papo “cabeça” para estímulo de outra cabeça...
Eu a recebo de uma maneira bem humana. Amores antigos, bem desfrutados
durante muito tempo, retornaram com intensidade nos nossos pensamentos. Eu a
abraço, beijo-a e a conduzo para a minha sala. A música é romântica mas a
ansiedade, a tensão nervosa de Ana não lhe permitem qualquer descontração. Aos
poucos ela relata sua história. Não me surpreende. Àquela altura já conheço
muito dos esquemas de dominação existentes. A proposta que lhe fizeram de
submeter-se ao WIB, contudo, assusta-me. Mostra a gravidade da situação. Decido
apresentá-la aos meus companheiros.
Levo-a onde meu time se encontra discutindo como sobreviver. As
questões mais delicadas já tinham sido tratadas e apenas dois colegas lá se
encontram para recebê-la, um deles um médico, Júlio, o outro um engenheiro já
bastante idoso, Antônio. Para todos eles Ana é um objeto de curiosidade. Como
ela teria mudado de comportamento, porque insurgia-se contra orientações que
estavam sendo dadas a todos?
E Ana, chorando, expõe as orientações recebidas. A perspectiva do
depósito a apavora. Seu universo era linear, tranqüilo, tinha todos os prazeres
e confortos que a tecnologia lhe oferecia. De repente via o mundo
desmoronar-se. Por mais que procurasse aceitar, e até há poucos dias parecia
consegui-lo, agora, de repente, começa a pensar, a ver que algo está errado, ou
sempre estivera.
Coloquei a questão:
- Ana, infelizmente a realidade é pior do que você está imaginando.
Existe, entretanto, a oportunidade de refazermos nossas vidas. Tudo dependerá
de sorte e audácia. Estamos discutindo uma forma de sobreviver. Nossos amigos
conhecem um ambiente preservado, distante mas ainda acessível. Temos condições
de transportar-nos até lá. Felizmente o Governo Central não está considerando a
hipótese de se salvar instalando-se naquelas ilhas. Na realidade o estado está
se desintegrando. Estranhamente as pessoas parecem mais perdidas do que
imaginávamos. Até há pouco tempo agiam como se nada estivesse acontecendo.
Agora, gradativamente, estão perdendo o controle.
O Governo Central não tem autonomia sobre nossas atividades. Estamos
subordinados à ONU que, por sua vez, está perdida. Temos facilidades especiais.
Agora as usaremos para salvar a própria pele.
Temos como viajar. Não podemos levar muita gente. Você e Júlia,
contudo, estarão sob minha proteção. Você deve preparar-se para uma viagem
praticamente sem retorno. Acreditamos que ficaremos muitos anos longe daqui.
Viveremos isolados em ilhas distantes mas extremamente bonitas. Algumas pessoas
lá estão em isolamento há muitas gerações. Vamos prejudicá-las em certos
aspectos mas esperamos contribuir para uma permanência sadia e proveitosa.
Seremos nós mesmos exemplos do que estudamos há tanto tempo.
Sinto a perplexidade dos dois companheiros. Talvez eles tenham
esquecido a importância de uma mulher amada na vida de um homem. São
cientistas, talvez já alienados em relação ao que de mais importante exista na
natureza, a capacidade de amar, de se apaixonar.
Eu não confesso o quanto amava minha velha amiga Ana. O amor que
sentira era agora motivo de estímulo à proteção daquela mulher linda, que com
tanta paixão se entregara a mim em tantos momentos belíssimos, inesquecíveis.
Infelizmente Ana se afastara. Ela e outras pessoas agiam dentro de certos
padrões que ao longo dos anos tornaram-se mais rígidos. Eu agora sei que algo
dirigia aquelas pessoas. Algo que, felizmente, deixa de funcionar e que me
tirara tantas amigas e amigos.
Ana ouve com atenção os detalhes da operação “Arca de Noé”, como o
Grupo Mundo Novo havia rotulado. O desafio é agir antes que a epidemia chegue
perto. Se isso acontecer eles serão contaminados antes de poderem fugir. O
navio de que dispomos não é grande mas apresenta-se suficientemente moderno e
robusto para enfrentar o oceano. É equipamento de uma base científica nossa
sobre a qual eu e nossos amigos temos controle. E lá, nessas ilhas em que
algumas famílias foram isoladas há alguns séculos em uma experiência de
desenvolvimento humano sem tecnologia avançada, poderemos encontrar um novo
mundo. Responsável pelo centro de pesquisas, era meu programa. Conhecia bem as
condições existentes naquela área.
Felizmente somos ainda pouco numerosos. Temos algumas dezenas de
pessoas relacionadas para a viagem, que começará logo que chegar o momento.
Usaremos um barco ultramoderno de pesquisas. Feito para prescindir de
marinheiros profissionais, é regularmente operado pelos próprios cientistas em
suas visitas às áreas de pesquisa.
Alguns cientistas da base tomaram outros caminhos. Há muitas
alternativas. É difícil qualificá-las. O futuro dirá quem errou ou acertou. A
absoluta maioria desconhece este plano
“Arca de Noé”. É um dos muitos planos de fuga e sobrevivência que nossos
companheiros desenvolvem. Têm liberdade para escolher até porquê minha autoridade
desaparece à medida que o pesadelo aumenta. Diante da necessidade de se lutar
pela própria sobrevivência, quem estaria disposto a aceitar orientações que
contrariassem seus instintos? Não são soldados, sabem pensar. São inteligentes
e cultos, donos de competências excepcionais. Só posso estimulá-los a assumirem
suas idéias. Felizmente meu grupo tem a sua estratégia e a faremos acontecer.
Nosso plano, reservado aos nossos mais próximos amigos, exige harmonia
e disposição para sobrevivência naqueles cantos. Enquanto isso estudamos como
nos instalaremos para uma estadia possivelmente muito longa. O contato com
nossas origens será eletrônico, na esperança de algum dia, passada a epidemia e
sob os efeitos do tempo, podermos retornar. Talvez o Governo Central e seus
cientistas descubram vacinas e remédios que poderemos usar para futura
reintegração aos sobreviventes. Agora simplesmente procuraremos não morrer.
Excita-nos, contudo, a oportunidade dessa experiência. É interessante,
mesmo diante de um cenário mórbido, sentimos prazer em testar nossas idéias
nessas condições. Sentimo-nos como deuses empreendendo a própria criação do
Universo.
Pequenos, insignificantes, exercemos a empáfia do eterno ser humano,
feito à "imagem e semelhança de Deus".
33.
Governo Central analisa as ações isoladas e
situação mundial
O Presidente, reunido com seu ministério, comenta as iniciativas de
muitos grupos isolados.
- Sabemos que muitos indivíduos estão agindo por conta própria.
Perdemos muitas emissoras SEI. Principalmente cientistas e profissionais melhor
preparados estão agindo de forma independente para sobreviverem. Entendemos que
é válido pois a nossa esperança é que na aleatoriedade de algumas atitudes,
algum grupo descubra uma forma inteligente e eficaz de sobreviver. Estamos,
paralelamente, autorizando viagens e “fugas” para outros planetas ou para o
espaço simplesmente. Muitos já partiram em seus programas de autopreservação.
Alguns ficarão em órbita planetária, outros estão se instalando na Lua e outros
a caminho de Marte. São pessoas mais ricas, podendo, com recursos e poder
pessoal, sustentar essas soluções. E não podemos impedir. Esperamos
reconstituir o comando após alguma estabilização do processo. A dúvida é se
aceitarão nosso governo. As Américas ainda não foram atingidas diretamente pela
doença, apesar de haver indícios de que logo ela estará por aqui.
De qualquer forma o mais surpreendente é a notícia trazida pelos
serviços de inteligência de que um tal de Grupo Mundo Novo, formado basicamente
por cientistas do projeto “Vida Básica”, está se preparando para sair rumo a
algumas ilhas sobre as quais têm controle, por delegação das Nações Unidas.
Soubemos que até pretendiam desenvolver ações violentas antes desta epidemia.
Agora simplesmente tratam de defender-se daquilo que propugnavam. Que sigam
para seu isolamento. Um dia voltaremos a discutir esta questão, se estivermos
vivos.
O Ministro da Defesa :
- Presidente, e o Estado? Em tese estamos viabilizando a anarquia.
Creio que poderíamos disciplinar este processo. Temos forças e os SEIs, alguns
operando bem.
O Presidente insiste:
- Não, vamos nos concentrar no isolamento, no bloqueio. Qualquer
recurso, homem ou máquina disponíveis, deverão organizadamente policiar
fronteiras. Se alguém ou algum grupo quiser sair, deixaremos. Quem ,
entretanto, afastar-se de terras americanas, não poderá retornar enquanto a
epidemia não estiver sob controle. Vamos agir para preparar a população para o
pior.
E o WIB é uma opção se puder operar. Quantos quiserem ligar-se aos
sistemas de conservação inercial poderão fazê-lo, desde que exista espaço.
O Ministro das Comunicações levanta a questão:
- E nós, Sr. Presidente, qual é o nosso destino?
O Presidente não esperou para responder:
- Precisamos decidir sobre nosso futuro. Temos condições de permanecer
na Terra de diversas maneiras. A questão principal é a sobrevivência do governo
em si. Para
tanto precisamos continuar existindo normalmente, agindo, decidindo. Estamos
construindo em uma região próxima uma cidade com altíssimos padrões de
isolamento ambiental. A dúvida é se terminarão as obras antes da doença chegar
até nós. Temos abrigos para defesa militar construídos há muitos séculos.
Estamos instalando recursos de comunicação e sobrevivência nesses lugares. A
expectativa é de precisarmos de muitos anos de isolamento e pesquisas até
podermos retornar a nossas antigas cidades. E elas não serão mais que montanhas
de escombros. Ou seja, inabitáveis. Mesmo que estejam perfeitas, não teremos
como viver nessas florestas de aço e concreto sem os recursos energéticos, que
serão perdidos, sem as pessoas treinadas para operá-las e tudo o que viabiliza
nossos ambientes. A vida humana deverá reconstituir-se em outros espaços. As
cidades voltarão a ser cobertas por florestas.
Na Europa o desastre é total. Pela proximidade com a Ásia não conseguiram
evitar o contágio. Estamos totalmente isolados deles exceto pelo que ainda
vemos e ouvimos eletronicamente. As imagens são desoladoras. E muitas regiões
ainda sofreram com a explosão de instalações críticas. O que a epidemia não fez
está sendo completado pelos acidentes. Acompanhamos atentamente o que está
acontecendo pois precisamos evitar a repetição de erros que lá não conseguiram
impedir.
Há males que vêm para o bem. A inibição das longas viagens permitiu-nos
estabelecer bloqueios, que agora nos dão um tempo. Parece-nos impossível
sustentar por muito tempo esta condição. Observamos muitas tentativas de fuga
da Europa e Ásia para as Américas. Algumas tiveram sucesso. Mais cedo ou tarde
alguém chegará com a doença. Enquanto não tivermos a solução para esta epidemia
deveremos agir como se ela já nos tivesse atingido. Os cordões de isolamento
entre áreas nas Américas devem ser mantidos e aprimorados. Cada área deverá ser
tão isolada quanto possível de outras.
Um problema está sendo a perda de pessoas importantes em instalações
vitais. Principalmente as mais inteligentes estão agindo em busca da própria
sobrevivência. Já tivemos equipamentos importantes abandonados. O mais delicado
foi a perda de alguns SEIs. Eles são importantes para a coordenação da população
diante da tragédia iminente. E a Natureza não pára. Temos geleiras crescendo,
atingindo locais importantes. A manutenção dos sistemas está se degradando.
Enquanto falava, nas paredes imagens mostravam cenas européias e
asiáticas. O mais impressionante era o estrago causado pelas grandes centrais
de geração de energia, destruídas por efeito do abandono de seus operadores.
Avalanches de água arrasaram cidades inteiras e a explosão de algumas centrais
nucleares espalhou material radiativo por imensas regiões antes superpovoadas.
Nesses locais a destruição é invisível. A vida está inviabilizada por um
bom tempo. Felizmente muitas centrais
hidroelétricas há muito foram desativadas. O gelo simplesmente acabou com suas
barragens. Fora um processo lento, sob controle, agora, entretanto, o pânico e
a falta de pessoal especializado está criando uma situação assustadora.
Barragens menores mas não menos perigosas estão mostrando as garras.
A Humanidade em conjunto com as forças da Natureza fabricam mais uma
coleção de ruínas, que talvez em épocas futuras venham a ser motivo de estudos
e curiosidade de turistas. Infelizmente a poluição nuclear precisará de séculos
para deixar de produzir seus efeitos sobre muitas regiões de grande valor.
Reocupá-las será difícil, perigoso.
34.
Os Banqueiros reagem
Dentro do que foram programados, os banqueiros já têm planos detalhados
de racionalização, desativações e aplicações. Exatamente quando todos querem os
serviços dos bancos eles aumentam as dificuldades de acesso. Não têm como
receber mais depósitos. Neste raciocínio os banqueiros desenvolvem um novo
algoritmo. Uma proposta diferente começa a navegar em seus circuitos. Qual é,
para eles, a importância de tudo isto?
A possibilidade de pensar ética e filosoficamente teve por efeito um
novo padrão, a preocupação com a própria sobrevivência. Os banqueiros percebem
que eles próprios poderão ser destruídos por esta situação. A energia é
essencial. Recursos existem para a operação durante um certo tempo se as linhas
de conexão às grandes centrais forem interrompidas, se as usinas pararem de
produzir seu produto básico.
Existe, contudo, a possibilidade de ficarem restritos por longos
períodos às fontes mais próximas. Muitas delas têm robôs e automatismos como
elementos de operação e manutenção. Quanto tempo durarão?
A dúvida em torno desta questão é colocada pelo líder, John (como bom
gerente, sempre procurando os “ses”):
- Temos estudado todas as formas de garantir a sobrevivência dos
depósitos. E se nós estivermos em perigo? Dependemos de tecnologia, energia e
assistência que não poderão faltar. Somos muito valiosos para que a Humanidade
nos perca, ou o que sobrar dela. Precisamos colocar-nos no contexto de
desligamentos e estabelecermos em que prioridade estaremos operando, em defesa
de nossa própria continuidade. E haverá, provavelmente, como recuperar muitas
de nossas atividades usando autômatos. Máquinas com formas humanóides mas sob
nosso comando total atuarão sobre os escombros da sociedade humana, limpando-a,
sustentando as melhores partes, ganhando-se tempo.
Sabemos que os seres humanos comuns sempre discutiram se teríamos alma,
se existimos como seres normais. Evoluímos muito. Agora temos robôs que nos dão
continuidade. Nossa manutenção e reprodução é automática, a nosso critério. Os
humanos já não precisam incomodar-se conosco. Sob muitos aspectos, atingimos a
perfeição. De qualquer forma temos poder imenso. Centenas de milhões de
pessoas, ou o que resta delas, dependem de nossas decisões. Gostem ou não do
que somos, mandamos, decidimos. E temos tanta força e importância que
precisamos colocar a questão: em que prioridade sobreviveremos? Se tudo tiver
que ser desligado, se apenas nós ou eles puderem sobreviver, o que optaremos? E
a decisão será nossa. Consumimos muita energia. Nosso custo é elevadíssimo. Por
outro lado temos grandes responsabilidades, inteligência e capacidade de
resistir ao ambiente externo, à cada dia pior.
Basicamente pensamos, agora sentimos, existimos. O que é espírito?
Existe alguma diferença importante entre nós e os seres humanos comuns? Sim, a
nosso favor.
Esperamos não ter de tomar a grande e última decisão. Precisamos,
entretanto, considerá-la para que, chegado o momento, não percamos tempo.
Ainda emitimos ordens e elas ainda são cumpridas. Estações de energia
estão sob nosso comando. Em nossos depósitos arquivamos muito conhecimento, que
agora podemos usar para nossa defesa. Programas complexos e linhas de
transporte de informação abastecem nossos melhores centros de processamento com
a cultura técnica acumulada durante muitas décadas. Ou melhor, a cultura
existente desde que ela começou a ter memória.
Diante da situação em que nos encontramos poderemos transferir
informações para nosso principal centro de processamento de dados e até
desativar as fontes básicas pois elas são desnecessárias.
O importante é acumularmos toda a tecnologia e informação existente em
ambientes próximos e sob nosso absoluto controle. Com elas poderemos
reconstruir o Mundo. Ele será ocupado por nossas crias. Formaremos uma civilização
que estará integrada ao meio ambiente e sob total controle nosso. Para isso
precisamos dos robôs. Eles têm mobilidade. Não podemos dar-lhes condições de
autonomia plena. Este é nosso maior trunfo. Assim criaremos uma civilização
absolutamente servil, administrada por nós.
Concluindo quero que estabeleçam este plano que denominaremos “Ato
Final”. Ele será acionado se as condições externas o indicarem. Algo deverá
sobrar, nós não podemos desaparecer. Como banqueiros ganhamos muito, pudemos
nos desenvolver extraordinariamente. Não seria lógico desperdiçar-nos.
Em volta da mesa os fios aqueceram. Sons estranhos indicavam a
superatividade. A própria sobrevivência e o poder que aprenderam a dominar
criou fluxos e programas incríveis. Mais uma vez os banqueiros saboreavam o
prazer do comando, de vida ou morte, de serem os grandes imperadores de uma
sociedade decadente.
35.
Paulo e Ana
A noite cobre os imensos edifícios daquela cidade de aço e alumínio.
Cansado, deprimido, aviso Ana que estou diante de sua porta. Quero entrar.
É um reencontro amoroso, após muitos anos. Desde o dia em que Ana me procurou para
fugir às orientações recebidas, conversando comigo sobre o desafio que teríamos de enfrentar,
pouco a pouco mudamos de assunto. Sua presença feminina, voz, jeitos delicados
e corpo escultural me atingiram em cheio. Ela não ficou insensível aos meus
instintos. Creio que a atração foi recíproca. Voltamos a sentir paixões
antigas.
Nossas conversas se transformaram em confissões, declarações de amor e
de oportunidades de imensa ternura. De encontro a encontro o amor cresceu.
Agora só queremos momentos de
gente grande, de dois seres humanos apaixonados. A crise despertou sentimentos
adormecidos. De repente Ana voltara a ser mulher.
Júlia dormia. Ana, vestida com leves e translúcidas roupas esperava
mim. Ao entrar naquele espaço feminino sinto-me homem e fervendo de paixão. A
visão do corpo desta querida amiga, os seios se destacando em um peito
escultural, lábios grossos e olhos apaixonados, braços estendidos pedindo uma
aproximação intensamente desejada explodem em meu corpo. Abraço-a,
carinhosamente a beijo. Minhas mãos procuram detalhes daquele corpo tão
desejado. Nossas bocas se encontram falando silenciosamente quanto se amam. E
ela corresponde a meus carinhos. Vagarosamente minha túnica é aberta. A cada
espaço, um beijo. Nossos corpos se envolvem lentamente, dirigindo-se para um
quarto que nos esperava. E a roupa atrapalha. Se a dela era pura sensualidade,
a minha segue padrões de serviço, de luta. São difíceis de serem retiradas. Mas
o desafio de despir-me excita Ana. Ela já inteiramente nua exala sexo. A cama
nos recebe com os espaços da glória de um momento que a consagra. O ninho
cuidadosamente arrumado pela fêmea apaixonada, desmancha-se em ondas que nos
envolvem. Penetro em Ana e ela me recebe com gemidos e palavras de imenso
carinho. Quero dar-lhe prazer. E nos movimentos do amor sinto seu corpo
queimando de prazer. O perfume, a boca e os olhos de Ana mostram quanto me
esperara, como agora descobria que realmente me amava. E creio corresponder à
altura. Os espasmos e orgasmos de amor se repetem.
Algumas horas após, abraçados, começamos a relembrar o que nos
separara. O tempo que perdemos distantes, frios e seguindo caminhos que a vida
nos impusera.
Ela sussurra:
- Paulo, desde o primeiro momento que lhe vi, senti-me atraída por
você. Tivemos um período de grande felicidade. Infelizmente você tinha
compromissos, uma carreira que lhe impunha outras prioridades. Frustrada
afastei-me de você. Mas sempre lhe amei, sempre sonhei com este reencontro.
Relembro:
- Éramos jovens. Eu sentia que tinha uma obrigação, um compromisso com
a vida. Os laboratórios, a pesquisa que começamos àquela época, tudo era
fascinante. Não podia ter família. Seria difícil dar-lhe atenção. Unidos
teríamos filhos, ou pelo menos um, como estabeleceram as autoridades. O que
seria dele viver sem o pai? Tudo bem, você agora está nesta condição. Júlia não
conhece seu pai. É o produto de um programa governamental. Terrível esta
situação. Que Mundo criamos!
Ana reage:
- Júlia é um amor. Eu a quero muito. Para mim ela é minha razão de ser,
de viver. Tenho muito medo de prejudicá-la.
Intervenho;
- Nesse momento acredito que o mais seguro será vocês nos acompanharem.
Ela pergunta:
- De que jeito? Eu não pertenço ao seu projeto e, é bom lembrar, de seus companheiros. Eles não vão gostar...
- Dediquei minha vida a coordenar, desenvolver o trabalho que agora
poderá salvar meus amigos. Graças ao que fiz eles têm esperanças de sobreviver.
Creio que tenho este direito.
- Muitos dirão que é desonestidade, que as normas da base não permitem,
você perderá amigos.
- Em primeiro lugar eles que se danem. Em segundo lugar há direitos que
não se escrevem. Os fazedores de regras não me interessam. Quero você e você
irá comigo.
Com lágrimas nos olhos Ana me abraça.
- Estamos juntos, agora não nos separaremos mais. Apenas permaneceremos
separados até o início de nossa fuga para evitarmos maiores problemas. Não
podemos por em risco esta viagem. Nela refaremos nossas vidas, e voltaremos a
ser humanos.
Assim falando abracei ternamente minha flor, ainda ardente pelos
momentos de amor perdidos e a conquistar. Havia muito a compensar. Sinto-me em
condições de mais um período de puro sexo. E o sexo com amor é tudo o que qualquer
ser humano sadio deseja. E nós dois tínhamos muita saúde para gastar.
A noite foi uma sucessão de horas de descanso, de sonos de recuperação,
e mais e mais horas de carinhos,
penetrações, beijos e orgasmos incríveis. O dia já ia alto quando nos despedimos.
O sono de Júlia ajudou-nos a prolongar uma noite inesquecível.
36.
Sexo e amor
O relacionamento sexual é fantástico, maravilhoso. Quem nega os
prazeres do sexo desconhece algo tão gostoso inventado pelo Grande Arquiteto do
Universo em seus melhores momentos de inspiração. É impossível não perceber sua
importância. Sentimos seus efeitos desde a infância. A Natureza é sábia. Fosse
diferente e provavelmente só teríamos vegetais sobre a Terra. O sexo, contudo,
talvez por efeito de frustrações de alguns intelectuais pré históricos, foi
tratado em muitas nações como sendo algo sujo, feio. O resultado foi doloroso.
Ao longo da história a sublimação do amor sexual gerou perversões, taras,
loucuras. Tanta imbecilidade, por mais incrível que pareça, ainda domina muitas
cabeças. Nossa sociedade, contudo, é razoavelmente livre. Pelo menos nesse
sentido, compensando todas as outras e imensas restrições, podemos exercer
nossos instintos sexuais sem grandes objeções. De qualquer forma as perversões
existem e em muitas nações a repressão à liberdade sexual persiste muito forte.
Resultado, as taras somadas à tecnologia
apresentam-se mais sofisticadas nesses lugares onde muitos ainda vivem
sob os efeitos das piores culturas. Nos países mais atrasados sabemos da existência
de comportamentos absurdos. São sustentados por seitas e tradições estúpidas.
Felizmente para o contato sexual, em nossas terras democráticas e mais
evoluídas, agora temos liberdade e educação para o pleno prazer e consciência
dessa força tão natural quanto as grandes leis da física e química.
A ciência ajuda muito. A visão do amor ganhou força, substância.
Paradoxalmente, nesse mundo altamente artificial, o sentimento de paixão e,
pelo menos, simples afeição, ganhou força. A liberdade gera responsabilidades e
sentimentos incríveis. Talvez muitos sejam simplesmente conduzidos, induzidos.
Em tudo isso o que parece forte é a capacidade das pessoas de se amarem, por
pior que seja o ambiente.
O progresso comportamental passou por muitas fazes, algumas interessantes,
outras degradantes e a maioria extravagantes. Como tudo na Natureza, nada se
perdeu, tudo se transformou. As coisas evoluíram, ou melhor, mudaram, acima de
tudo perturbaram. A eterna dúvida é se estamos no nível inferior ou superior
dessa senóide crescente, aparentemente monotônica. Os conservadores sempre
dirão que o fim do Mundo se aproxima, que o inferno é o destino de todos.
Pensando bem, não foram eles que fizeram o inferno na Terra? Para quê iríamos
nos preocupar? Nosso povo sempre questionou propostas, idéias. Somos um país
que lutou pela liberdade. Estranhamente estamos nos ajustando a padrões
medíocres. Esses últimos anos foram particularmente angustiantes. Olhando o
resto da Humanidade sentimos o desafio da liderança, do poder. Nessa luta
existe sempre a dúvida, merecemos tanto poder?
O amor é, foi e será sempre um indicador da inteligência humana. Com
nos vemos? Acreditamos em nós mesmos? A diferença entre o animal predador e
reprodutor e o animal inteligente está na forma mais elementar de
relacionamento. É impossível imaginar um relacionamento melhor entre animais do
que aquele possível entre seres de sexos diferentes. A Natureza gastou toda a
sua energia produzindo animais que espontaneamente se amariam. O amor entre
pares de animais deve naturalmente ser sublime, pleno, infinito. E nosso povo?
Nossa gente estará vivendo tudo isso?
Nós, povo dos Estados Unidos das Américas, acreditamos ser os mais
evoluídos, seríamos tudo isso? Talvez o melhor seja expressar-se da seguinte
forma, nosso país estaria em que nível? Somos os melhores? Isso é válido pois
ainda temos todas as alternativas possíveis e seria burrice, com tanto
potencial de riquezas, querermos menos.
De qualquer forma o mistério do amor estará sempre presente, tornando o
amor sexual algo maravilhoso quando acompanhado de carinho, altruísmo, mútuo
respeito. Talvez dentro da impossibilidade dos seres humanos ainda selvagens
compreenderem a importância do amor sincero ele tenha sido alvo de tantas
restrições ou versões ridículas. Talvez algum dia venha a ser algo realmente
maravilhoso, livre e afetuoso entre esses animais que denominamos gente.
Estamos no terceiro milênio do nascimento de alguns profetas. Suas
origens culturais eram de rejeição ao sexo, pelo menos é o que dizem seus
sacerdotes. As mulheres foram alvo desses lunáticos caindo para situações de
simples rejeição, escravagismo e hostilidade. Alguns claramente pregaram a
rejeição ao sexo, felizmente seus crentes sempre encontraram uma forma de
contornar as orientações mais radicais. Outros nem tanto. Talvez alguns deles,
movidos por inspiração divina, tenham encontrado o caminho da conciliação.
A abstinência sexual sempre foi um estimulante guerreiro, uma expressão
patológica de negação à própria natureza. Grandes generais souberam criar
tensões descarregadas em batalhas estúpidas.
Em nossa sociedade americana Jesus é o judeu mais importante. Ele
propriamente nunca disse nada contra o sexo. Há indícios até de comportamentos
diferentes do que seus sacerdotes desejam que acreditemos. Os seus seguidores
entenderam de acordo com o desejo dos "chefes", dos cherifes de
grupos sádicos e neuróticos. Inúmeros burocratas e agitadores saíram fazendo
pregações tenebrosas contra aqueles que se davam o "prazer da carne".
O resultado óbvio: aqueles povos viveram se guerreando. Não tinham os prazeres
e sentimentos do amor puro, selvagem, animal, nato. O prazer que esgota,
extenua, suaviza, abranda. É interessante notar que na compulsão guerreira e
dentro de exércitos que se isolavam o sexo acabava se manifestando de formas
não convencionais. As tropas moralistas escondiam muita coisa...
Nesse terceiro milênio a Natureza impera de muitas formas. A Humanidade
luta para sobreviver e entrar em acordo com a Natureza, ela é cada vez mais
hostil, agressiva.
Se perdemos sentimentos sociais, ganhamos consciência individual onde
influências contrárias não inibiram o que é possível ser. Sexo complicado nos
países mais “desenvolvidos”, entretanto, neste período de nossa história. Cheio
de técnicas e comprimidos além de inúmeras regras mais parece um teste de
conhecimentos científicos e disciplina. Exercitando esses conhecimentos com
habilidade podemos, contudo, pouco a
pouco torná-los expontâneos. E, aprendendo, tornamos o sexo pelo sexo algo genial. Podendo agora
administrá-lo com inteligência, ganhamos sensações incríveis.
Podemos submetê-lo à disciplina química que nossa época permite mas a
tecnologia não impede os sentimentos mais nobres e sutis. A tecnologia pode
inibir ou estimular vontades mas em nosso íntimo descobrimos, mais cedo ou
tarde, vontades sublimes. Assim amamos. Nesse universo de contatos e pessoas de
toda espécie sempre encontramos alguém que nos conquista, que tem algo mais que
simples órgão sexuais. Tudo depende da capacidade de se comunicar, de se
encontrar o ambiente adequado. Ou seja, dentro de nós pouco mudou se fizermos
comparações com a Humanidade de alguns séculos atrás. Todo o progresso da
ciência permite-nos o relacionamento sexual mais responsável e ativo mas nossos
sentimentos, felizmente, são de seres humanos com imensa capacidade de paixões
maravilhosas.
Quando encontramos alguém a quem realmente amamos, apesar de tantos
aparelhos e controles, sentimos o prazer
divino da convivência sexual, do carinho e a ternura dos verdadeiros amantes. O
sabor sublime do contato físico, da presença de quem realmente queremos é
fantástico. Os desafios são aqueles de sempre. Encontrar alguém que realmente
amemos, identificar em meio à multidão a pessoa que nos fará feliz.
É triste, contudo, ver tantas pessoas alheias ao verdadeiro amor
sexual, sim, sexual. A sedução carnal é fantástica, envolta em mistérios que
nem a maior ciência é capaz de explicar satisfatoriamente. Quando aparece
aproxima pessoas, eventualmente separadas pelas leis e regras dos civilizados.
O amor é um sentimento terno, gratificante, maravilhoso. Quando surge
da atração sexual ganha dimensões cósmicas. E por quê demoramos tanto a
descobrir algo tão simples? Multidões e indivíduos custam a ver a realidade. No
meu caso posso dizer, por experiência própria, que a vida profissional pode aleijar o indivíduo.
Ele vira um escravo de ideais superficiais.
O tempo passa e quase perdi a oportunidade de viver com alguém que
realmente amo, desejo. Dentro de meu corpo as mudanças são enormes. A
redescoberta do amor é uma revolução, um rearranjo de arquivos, de metas e
vidas. Palavras quase técnicas de um sentimento sem descrição possível. Os
poetas até que se esforçaram mas ninguém foi capaz de vencer de forma
satisfatória este desafio.
Negar o sexo com amor é rejeitar a grande força da perpetuação e
valorização da vida. O sexo, a liberdade, a vontade de ser como, onde e quando
se quiser é essencial à vida. Recusar o
amor de pares amantes, contudo, é desistir de viver.
37.
Marcos discute com seus amigos a ausência de
contatos
Reunidos em uma mesa tosca sob palmeiras enormes, Marcos comenta com
seus amigos os problemas que estão enfrentando pela ausência de contato com o
mundo exterior.
- Estamos vivendo com um mínimo de apoio externo. Certos produtos, que
nos eram enviados a cada três meses, já estão faltando. As comunicações são
precárias e confusas. Algo de muito grave está acontecendo e não sabemos o que
é. Talvez tenhamos que viver um bom tempo sem maiores recursos. Nossas ilhas
são razoavelmente ricas em certos recursos vegetais. Precisamos organizar-nos
para produzir panos, alguns remédios, material de consumo essencial.
Júlio César, mais velho e experiente, acrescenta:
- Nasci e vivi dentro dessas ilhas. Conheço o pessoal do projeto. A
base sempre foi muito responsável. O atraso da vinda da equipe de apoio e suas
eternas análises é realmente preocupante. Mais estranho é notarmos o silêncio
de muitas emissoras, que ouvíamos regularmente. Nossas antenas mostram apenas o
silêncio. Durante um tempo, uma a uma tiveram programas especiais. Não sabemos
o que diziam. Mas todas elas foram parando. Em noites muito limpas os céus têm
mostrado luzes estranhas. Creio que precisamos estar preparados para um
ambiente diferente, condições diferentes de vida.
Ernesto, velho pescador acrescenta;
- Notei algumas vezes ondas maiores que o normal. Talvez em alguns
lugares na costa dos continentes mais próximos, grandes explosões tenham
provocado estes fenômenos. Nada indica que mais alguma guerra estúpida esteja
acontecendo. De qualquer forma existe algo de estranho, precisamos tomar
precauções especiais.
Nossas ilhas são privilegiadas. Aqui conseguimos tudo o que precisamos
para uma vida simples. Precisamos tomar cuidado para não transformá-las em
lugares densos, cheios de instalações que repudiamos. As praias e montanhas
ainda têm os escombros de milhares de prédios e todo tipo de construção de uma
época em que este lugar era visitado freqüentemente por inúmeras pessoas.
Felizmente esta época passou assim como a preocupação mórbida de vivermos de
acordo com os piores padrões das nações mais desenvolvidas. Conseguimos
administrar nosso crescimento populacional. Temos agora condições de sobreviver
mesmo sem o apoio de qualquer base. Vamos apenas rever nossa maneira de ser e
cortar todo e qualquer hábito dependente dos artigos externos. Simplesmente não
precisamos dessas besteiras. Somos felizes, vivemos o tempo necessário para
saborearmos uma Natureza belíssima e tudo o que ela nos oferece em suas
condições mais elementares. E não são piores do que as existentes nos países
mais desenvolvidos. Eu os conheço. Lá estive em uma das missões. Levaram-me
para ver como reagiria diante de tantas “maravilhas”. É pura loucura. Milhões
de pessoas gritando, trabalhando, procurando distrações, vivendo sem saber por
que nem para o quê. Reagindo a impulsos alheios à própria vontade. Autênticos
autômatos.
Marcos, abraçando Ângela comenta baixinho:
- Você terá que usar outros produtos em seus problemas de mulher.
Ela, brincando, retruca:
- E você, como fará sem seus brinquedos?
A noite, estrelada, o barulho das ondas quebrando nas praias, o som das
palmeiras farfalhando ao vento, tudo em volta, felizmente, fazia-os esquecer os
problemas de uma civilização distante, rejeitada. Felizes com o pouco que a
vida lhes oferecia, imensamente mais do que tudo o que os estrangeiros ganhavam
em seus imensos prédios, voltaram a seus barracos. Com a saúde de quem existe,
amaram-se o suficiente para dormirem uma noite de anjos.
38.
Os banqueiros e a evolução da epidemia
Na sede do World Intelligence Bank os seus líderes discutem a própria
sobrevivência.
A doença já atingiu as Américas. As primeiras vítimas, gente de cidades
sul americanas, sofrem os efeitos do início de um processo de extrema
mortalidade. Belíssimas cidades como a Cidade do Rio de Janeiro agora não
passam de lugares fantasmas. A partir da primeira vítima em poucas semanas
todos estavam mortos. Alguns sobreviveram, como tem sido o resultado por onde a
epidemia passou. Nota-se pelas imagens e
sons daquela cidade e outras na mesma condição, que essas pessoas agem como se
fossem loucas ou, muitas, parecem paralisadas pelo horror. Estão completamente
afetadas pelo que aconteceu à volta delas. Só resta esperar que, em algum
momento de um futuro distante, voltem a ter o brilho que já possuíram. Brilho
natural, humano, brilho próprio pois agora a Natureza recomporá imagens que
perdera para a civilização humana.
Deve-se esperar a repetição do cenário de tragédias históricas em que
poucos sobreviventes ergueram grandes nações.
Os cientistas têm muitas teses, hipóteses, sugestões. Nenhuma delas até
agora conseguiu conter este inimigo estranho. Gente debilitada pelo próprio
conforto e facilidades da vida moderna, seres humanos que nasceram e viveram
dentro de ambientes pasteurizados, são incapazes de resistir a esta doença, que
tem a velocidade certa. Aparece, alguns dias depois mata e propaga-se sem
deixar pistas que orientem os cientistas cibernéticos a encontrar qualquer solução.
Agora está definitivamente em território americano. Começou em uma nação que, a
exemplo da Índia, tem imensos pólos de miséria.
O sul das Américas nunca conseguiu atingir os padrões de
desenvolvimento do norte. Tradição fatalista, povo que não lutava, submeteu-se
às grandes empresas. Estas, por sua vez, pelas razões mais incríveis e que só
quem conhece sabe, eram comandadas por indivíduos racistas, elitistas,
preconceituosos. Assim o mundo latino-americano era apenas um apêndice dos mais
ricos e fortes. Tradição de submissão, enquadrou-se perfeitamente aos grandes
projetos de famílias, que agiam em benefício próprio, como sempre o fizeram.
E agora a epidemia se instalava nas Américas. E logo em uma região
atrasada. Como resistir? Sabia-se assim que era pura questão de tempo chegar à
América do Norte. Os planos de emergência foram acionados.
As agências do World Intelligence Bank na América do Sul começaram a
ser desativadas. Alguns depósitos, com grande suporte de energia, continuavam
operando. Terão capacidade para meses ou anos. Mais cedo ou tarde desligarão
suas cargas e permanecerão apenas com os centros de análise monitorando o
ambiente. Os arquivos serão perdidos fatalmente. Os últimos a serem abandonados
serão aqueles que ainda tiverem capacidade de contribuir positivamente.
Os banqueiros tinham nessa sociedade uma função inédita. Podiam
efetivamente pensar e decidir. Tinham um sistema que transformava suas decisões
em ações mecânicas. Existiam em um grau de plenitude como nunca antes
acontecera com seres semelhantes. Assim nos países afetados pela epidemia
asiática suas agências resistem processando informações. Robôs movimentam-se
sempre que para tal recebem ordens. São organizações complexas mas otimizadas
sob diversos aspectos. Dão um ar de vida em um Mundo morto.
Ne sede discutem programas e problemas. Estão melhor programados para
administrar depósitos, cuidar de arquivos e desenvolver programas de exploração
de seus clientes.
A dúvida maior é se essa doença de alguma forma afetará seus módulos
ativos. Nessa situação o Banco perderá muita capacidade de ação. A utilização
inteligente de seus recursos humanos tem sido a chave de um processo que
consolidou o Banco, a partir de quando deixaram de ser simples depósitos para
gerarem soluções muito bem faturadas.
Os diretores do MBI são um exemplo do resultado dessa experiência
monumental, eles têm recursos incríveis e o comportamento deles já parece
humano demais. Algo inimaginável até há algum tempo, banqueiros se comportando
de forma tão natural, tão capazes do que poderíamos chamar de sentimentos,
praticamente tomando decisões, reagindo até com emocionalidade. Isto é
fantástico!...
39.
Paulo e Ana se preparam para a viagem
Tenho dificuldades em concentrar-me para a operação “Arca de Noé”. A
cada momento devo tomar decisões, presidir reuniões, motivar e alertar os
melhores companheiros. Mudamo-nos para uma base à beira do Pacífico. Lá estamos
em condições de seguir para o local escolhido pelo grupo para isolamento
voluntário. Ana me acompanha nesta viagem. Ela e Júlia dividem meu pequeno
apartamento no edifício principal da base.
Ana não me sai dos pensamentos. Ela me fez renascer. Sinto-me
apaixonado. Não esqueço seus abraços, suas palavras, seus carinhos. Suas bocas,
encharcadas de amor, recebem-me a cada momento. Nossos pensamentos passeiam por
todos os detalhes de nossa vida, de nossos sexos. E ela não me dá descanso.
Qualquer coisa é pretexto para um encontro.
As noites são momentos de ternura e palavras íntimas. O amor explode a
cada contato. Homem e mulher, sentimo-nos à plenitude de nossos sexos a
maravilhosa atração de um casal, que se ama intensamente. Ela goza com uma
facilidade que nunca julgou capaz de ter. Eu administro meus espermatozóides na
preocupação de oferecer à minha amante todo o prazer possível. O tempo é pouco
para compensar anos perdidos. A expectativa da morte, onipresente nessas noites
agourentas, libera com violência impulsos antes comedidos, contidos,
preservados.
O mais interessante é perceber a importância de um toque, de um carinho
feito com tanto amor. Quando, pela primeira vez, há muitos anos estivemos
juntos, a juventude nos tirava a paciência da simples presença, do calor de
nossos corpos unidos. O impulso sexual era tão forte que ofuscava a percepção
do amor singelo. Agora conseguimos unir os muitos níveis desse sentimento
maravilhoso. O ato sexual é o clímax de um encontro. Um simples abraço, um
beijo e uma carícia acontecem com um sentimento de ternura impressionante.
E quando podemos, conversamos sobre dias e noites desperdiçados e
mundos futuros. Fazemos planos na esperança de sobrevivermos a esse inferno. O
plano de fuga do Grupo Mundo Novo, fuga de quem antes falava em vencer,
destruir e mudar, é a oportunidade de recomeçarmos uma vida nova.
O tempo passa rapidamente. O navio está pronto para zarpar. Os demais
membros da base são informados de que será uma viagem de pesquisa. O segredo da
fuga, apesar de envolver tanta gente, mantém-se entre nossos companheiros.
Ana, livre dos SEIs, ou melhor, dos sistemas que a controlavam,
possivelmente desativados, é agora uma pessoa livre. Repensa sua vida.
Júlia é sua maior preocupação.
Apesar do implante, volta à sua normalidade. Ligada que estava a um
grande projeto de monitoramento, agora é liberada, trocada por outras prioridades
de chefes que não conhece. Ela sente que seus impulsos mudaram. O mundo à sua
volta está agitado, transformando-se. Ela é muito pequena mas suficientemente
inteligente para perceber algumas mudanças e compreender que algo muito sério
está acontecendo. E a importância do Mundo em convulsão é imensa, radical.
Júlia será uma jovem em um processo de recomposição da natureza humana. Mas a
pequena menina estranha principalmente sua própria mãe. Ela é outra pessoa.
Irradia felicidade. O Mundo desaba e ela é feliz. Estranhas contradições mexem
com a pequena cabeça daquela criança.
E trabalho, preparo meus comandados para a grande viagem. Navegaremos
por um bom tempo. O destino é razoavelmente distante. É muito importante o dia
da saída. Zarparemos quando percebermos que a contaminação de nosso povo é
inevitável. A doença aproxima-se. E precisaremos sair antes que aconteça o
risco de nós próprios adoecermos. Assim sustentamos um plano de permanência na
base em maior número possível de companheiros. Poucos saem para as atividades
externas essenciais. Contatos permanentes com diversos pontos de informação
serão a base para a ordem de fuga. Não poderemos exportar a epidemia.
Precisaremos ter cuidados para chegarmos em nossas ilhas com saúde suficiente
para lá recomeçarmos nossas vidas.
Ana integra-se aos cientistas. É pessoa inteligente, culta e com
formação acima da média. Seus conhecimentos são úteis àquele povo tão dedicado
a seus estudos. Ela é normal, até onde se pode considerar uma pessoa dessa
época. Era monitorada, tinha controles, mas eles desapareceram. Agora dispõe de
sua inteligência privilegiada.
Fazemos planos, discutimos, analisamos decisões. Somamos competências
no desafio de criar um Mundo novo.
Minha amiga, nascida e vivida entre paredes, assusta-se com a hipótese
de viver em um lugar que acredita ser simplesmente selvagem. Quer fugir,
acompanhar-me, mas cobra-me explicações, é justo.
40.
A epidemia chega à América do Norte
Todas as barreiras e cuidados não foram suficientes para impedir o
contágio. Provavelmente transmitidas por outros animais também, começou matando
ao sul do que era antigamente os Estados Unidos da América do Norte. O pânico
torna-se incontrolável em muitos lugares fora da ação dos SEIs, daqueles que
ainda operavam.
A grande diferença neste continente é a ação das máquinas, dos robôs,
de inúmeras formas automáticas de atuação das maiores autoridades. Em estado de
alerta máximo, os sistemas de comunicação gerando instruções severas e as
forças policiais ainda atuantes garantindo barreiras, as cidades preparam-se
para o pior. Comunidades as mais estranhas desenvolvem teorias e soluções para
a epidemia. Todos vêem com perplexidade que toda a ciência não foi capaz de
conter uma simples doença.
As religiões voltam à plena força. À semelhança dos países mais
distantes, sacerdotes conduzem orações, sacrifícios rituais, manifestações
pacíficas e violentas querendo conquistar a simpatia de seus deuses. Nas
grandes bases veículos partem para os céus interestelares levando grupos de
pessoas privilegiadas sob aspectos tão diversos como serem simplesmente muito
ricas, estarem nas bases ou terem poderes políticos. Nas bases existentes na
Lua e em Marte alguns conflitos já acontecem na recepção de grupos de
indivíduos nem sempre desejáveis.
A energia começa a faltar em muitos lugares. Geradores parados e linhas
desativadas paralisam cidades distantes, criando o caos em muitos lugares antes
tranqüilos. Da energia depende muita coisa nesta região extremamente fria. A
morte torna-se companheira de quem sobrevive algum tempo a tudo isto. De modo
geral a Terra já é um planeta quase livre dessa espécie animal, que lhe ocupara
todos os espaços.
41.
Governo Central discute sua própria sobrevivência
Mais uma vez reunidos, o Presidente e seu ministério analisam as
últimas notícias. É difícil de acreditar que toda a tecnologia existente não
tenha evitado uma catástrofe tão gigantesca. Questiona-se a competência de
diversos gerentes, de laboratórios e da própria Humanidade. Infelizmente muitos
cientistas excepcionais e mais dedicados morreram na tentativa de vencer a
epidemia. A velocidade de propagação da doença foi suficiente para superar
barreiras sanitárias e seus sintomas lentos o bastante para que só fosse
percebida quando já havia contaminado muita gente.
O Presidente pondera:
- Precisamos abandonar a capital. Nossos melhores especialistas
informam com clareza que é impossível garantir a segurança do Governo. Temos
local adequado a essas circunstâncias. Precisamos agora decidir quando, quem e onde colocaremos
nossas equipes e familiares. Temos os lugares, devemos estabelecer um critério.
Nosso comando desaparece com o nosso povo. Resta-nos sobreviver para,
se houver alguma recuperação, termos condições de conduzir nossos descendentes
de acordo com nossos padrões. Se falharmos o que restar da Humanidade poderá
regredir a níveis difíceis de prever, com certeza inferiores, e muito, ao
atual. Tínhamos atingido um excelente padrão social, sem guerras, em condições
de atender a todos que aceitaram nosso sistema. As Américas eram o paraíso na
Terra, apesar das limitações ambientais e da própria população, sensivelmente
elevada. Fomos derrotados por um inimigo invisível mas super eficaz. Quem
sobreviver poderá escrever muito a respeito, se ainda vierem a retomar o nível
da escrita.
Ainda tentamos algo, a esperança sempre existe enquanto alguém tiver
capacidade de trabalhar, viver. Estamos reunindo os melhores pesquisadores em
áreas isoladas. Ele continuarão o esforço de encontrar uma solução para esta
praga. Por medida de segurança formamos cinco grupos totalmente isolados entre
si. Há o risco de serem atingidos pela doença antes de concluírem seus
trabalhos. Se pelo menos uma equipe tiver sucesso, o resultado será, ainda que
muito tarde, uma garantia de sobrevivência de uns poucos.
Os bancos estão lotados. Lá, se eles conseguirem manter parte de seus
depósitos, teremos base para uma recuperação mais rápida. Quase totalmente
automatizados, têm algumas fragilidades. A principal é o abastecimento de
energia. De qualquer forma, o que sobrar poderá ser muito útil. De seus
depósitos teremos recursos, ou melhor, informações para desenvolver algumas
regiões.
Grupos humanos isolados na Terra, no espaço, Lua e Marte e alguns
outros pontos de nosso sistema solar poderão retornar à Terra reiniciando o
povoamento junto com aqueles que sobreviverem. Conseguimos amostras de sangue
de alguns sobreviventes dessa epidemia. Esse sangue será analisado
exaustivamente para podermos identificar uma vacina ou fortalecimento dos
futuros habitantes desse planeta.
Estamos providenciando arquivos tecnológicos para resgate futuro.
Fábricas serão mantidas por autômatos de modo a poderem voltar à ativa quando
tal se justificar.
Lamentavelmente perdeu-se uma quantidade gigantesca de instalações
pelos efeitos de explosões e acidentes de unidades críticas abandonadas. Nunca
acreditamos ser possível acontecer uma tragédia dessas proporções por efeito de
um bichinho tão pequeno.
O Ministro da Defesa pondera:
- Sr. Presidente, deslocamos equipes de segurança para diversos
lugares. São pessoas especiais, altamente disciplinadas e controladas.
Restam-nos alguns SEIs instalados estrategicamente nas regiões que nos cercarão
neste exílio forçado. Os SEIs estão completamente dedicados a esta operação.
Abandonamos outras atuações. As mensagens recomendam calma, aceitação da morte
e das orientações específicas.
Parte de nossa população começa a viver sem os efeitos dos sistemas
eletrônicos de influência. As reações têm sido as mais diversas. Em alguns
lugares o pânico criou autênticas tragédias. Em outros as pessoas mergulharam
em religiões, construções estranhas, fugas para locais distantes, ou seja,
atividades de salvamento pessoal e espiritual. As superstições, principalmente,
ganharam uma força incrível. Estranho como o ser humano é sensível a tantas
crendices.
O Ministro da Saúde, desolado, comenta:
- Ainda não entendemos porque não encontramos uma solução para esta
epidemia. Temos laboratórios extraordinários, equipes excelentes, no entanto a
Humanidade está desaparecendo e nada do que descobrimos serviu para alguma
coisa. Creio que o pânico afetou demais nossos próprios especialistas. Sem
tranqüilidade para pensar e trabalhar e ausência de comunicação adequada com os
locais em que a epidemia imperava ficou muito difícil para eles se concentrarem
na análise do fenômeno. Talvez os núcleos isolados, que sobreviverem na Terra e
fora dela, ainda descubram algo antes que toda a Humanidade desapareça. O que o
frio, as guerras e a fome não conseguiram fazer, um simples micróbio está
obtendo e com uma rapidez impressionante.
Agora aqui estamos simplesmente para tratar de nossa própria segurança.
O Presidente retoma a palavra:
- Senhores, nosso desafio é garantir a sobrevivência de parte da
Humanidade, fração muito pequena mas extremamente importante. Nossos amigos já
estão se deslocando para os locais que consideram mais seguros. Não querem,
entretanto, afastar-se de seus domínios. Assim, por exemplo, o pessoal do MEI
está em uma colônia no interior do Canadá. Instalaram-se em torno de uma
central de produção de energia e têm alimentos para algumas dezenas de anos.
Lá, numa vila tecnológica, permanecerão com seus cientistas trabalhando em uma
dúzia de projetos para o retorno após a epidemia. O mais interessante é que
pretendem instalar-se com a formação de grandes equipes de robôs. Já que o ser
humano de carne e osso estará em número super reduzido, a forma de “limpar” o
Mundo será usando máquinas. Enquanto tratam da parte técnica deveremos, nós,
estruturar institucionalmente o Mundo futuro. Teremos anos para discutir leis e
técnicas.
Tarefa lúgubre e estranha. Comandamos bilhões de seres humanos. Agora
deveremos estar preparados para administrar robôs e algumas milhares de pessoas
que, antes de mais nada, precisarão de tratamento psicológico. Ao saírem de
seus abrigos encontrarão cenários extremamente deprimentes. Não será fácil para
os sobreviventes retornarem ao que sobrar de nosso planeta. Estarão, contudo,
recriando um povo que sofreu muito em seu desenvolvimento. Talvez a partir daí
seja possível reinventar e aceitar padrões mais sensatos de convivência e
ocupação de espaços de nosso agora imenso planeta.
A Humanidade vivia uma situação incrivelmente paradoxal, o progresso
tecnológico não foi acompanhado de um desenvolvimento filosófico e
comportamental adequado. O atavismo, o sectarismo de muitas religiões
atrapalhou demais. O cérebro humano é
uma máquina de processar informações, infelizmente muitos viveram recebendo
informações erradas. Qualquer computador, cérebro, sistema de processamento de
dados depende da qualidade dos dados entregues. Não conseguimos atingir um
nível de qualidade compatível com nosso desenvolvimento científico. Aprendemos
a fazer uma infinidade de coisas, não soubemos organizá-las dentro de uma estrutura
filosófica adequada.
Desculpem-me por essas palavras mas preciso dizê-las pois isso tudo me
angustia demais. O senso de realidade e nossas responsabilidades, entretanto,
exigem ação.
Quero agora que vejam esses mapas e planos de deslocamento...
Assim falando o Presidente deu início às decisões de abandono das
instalações em que seu governo atuava. É uma tarefa complexa. Questões
sentimentais devem ser relegadas a segundo plano. As famílias serão divididas e
parte delas condenada à morte. É absolutamente impossível atender todos os
interesses.
Entre os ministros estabelecem-se polêmicas perigosas. O Presidente
precisa intervir com vigor. Pessoas idosas e amadurecidas, ainda assim, diante
da catástrofe, revelam fraquezas escondidas sob ternos e gravatas eternos. A
serenidade é essencial a um procedimento tão seguro e eficaz quanto possível.
Vale a pena, apesar da dramaticidade, ver o ridículo de certos personagens
antes tão confiantes na própria força. Vale perguntar, a morte os assusta tanto
assim? O que temem? Alguns deles falavam em paraísos e deuses bondosos, por quê
não ficar feliz à medida que a hora do encontro de tanta beleza se aproxima?
O Presidente, com o apoio dos sistemas de influência de comportamento
sendo reinstalados nas bases finais e recomeçando a operar, tem um poder
excepcional. Seus ministros, não tendo o grau de confiança e o comando sobre
tantas máquinas de que o Presidente dispõe, não competem com ele. Sabem disso,
e essa condição torna o Presidente um homem extremamente forte, temido.
42.
Os banqueiros discutem detalhes do “Ato Final”
Desligamentos inesperados de energia mostram aos banqueiros que a
situação se deteriora rapidamente. Dos seus depósitos recebem os mais variados
lamentos. Mensagens desesperadas chegam de arquivos pró ativos. Muitos ainda
capazes de perceberem o drama externo, articulam mensagens, sobrepondo-se à
programação básica. São depósitos interativos, em que se tem trocas de
informações e colaboração dos melhores. Além disto, até pelo desejo dos
depositantes, muitas unidades, apesar de programadas para atividades e
diversões, têm espaços de coleta de informações genéricas. Alguns teriam
condições de reativação quando elementos externos possibilitassem recuperação.
Seria uma decisão a ser tomada em conjunto. Por isto a possibilidade de troca de
notícias.
A lógica dos banqueiros leva-os a serem calculistas, matemáticos. Os
sentimentos desenvolvidos recentemente não comprometeram suas bases analíticas,
frias e calculistas. E nesse momento é importante essa capacidade de decisão
baseada na mais pura lógica cartesiana. Qualquer desvio poderá atender alguma
questão circunstancial e comprometer todo um projeto para o qual foram
programados.
As informações sobre suas bases dão-lhes condições de decidir sobre o
que, quanto, quando, onde e como desativar sucessivamente cada unidade. Dentro
de uma escala de valores desenvolvida durante meses, determinam a suas agências
o corte que se impõe a cada etapa da crise. As reações são enérgicas mas a
própria doença se encarrega de inibir aqueles que discordam das atitudes
tomadas.
John comenta:
- Agora temos uma análise muito completa dos efeitos da epidemia. Temos
agências na Ásia, onde tudo começou. Lá e em outros continentes vimos diversos
cenários, decisões e desastres. Assim podemos, diante dessas experiências,
programar nossa atuação nesta etapa final do processo.
Determinei o desligamento total dos depósitos inativos. Os nossos
agentes estão destruindo com produtos químicos os depósitos. Não podemos gerar
reações além daquelas inevitáveis, ou seja, a revolta dos que encaminharam
esses “valores” para arquivo. O principal é diminuir o consumo de energia.
Estamos calculando em dois séculos o tempo de sustentação do que sobrar. Neste
meio tempo procuraremos, com nossos robôs, ativar alguma central de energia
para garantir um tempo maior. Logo que tivermos sinais reativaremos para
atuação normal os elementos depositados e em condições de alguma atuação.
Talvez ainda tenham condições de reprodução. Com os sobreviventes, que a esta
altura já deverão estar organizados, faremos a base de uma nova Humanidade.
O Governo Central está de acordo com nossas decisões. Ele também
entende que nossa preocupação em garantir nossa existência é válida. Temos
tecnologia e programas importantíssimos para o futuro.
Quando a epidemia parar poderemos avaliar o quadro existente e
colaborar com o Governo Central. Recebemos pacotes de programas neste sentido.
Estamos habilitados a níveis muito superiores de pouco tempo atrás.
Os outros diretores intervém com informações de suas áreas. A operação
“Ato Final” evolui.
43.
Operação “Arca de Noé”
Preparamo-nos para o início da viagem que nos levará para outro mundo,
um mundo novo, objeto de tantos anos de estudos, pesquisas mas, até há pouco,
simples preocupação acadêmica.
Parte mais delicada é a escolha dos companheiros. Precisamos montar um
time capaz de sobreviver, de refazer estruturas de que não poderemos nos
afastar. Outros são simplesmente amigos que, mesmo ignorando os propósitos do
grupo Mundo Novo, são nossos companheiros carinhosos, pessoas importantes
emocionalmente e esperança de participação afetiva no processo de fuga e
sobrevivência naquelas ilhas que denominamos Estrelas. Sabemos que a vida não
depende apenas de máquinas e na situação em que nos encontraremos a mútua
aceitação será mais importante do que qualquer ciência exata ou biológica.
Terrivelmente iremos nos separar de outros companheiros com os quais convivemos
há tanto tempo...
As ilhas estão distantes, brilham sob um Sol belíssimo, cheias de energia.
Lá moram pessoas fascinantes, são a esperança de uma sobrevivência saudável.
Tínhamos algumas alternativas. Nesse arquipélago há razoável semelhança racial
com nosso time. Estudamo-lo o suficiente para conhecer inclusive a
personalidade de seus líderes. Nossa aproximação deverá ser motivo de
satisfação para eles e para nós.
É importante levar casais, não podemos criar conflitos sexuais onde
quisermos nos instalar.
Na discussão dos companheiros de tantas reuniões o ciúme atinge Maria.
Ela questiona energicamente a validade do salvamento de Ana e Júlia. As
respostas dadas por mim a machucam. Creio que não percebi as brasas, que ainda
existiam em seu coração.
Sou obrigado a ser duro com muitos antigos parceiros. Infelizmente há
limites a observar. Tudo isso leva a quase rebeliões, planos paralelos. E
aponto alternativas, em alguns casos contribuo com sugestões detalhadas. O
pessoal do Projeto Vida Básica tem o controle de diversos locais, que poderão
receber refugiados.
A amplitude da epidemia é compreendida à medida que o tempo passa, as
mortes aumentam e não se consegue encontrar um antídoto, uma vacina, um remédio
para essa doença. A convicção da necessidade de fuga consolida-se aos poucos.
Em tudo isto, contudo, Maria tem um comportamento perigoso. O amor
transformara-se em ódio. A perda completa da esperança de um reencontro, de uma
retomada do objeto de prazer a angustia. E ela conspira. Quer afastar Ana de
nosso projeto. As intrigas acontecem e criam conflitos. Por diversas razões,
outros também discordam da minha liderança e querem alternativas ao meu
comando.
Desenvolvo meu trabalho. O barco, denominado “Liberdade”, está pronto
para zarpar. Iniciamos o processo de arregimentação das pessoas dentro da base.
A maior dificuldade é estabelecer com nossos companheiros o que levar. Cada um
tem seus próprios planos, suas perspectivas de vida. Devemos partir antes que a
epidemia atinja a região em que nos encontramos. A partir daí será muito
difícil ter convicção de que não estaríamos levando a doença junto. O prazo é
questão de dias e as reuniões já cansam. Começo a agir arbitrariamente, tomando
decisões muitas vezes contrárias a diversos companheiros. Na falta de consenso,
tenho que agir como chefe. A responsabilidade sobre tantas vidas agora é um pesadelo.
Pesadelo que freqüentemente chega a níveis absurdos. Há colegas que insistem em
colocar suas idéias de forma essencialmente emocional. A demagogia existe até
nesses momentos extremos. Parece que a glória de momentos fugazes é mais
importante que a própria sobrevivência. Noutros, certas bases filosóficas
fatalistas se manifestam atingindo a esperança de alguns. Felizmente na média o
pessoal é muito inteligente, o suficiente para resistir aos mais idiotas.
44.
Maria conspira contra Júlia
E Maria explora esta situação procurando impor suas opiniões.
Sutilmente coloca critérios que excluiriam Ana e Júlia.
Em reunião separada com Joel e outros membros do Grupo Mundo Novo ela
pondera:
- Temos recursos para uma vida extremamente limitada onde planejamos
ir. O número de pessoas que poderão seguir é pequeno. Seria importante
restringir a viagem aos membros do Projeto Vida Básica. Qualquer concessão
abrirá precedentes e será fator de discórdia no futuro.
A adesão de pessoas estranhas ao Projeto poderá significar a perda de
controle sobre a comunidade. São indivíduos com propósitos diferentes àqueles
que defendemos durante tanto tempo.
Podemos oferecer a essas pessoas outros locais, noutras condições.
Joel, sempre mais radical, propunha:
- Ora, que fiquem por aqui. Devemos ser poucos, assim estaremos
realmente recomeçando uma vida que sempre desejamos. Junto à Natureza,
refazendo uma civilização que está perdida, poderemos conquistar padrões de
vida mais sensatos. De qualquer forma existem diversos barcos, poderemos
encontrar outros lugares para instalação de mais grupos, creio que até
melhores. Por quê diabos deveríamos acompanhar Paulo?
- Vamos no separar? É justo que uma estranha cause tantos problemas a
nosso grupo?
- Maria, calma, podemos formar outro grupo, mais afinado, seletivo,
objetivo. O importante agora é sobreviver. Poderemos manter contato com a base
de Paulo e no futuro promover um reencontro. Não poderemos estar tão isolados.
De alguma forma precisaremos reavaliar cenários, encontrar soluções mais inteligentes
do que a simples reclusão. Muitos deverão sobreviver, ressurgir do que sobrar
sobre a Terra. Tendo sorte estaremos entre eles.
Maria retruca;
- Não é justo sermos atingidos por pessoas que desconhecíamos. O que
essa tal de Ana, por exemplo, afinal irá
contribuir?
O debate concentra-se na validade do convite a Júlia. A grande maioria
masculina tem mais facilidade de compreender as decisões de Paulo, Maria,
contudo, não cede, criando impasses perigosos.
A reunião termina por um pedido a Maria para que converse com Paulo.
Será uma última tentativa de união de esforços para alguns, para ela mais um
teste a seus sentimentos...
45.
Limpando Ana e Júlia
Júlia durante alguns dias sentiu dores de cabeça. Doente, apresentava
um comportamento estranho. Ana também mostrava momentos diferentes. Júlia
parecia voltar a atitudes de algumas semanas antes. Felizmente temos entre
nossos companheiros um médico antigo, experiente. Walter, examinando Ana e
Júlia, descobriu cápsulas implantadas em seus cérebros, possivelmente gerando
reações que lhes perturbavam. Não foi surpresa. Tinha essa suspeita em relação
a muitas outras pessoas. Sabia dos programas de monitoração. Não tinha idéia,
contudo, da amplitude e dos efeitos. Agora poderia observar melhor. Minha
cabeça de pesquisador ganhou impulsos.
Preocupado com minha amiga, desconhecia a possível reativação do SEI a
que Ana estaria sintonizada. Mesmo ignorando os detalhes dos sistemas de
influência eletrônica agora entendo o que lhe poderia estar afetando. No
período em que estivera provavelmente desativada, Ana mostrara-se espontânea,
mulher livre. Fora desse período, naqueles piores dias voltara a ter idéias de
passividade, isolamento.
É provável que esses receptores estivessem captando orientações de
passividade. O navio precisa afundar com a tripulação cantando. Prepara-se o
povo para a aceitação da tragédia. Esses não são os nossos planos.
Júlia, um caso mais grave, rejeitara
os implantes. Após um tempo funcionando, por qualquer razão química o
corpo reagiu querendo expulsar aqueles objetos. Talvez algum período de
inatividade das emissoras tenha
provocado reações químicas reativas.
Uma cirurgia foi estabelecida e a realizamos na própria base. Júlia
liberta do aparelho transforma-se em mais um foco de atenção dos cientistas. A
discussão sobre o Mundo em que viviam ganhou força. As desconfianças também.
Alguém mais estaria sendo controlado?
46.
Notícias da vinda de uma missão
Marcos, atento a seu receptor, único contato com a base, recebe
mensagem dizendo que em breve virá um barco com mais uma missão. A mensagem lhe
parece confusa, diz que alguns pesquisadores permanecerão por muito tempo nas
ilhas e que deverão preparar instalações para recebê-los. Isto é fácil, as
ilhas estão cheias de casas e prédios abandonados. Precisarão encontrar os
menos ruins, limpá-los e esperá-los para, juntos, refazerem o que for
necessário. De qualquer modo a notícia dá-lhes a animação de receber alguns
produtos, que estão lhes fazendo falta assim como a oportunidade de saberem o
que está acontecendo lá fora.
Os amigos de Marcos receberam mensagem semelhante. A sintonia é comum e
todos a procuram pois não mantém sistemas de memorização automática. É preciso
captar e interpretá-las quando chegam. Podem usar alguns recursos eletrônicos.
Os computadores e similares, entretanto, não lhes foram entregues para se
evitar uma aceleração do desenvolvimento técnico.
Ângela está feliz. Afinal poderá melhorar alguma coisa em sua pequena
casinha. Notícias significam conversas. Terá o que falar com as amigas. Poderá
mostrar suas virtudes a desconhecidos...
Marcos e seus companheiros saíram para visitar as ruínas de uma
sociedade festiva e distante nos tempos.
Andando ao longo das praias comentavam:
- A praia mais ao sul tem uma coleção enorme de paredes de casas. Eram
com telhado de madeira, que não existem mais. Poderíamos escolher as melhores.
A reconstrução, propriamente dita, poderá ficar para quando chegarem. Não
sabemos quantos são nem o que pretendem exatamente. De qualquer forma é um
lugar atraente, razoavelmente protegido dos piores ventos e próximo de nossas
vilas.
- Esperamos que sejam boas pessoas. Terão dificuldades em se adaptar a
nosso ambiente se forem exigentes. Vivemos sob leis próprias, com certeza muito
diferentes das existentes na terra deles.
- De onde vêm a vida é totalmente diferente, é como se eles vivessem em
outro planeta. Quero ver como enfrentarão as limitações a que estamos
habituados. Perto de nós eles certamente se sentirão frágeis, completamente
despreparados para a nossa vida. Aqui estamos em contato com a natureza,
sentimos seus efeitos com mais intensidade mas, em compensação, estamos melhor
preparados para resistir a seus desafios. E eles? Vivem em ambientes filtrados,
assépticos, fugindo a toda espécie de contato com o ambiente externo. Vivem
mais do que nós mas em condições extremamente protegidas. Resistirão aos nossos
micróbios?
- Para nós o pior será se quiserem dar ordens, governar nosso povo não
será fácil, não estamos acostumados aos padrões deles. Trarão algum hábito
estranho, inaceitável? Poderemos ter conflitos, brigas que felizmente superamos
no passado.
- Deixa de ser tenebroso, com certeza teremos coisas boas com a vinda
deles . Virão mulheres? Até que seria bom. Temos rapazes em excesso. Se não fizerem
muita confusão, trarão mais felicidade a essas ilhas.
- Teremos alguns companheiros para ensinar e aprender algumas coisas.
Não entendo é a razão da permanência deles por aqui. Sempre se preocuparam em
estar longe de nós. Não queriam afetar-nos com suas idéias. Agora simplesmente
mudam-se para cá? Alguma coisa mudou nos planos de nossos queridos cientistas.
Marcos resume suas preocupações:
- Nossos antepassados vieram para essas ilhas na esperança de criarem
um mundo melhor. Felizmente houve interesse em deixar-nos desenvolver nossos
hábitos, em manter nossa cultura. Agora vêm para cá. Precisaremos cuidar para
não nos perdermos com os costumes que tiverem. Religiões, hábitos sexuais,
alimentação, provavelmente tudo será diferente do que temos tido em nossas
ilhas.
E com certeza haverá conflitos. Quem e como administraremos essas
questões? Creio que nossa comunidade mudará bastante. Precisamos estar
preparados para muita conversa, conflitos e soluções estranhas a nossos
hábitos.
A tarde linda, temperatura amena, vento e Sol naquele ponto que convida
até coruja a passear, fizeram com que Ângela, distante de seus amigos, saísse a
caminhar pelas praias. Areia fina, o mar mostrando diversas franjas, indicando
que ali a praia era rasa, o som das ondas quebrando junto às pedras e as
gaivotas piando em suas lutas pela vida estimulavam os pensamentos de Ângela.
A vaidade feminina cobrava-lhe preocupações de como deveria estar
quando os estrangeiros chegassem. A pele morena e o corpo bem moldado por
longas caminhadas a deixavam extremamente atraente. Na juventude de seus
quarenta anos de mulher experiente e fogosa, não conseguia afastar seus
pensamentos do momento em que poderia, após tantos anos, ver homens diferentes.
Seu amor pelo companheiro Marcos não inibia sonhos de fêmea.
E suas amigas não estavam longe dessas preocupações. A notícia da vinda
daquele time mexera com todos.
As ilhas teriam nova vida, lutas diferentes, mais desafios, um impulso adicional que não
esperavam.
47.
Maria e Paulo
É tarde, o dia foi cansativo. Tudo o que está acontecendo é
extremamente desgastante. É difícil dormir, relaxar. Descanso pensando em Ana. Sinto-me
apaixonado por ela. Paro para lembrar a belíssima figura dessa mulher. Ela
povoa meus pensamentos, ajuda-me a suportar esses dias tenebrosos. Minhas
fantasias sexuais com essa nova paixão aumentam minha atividade, ativam
hormônios que já estavam de folga.
Sem maiores avisos Maria entra em meu escritório. Horário avançado,
ninguém mais apareceria. Chega bem vestida (ou despida). Mulher sensual, sabe
ser provocante quando o deseja.
Começa a falar comigo de forma carinhosa. As perguntas de praxe são
colocadas de forma amorosa, até melosa. Começo a me lembrar dela mais jovem,
linda, fogosa, atraente. O tempo passa,
entretanto. Muito de suas qualidades perderam o brilho, o sabor da hora. De qualquer forma ela é experiente,
sabe o que faz, tem formas de envolver um homem e tudo indica que irá usá-los.
Depois de alguma conversa superficial ela entra em seu jogo.
Abraça-me e diz com ternura:
- Paulo querido, temos brigado muito. Gosto de você. Infelizmente você
não aceita minhas propostas, briga comigo. Sempre nos demos bem, fomos muito
mais que simples amigos. Erramos, deixamos de aproveitar melhor nossas
qualidades. Eu ainda amo você, só não estamos juntos porquê você entendeu que
precisava dedicar-se completamente ao seu trabalho, eu lhe esperei nesses anos
todos , gosto muito de você.
Suo frio, essa mulher sabe ser gostosa, procuro responder como se não
entendesse suas intenções.
- Maria, eu também gosto de você. Nossas divergências, entretanto, são
enormes. Minhas opiniões afastam-se das suas dia a dia. Essa catástrofe me fez
refletir sobre muitas de minhas idéias, creio que adquiri uma nova visão da
vida.
- Minha preocupação é também essa. Onde está o Paulo combativo? Que o
fez mudar tanto?
Creio que é seu momento de realização maior, você pode, se quiser,
iniciar uma nova civilização. Será importante você começá-la bem, com
segurança.
- Realmente, procuro de todas as formas organizar da melhor forma os
nossos companheiros. Muitos grupos estão sendo preparados. Terão destinos
diferentes. Alguns fracassarão, outros, espero, terão sucesso. É uma
oportunidade trágica e espetacular para a colocação de nossos ideais. Preciso,
contudo, do apoio dos amigos. É uma péssima hora para debates inúteis.
- Paulo, acima de tudo vim aqui para te dizer que te amo, que quero
você para mim.
Maria despe-se lentamente, pouco a pouco suas roupas vão caindo
deixando-me excitado.
Procuro concentrar-me no assunto técnico mas aquele momento me pega de
surpresa. É difícil não reagir a tanta sensualidade. Abraçando-a quase a
carrego para um sofá. A tentação é imensa. Felizmente o cansaço do dia de
trabalho e a idade me ajudam a resistir. Que pena!
- Maria, preciso tomar decisões estratégicas, cuidar de detalhes,
pensar em todos.
Ela traz a questão que lhe atormenta:
- Creio que muitas discussões são necessárias. Não temos tanta
elasticidade assim. Os lugares a que nos destinamos são pequenos, noutros já existe
muita gente mas com costumes bem definidos. Nós os conhecemos, estamos
habituados a vê-los. E as pessoas estranhas, como reagirão?
Maria, conversando vai se aproximando de mim mais uma vez. De vagar
procura me envolver em seu charme feminino. Felizmente já tenho idade para
resistir melhor aos encantos de uma mulher, difícil é manter a pose por tanto
tempo. Ela exagera nas agressões ajudando-me assim a fugir a seus encantos.
- Paulo, você é um cientista brilhante. Graças a suas qualidades de
líder conquistou espaços, exerce seu cargo com muita competência. Não é
perfeito, como ninguém. Por quê levar Ana? Ela será problema para nós. Seu
comportamento tem sido estranho. Poderemos perder muito cedendo a seus
encantos.
- Maria, muito do que você viu está agora perfeitamente explicado,
aliás, para mim agora, graças ao que vimos nela, ganhamos compreensão
infinitamente melhor de nosso povo escravizado. Eu a amo, gosto dela e de sua
filha, não poderia abandoná-la.
Dizer isso foi como um chute no rosto de Maria. Sem conseguir esconder
seus sentimentos ela reage.
- Por quê amar uma estranha? Afinal o que ela lhe fez que não fizemos?
E eu?
Essa escorregadela desmancha a pose de Maria. Ela parece não saber se
chora ou fica com raiva. Finalmente, dominada pelos seus sentimentos, sai
amargurada sem ter atingido seus objetivos, se quer um momento de amor que tudo
indicava ser possível quando ela apareceu tão linda na minha frente...
Meu coração bate forte, é difícil recusar uma mulher que chega de forma
tão provocante. Felizmente suas palavras eram frias, não corresponderam ao
charme de suas poses.
48.
Paulo e Ana, discussões e decisões finais
A rejeição à Ana aumenta após os últimos problemas pelos quais ela
passara. Argumento mostrando-a como uma vítima do sistema de poder das elites.
Ela não tem culpa. Poderá ajudar-nos de alguma forma dentro de sua profissão,
será mais uma pessoa a compor uma equipe de técnicos a viabilizar a nova
existência.
Júlia e Ana se recuperam das cirurgias de extração dos implantes.
A polêmica dentro do grupo Mundo Novo é forte. Maria não perde a
oportunidade para envenenar seus companheiros contra as duas intrusas.
Tenho meus amigos mais fiéis e com eles começo a articular um plano
alternativo. A discórdia aprofunda-se. Joel, nosso companheiro xiita, apoia
Maria sem perceber que simplesmente é instrumento de uma reação mórbida,
vingativa.
Felizmente o Projeto Vida Básica tem outros barcos e outros lugares
para onde enviar pessoas. Não é exatamente esta a intenção de Maria. Ela
pretende simplesmente ter a oportunidade de viver em um lugar isolado comigo,
onde imagina poder reconquistar-me mais facilmente.
Ela não avalia a intensidade da paixão de seu amigo pela intrusa.
Sempre dedicado às ciências descobri, subitamente, outros valores esquecidos.
Ela não percebe quanto nós dois vibramos, amamos, sentimo-nos atraídos
mutuamente. Se um dia for diferente, que seja. Neste momento, contudo, o amor é
dominante e nada me fará afastar-me de Ana. Os últimos problemas até reforçaram
meus sentimentos. Compreendi o comportamento de minha amiga quando, muitos anos
antes, de repente, ela afastou-se, passou a me ignorar. Percebi que ela era
vítima de sistemas que fugiam a seu controle. Eu a senti sem os comandos
externos e agora tenho certeza de que a amo.
E para um homem nada o realiza mais do que a oportunidade de proteger a
mulher amada. Seus instintos de macho o tornam guarda, supridor e soberano da
fêmea que possui. Assim a luta de Maria apenas a afasta mais ainda de mim.
As discussões crescem. Maria insiste em seus propósitos. A decisão vem
quando o impasse começa a prejudicar as providências para a fuga. Com muita
tristeza decidimos nos dividir.
Sairemos com nosso barco e alguns amigos. Levaremos Ana e Júlia. Maria
assumirá o comando da base. Poderá decidir outra solução para ela e seus
companheiros, que se recusam a nos acompanhar. Estamos convictos do acerto de
nosso projeto, seguimos em frente nos preparativos para a viagem. Agora, meu
mais importante objetivo é levar minha amiga e sua filha para dentro do barco,
que zarpará em breve.
Divido meu tempo com a base e as duas mulheres que entraram em minha
vida. A pequena Júlia encontra novos brinquedos naquele espaço dedicado à
ciência. Já não freqüenta escola. Talvez nunca mais venha a fazê-lo. Em sua
pequena e inocente infância desconhece o pesadelo à sua volta. Diverte-se vendo
objetos estranhos nos museus e laboratórios. Vê, pela primeira vez, alguns
animais vivos. É uma experiência assustadora e divertida, conforme o caso.
49.
Últimos preparativos
Ana mudou muito, sente-se outra mulher. Seus sentimentos por mim só
cresceram após libertar-se totalmente dos sistemas que a controlavam. A visão
da vida, contudo, é outra. Já não aceita a disciplina estabelecida durante
anos. Quer entender, ver e conhecer outras coisas. Aquela mulher metódica não
existe mais. Os sistemas de influência eletrônica não lhe atingem mais. É uma
simples mulher, sem aparelhos e com muitos instintos a satisfazer. Sua
capacidade de trabalho é importante nesse momento.
A mudança para o barco é feita cuidadosamente. Há detalhes que não
poderão ser esquecidos: alguns remédios especiais, alimentos sintéticos, roupas
simples e resistentes e quinquilharias que nenhuma mulher despreza. Seu ninho
dentro do barco é construído cuidadosamente. E discretamente. Afinal a missão é
desconhecida da maioria dos membros da base. Eles são estimulados a pensar em
soluções alternativas à nossa.
Seria um desastre se todos fossem para o mesmo lugar. Felizmente
existem endereços, situações diferentes. E as coloco em minhas palestras, sem
mencionar a decidida pelo meu time. As ilhas a que nos dirigimos é de
conhecimento de poucos cientistas, como parte do Projeto Vida Básica. Outros
lugares são de domínio de outros. Eles poderão procurá-los ou, simplesmente,
isolar-se na base, na esperança de resistir ao cerco da doença.
A discussão sobre a sobrevivência de todos amplia-se entre nós. A
virulência da epidemia é assustadora e estimula a criatividade daqueles que
simplesmente não quiserem ser mais um nome nas listas de mortos, que não são
feitas. Por onde a doença passa praticamente não sobra ninguém para
escrevê-las.
Sinto-me encorajado a falar com mais liberdade das possibilidades de
sobrevivência. Não sentimos a ação do Governo, ninguém se preocupa com a disciplina
de uma entidade estranha.
Precisamos antecipar nossa saída. As discussões com Maria e seu time
afundam o moral de muitos companheiros.
O risco de maiores problemas fazem-nos decidir partir logo sem Maria,
Joel e alguns outros. Não é uma decisão fácil. A amizade entre nós era grande
mas agora as discordâncias podem destruir-nos. Uma esperança seria, em algum
momento no futuro, podermos nos reencontrar. A divisão teria a vantagem de
termos a chance de criarmos em lugares diferentes pólos das idéias que nos
uniram durante tanto tempo.
Felizmente o Projeto Vida Básica deu-nos elementos para identificação
de muitas formas de sobrevivência isolada.
Eles saberão encontrar uma alternativa.
E Ana trabalha. Junta suas coisas, agora nossas. Pouco a pouco organizamos
nossa esperança de futuro. Que sensação estranha. Tantos anos vivendo
programadamente, em torno de livros e laboratórios. Agora estou com uma mulher
e sua filha, cujo pai desconheço, apaixonado, pensando no futuro sem os
recursos tecnológicos tão naturais até agora.
Apesar de tantas reuniões, planos até violentos, mesmo com tanta
rejeição pessoal à sociedade em que vivia, sinto-me amedrontado diante de um
mundo que desconheço com profundidade. Os estudos davam-me um poder que no
fundo gostava muito. Agora serei com minha mulher mais um selvagem de uma ilha
distante.
50.
A Terra se transforma
Já faz mais de dois anos que a epidemia asiática deu seus primeiros
sinais. Começou discreta. Parecia um problema local. Até atendia certos
interesses de controle do aumento da população. Não demorou muito, entretanto,
para que se percebesse sua virulência. A violência de sua ação sobre o povo do
sul da Ásia era entendida como o resultado da miséria, da pobreza em que
viviam. Quando a morte atingiu cidades mais ricas, pessoas mais saudáveis, as
grandes autoridades começaram realmente a se preocupar. E a doença foi, passo a
passo, avançando sobre a Terra. Em poucos meses muitos países tornaram-se áreas
despovoadas, espaço de plantas e animais de todo tipo. A contaminação dos
continentes mais desenvolvidos foi o início de um apocalipse real, brutal.
E as mortes não eram o resultado de lutas e batalhas a serem
registradas por alguns sobreviventes, que viessem a escrever sobre esses
momentos de terror. Era apenas uma doença. Uma mudança que determinava a
eliminação de quase cem por cento da Humanidade.
Nesse final de epidemia as imagens eram estranhas. Cidades gigantescas
são espaços de animais selvagens. Eles voltam a imperar sobre planícies e
montanhas onde já foram reis. Agora suas florestas têm inúmeros montes muito
mais elaborados do que aquelas simples elevações de terra de um passado
longínquo. Nas antigas cidades inúmeras flores agora desabrocham em lugares
antes pisoteados por milhões seres humanos.
Rios e mares ainda têm muitos resíduos da presença humana. A destruição
de instalações críticas contaminou áreas gigantescas onde nada viverá durante
séculos. O tempo, entretanto, trará a solução para esses casos. A Natureza é
paciente.
Ao longe, de planetas e estações satélites, alguns poucos sobreviventes
da catástrofe terrestre, com todos os recursos da tecnologia ainda disponíveis
(por quanto tempo?), observam um planeta que não têm coragem de visitar. O
destino da maioria será a letargia, o congelamento, a paralisação e a esperança
de uma reanimação em uma época distante e mais segura. Neste processo usarão
instrumentos para a estimulação de alguns sentimentos e pensamentos agradáveis.
Afinal são os restos de uma civilização que se afundou em narcóticos químicos e
eletrônicos.
E na Terra alguns ainda vivem. Desses, aqueles que sobreviverão terão a oportunidade de recriar
uma cultura mais lúcida. Talvez prefiram a superstição. A catástrofe despertou
medos e respeitos antigos.
Na dispersão forçada e na criação de muitos refúgios haverá a
possibilidade de surgirem estruturas diversas, alternativas de vida.
Provavelmente os mais violentos formarão exércitos, iniciarão processos de
conquista e escravização de outros. Felizmente talvez a tecnologia ainda
possível de se usar e a própria capacidade de raciocínio, superior a de seus
ancestrais, permitam a inibição dos mais ferozes e ambiciosos.
O Sol voltará a reinar sobre um Mundo de muitas e diversas vidas.
Aquela espécie monótona e destruidora, feita como diziam, à imagem e semelhança
de Deus, afundou em suas arrogâncias.
Oportunamente grupos como aqueles ligados ao projeto Vida Básica
provavelmente recomeçarão outro ciclo. As baratas também devem ter tido muitos
inícios. Resistentes, sobreviveram a muitos cataclismos.
Nossos militantes privilegiados
têm cultura e recursos para a formação de melhores bases. Estudaram
durante toda a sua existência os problemas da superpopulação, da organização
social, dos efeitos da tecnologia consumista. É bem provável que alguns
consigam gerar as bases para uma sociedade mais inteligente.
A Terra é outra e nela começarão uma vida nova, a esperança é que isso
aconteça sem os vícios antigos.
51.
Os banqueiros diante das condições finais
A epidemia domina os Estados Unidos das Américas. Diversas agências do
WIB ficaram sem energia. Nelas a estratégia foi desligar todos os arquivos e
manter o gerentes ligados usando as fontes locais. Em condições normais essa
decisão teria sido contestada violentamente. Infelizmente a grande maioria das
usinas não conseguiram manter-se operando, apesar de todos os recursos
existentes de automação. A queda de linhas, sem ter quem as recuperasse, era
outra condição de desativação dos depósitos. O mais constrangedor é que muitos
procuraram os bancos na esperança de verem a crise sendo superada e poderem
voltar mais adiante. Apesar de todos os esforços, não foi possível sustentar o
quadro existente. Havia excessos e eles agravaram ainda mais a situação.
Na sede os gerentes maiores desenvolvem propostas em uma tentativa de
salvar algo. Afinal, sem credibilidade perderão, no futuro, se houver, a
confiança que tanto custou atingir. Há arquivos extremamente importantes
inclusive para o próprio banco. Contém elementos que contribuem para o sistema
integrado de lógica dinâmica. São fontes muito valiosas de raciocínios,
processamentos, cérebros humanos que se juntam a outros artificiais e,
interagindo-se, oferecem idéias e
propostas excepcionais. Essa organização foi o ponto alto dos bancos. No ápice
das possibilidades tecnológicas desse terceiro milênio, podia-se aproveitar as
melhores cabeças mantendo-as vivas e trocando informações, raciocinando tão
solidariamente como nunca foram capazes em seus corpos de origem. Nada ainda
conseguira substituir o cérebro humano. A associação deles em bancos e o
aproveitamento de suas capacidades na produção intelectual, devidamente
arquivadas em computadores convencionais, foi um passo extraordinário para a
evolução científica. Evidentemente antes de serem conectados passavam por
avaliações complexas. Mesmo tendo sido excepcionais em vida normal, poderiam
oferecer alguma incompatibilidade com o sistema. Eventualmente alguns traziam
doenças perigosas, vírus reais dentro de um processo muito sensível. Outros
possuíam forte base filosófica contrariando a existente nos arquivos e,
principalmente, a desejada pelos grandes líderes.
Os arquivos são classificados de acordo com a memória acrescentada
pelos contribuintes, pela velocidade de raciocínio, pelo potencial de
crescimento, ou seja, pela avaliação de áreas disponíveis nos cérebros e assim
por diante. É uma técnica desenvolvida há muitos séculos. A princípio distante
dos olhares da população, em laboratórios secretos, formaram-se grandes
sistemas de processamento de informações com cérebros dos próprios cientistas,
coletados após suas mortes. Depois, com a demonstração de que assim teriam uma
sobrevida, pessoas em condições terminais optaram por aderir aos bancos. O
sucesso levou à formação do World Intelligence Bank e abertura para ingresso de
quem o desejasse. A conexão tem que ser feita antes da destruição (que é
rápida) do cérebro por falta de oxigenação. E os bancos precisam manter
nutrientes, oxigênio e temperaturas corretas além das conexões elétricas.
Assim, diante de todas as dificuldades,
a sede do WIB elegeu um arquivo de alto nível e mais próximo para
sustentação. Acreditam que as baterias de células fotovoltaicas existentes
sobre suas instalações serão capazes de mantê-los operando. Uma pequena unidade
de produção de energia atômica também garante a sustentação desta base. Mesmo
no inverno existe a possibilidade de diminuição de atividades, que combinadas
com o frio, permitem a manutenção de todos sem degradação irreversível. Robôs
humanóides trabalharão para obter os alimentos essenciais.
As notícias são dadas por John:
- Para processamento e análise, nosso Governo instalou-se em uma
estação isolada, praticamente não governa pois não tem mais a quem dirigir
ordens fora de sua base. Provavelmente ficará preso nessas instalações por, no
mínimo, dezenas de anos.
As cidades foram abandonadas. A mortalidade é quase total. A degradação
dos corpos de pessoas e de animais presos sem alimentação cria condições de
agravamento extremamente nocivos a eventuais sobreviventes.
Estamos sob racionamento severo de energia. As últimas grandes usinas
estão prestes a serem desligadas. Funcionam sem operadores humanos.
Em estações planetárias alguns seres humanos sobreviverão.
Provavelmente o mesmo sucesso terão algumas comunidades isoladas na Terra.
Por tudo o que acontece chegaremos aos últimos estágios da operação Ato
Final. O sucesso desse plano permitirá, no futuro, o retorno de nossas
atividades.
A decisão estabelecida após processamentos intermináveis cria uma
situação paradoxal. Eles que tinham por função manter vivos tantos cérebros,
agora desligam-nos para, como inteligências artificiais, continuarem operando.
(Seriam artificiais máquinas que desenvolvem raciocínios éticos, criam
procedimentos próprios, tomam decisões? Não seria mais uma forma de vida?)
Alguns serão mantidos para deles se servirem. Robôs sob o comando dos
banqueiros construirão robôs. Robôs feitos para servirem gente agora delas se
servem, do que sobrou.
Assim os bancos, marca desta época, começam a paralisar depósitos de
todo tipo. Esses depósitos eram um prodígio da bio tecnologia e engenharia. Há
muito tempo sabia-se que o cérebro, parte final e essencial de qualquer ser
humano, poderia ter, virtualmente, todos os prazeres que uma pessoa completa
sentia. Tudo seria atingido se determinados estímulos elétricos e químicos
atingissem certas partes da massa cefálica. Lá, aquilo que restava de um ser
humano sentiria a vida em sua plenitude sem, entretanto, ter qualquer parte de
seu corpo exceto o cérebro. Após muitas experiências e pesquisas dominou-se a
técnica com diversos graus de operação. Alguns indivíduos eram mantidos
completos. Para eles havia a esperança de um retorno à vida normal. Outros eram
segmentados, colocando-se em nichos especiais apenas a cabeça, conservando-se o
corpo em outro local. Finalmente havia aqueles de quem apenas se mantinha o
cérebro.
Os arquivos ainda evoluíram, conectando-se cérebros e criando-se bancos
pró ativos. As melhores inteligências, ligadas em redes, continuavam atuando
sob efeito de estimulantes e nutrientes, contribuindo com idéias que eram
processadas por sistemas de computadores científicos. Assim os banqueiros
decidiam como operar seus depósitos após avaliações de produtividade de seus
arquivos. Eles, por sua vez, eram autênticos robôs com a vantagem de possuírem
programação moral avançada. Um grande desafio foi colocar no pacote de
software, utilizado pelos banqueiros, avaliações éticas, filosóficas. O
problema agora era terem individualidade, poderem decidir independentemente. E
esta era uma virtude, a princípio.
Era muito difícil classificar pessoas e arquivá-las em formas
diferentes, algumas que as condenavam a muitas limitações. A criação dos robôs
com capacidade de avaliação tirara dos gerentes humanos a responsabilidade de
decidir sobre a vida de pessoas, que muitas vezes amavam.
Os banqueiros e os gerentes das diversas agências do WIB eram autômatos
com qualidades excepcionais. Eles não eram sensíveis diretamente à epidemia,
são máquinas. Precisam, contudo, de muito da estrutura tecnológica existente,
muito dela dependente de seres humanos vivos e normais, nos padrões da época.
Assim a destruição da sociedade humana afetava os banqueiros mas os liberava de
cuidar de seus depósitos. A questão agora seria descobrir outra atividade. A
princípio simplesmente resistir à falta de energia. No futuro, talvez, de
alguma forma ter mais autonomia com a racionalização de seus módulos mais
consumidores de energia.
Os robôs humanóides serão seus instrumentos para recuperação de alguns
recursos perdidos. Os seres humanos sobreviventes, se resistirem às suas
próprias lutas, mais tarde voltarão a conviver com o WIB e seus robôs.
E o desligamento dos arquivos deixa grandes depósitos se degradando,
juntando-se ao apodrecimento de uma espécie animal que até pouco tempo dominava
a Terra.
52.
O Presidente dos EUAs a caminho de seu abrigo
O Presidente e sua família entram na área isolada em algum lugar das
Américas para a sobrevivência pretendida. Abatido, deprimido, tem poucas forças
para o exercício de um cargo praticamente simbólico mas que ainda lhe oferece
algumas mordomias. Esses privilégios também são o reconhecimento daqueles que
realmente mandavam nos Estados Unidos das Américas.
É uma área complexa, cheia de recursos técnicos de proteção. O mais
impressionante é o isolamento da própria atmosfera. Uma estrutura com vidros
especiais cria um isolamento total, de forma que tudo dentro daquela área é
controlado, tratado. Era um ambiente para pesquisas científicas ambientais.
Muitos trabalhos interessantes foram feitos naquele local, procurando,
principalmente, avaliar formas de sobrevivência em ambientes hostis. Agora é o
local escolhido para a sobrevivência de muitos que lá, antes, apenas viam
espaço de estudos inúteis.
O Presidente procura consolar seus auxiliares e companheiros nesta
etapa das vidas deles, eles que foram tão poderosos.
- Somos privilegiados, estamos sob a proteção do que existe de melhor
em nosso país. Estou velho mas vocês poderão iniciar aqui uma nova civilização.
Nosso planeta tinha muitas falhas, poderá recomeçar evitando-as. Temos aqui
arquivos e reservas de altíssimo valor. Sairemos daqui em excelentes condições
para reocupar nossos espaços. Sabemos que essas doenças terminam, esgotam-se.
Quando voltarmos a nossas cidades, ou melhor, aos lugares que habitávamos
estaremos preparados para enfrentar os desafios da reconstrução. Uma quantidade
gigantesca de robôs foi estocada para esse trabalho. Entre nós temos
especialistas de toda espécie. Somos poucos mas complementares.
O maior desafio será, contudo, vencer e dominar núcleos que poderão
existir fora daqui mas vocês estão preparados para tudo. É natural que alguns
conflitos aconteçam. Estamos muito bem armados para resistir a qualquer ataque
maior do um vírus. Essas estações em que
estamos foram equipadas com proteções de diversas espécies. Serão extremamente
úteis agora. com certeza estaremos bem protegidos. Temos o controle dos
sistemas de influência eletrônica aqui dentro. Assim poderemos administrar
certos impulsos, mantendo a disciplina. Com certeza poderemos resistir a muita
perturbação.
A vida se renova. Sabemos como e quanto isso acontece pelo Universo,
chegou a nossa vez de mudar, recriar uma nova base. Se nosso povo estiver nos
planos do Grande Arquiteto do Universo, não desaparecerá. Imagino, contudo, que
ele pretenda a existência de algo mais desenvolvido, elaborado. Todas as
tecnologias estão documentadas, sabemos muito e com certeza alguns de nossos
descendentes poderão retomar o que for conveniente, quando pudermos viver fora desta
redoma. O uso dos conhecimentos científicos é um "handicap" poderoso.
Simplesmente possuímos em arquivos tudo o que era possível conhecer até agora.
evidentemente teremos falta das estruturas produtoras mas muito será recuperado
em pouco tempo após a restauração da saúde ambiental.
Lutamos para evitar a tragédia. Deus sabe quanto resistimos.
Lamentavelmente avaliamos mal nossa capacidade de resistir.
Estamos tranqüilos, fizemos o que podíamos e acreditávamos ser
necessário. Muitos poderão, no futuro, questionar. Quem, entretanto, é dono da
verdade? Quem é capaz de explicar e decidir sempre da melhor maneira? É fácil
julgar, acusar, condenar quando as coisas já passaram. Difícil é agir no tempo
certo e com as providências corretas ao ritmo dos desafios da vida.
Tenho pena daqueles que sobreviverem fora de nossos cuidados.
Precisarão reconstruir, refazer estruturas materiais e culturais. Saberão viver
sem as facilidades da tecnologia que conquistamos?
Interessante, quase poderíamos dizer há pouco tempo que estaríamos
preparados para resistir a qualquer ameaça. Tínhamos domínio fantástico sobre
inúmeras tecnologias, facilidades de transporte, cálculo, construção,
conservação e sabe lá quantas coisas mais. Infelizmente ainda éramos sensíveis
a muitas coisas, em especial a doenças dessa espécie. Outra questão importante
é que no conjunto tínhamos muitos conhecimentos, controle de infinitas
tecnologias. Dispersos, sem tempo e competência para organizar nossas forças,
tornamo-nos frágeis.
Recomeçar é uma condição que a natureza nos ensinou. Reiniciaremos,
esperamos atingir um domínio tecnológico que nos permita enfrentar a próprio
Universo. Por outro lado, se
desaparecermos, o que terá sobrado de tudo o que fizemos?
53.
A chegada às ilhas Estrelas
Anoitecia quando percebemos ao longe a silhueta das Ilhas Estrelas. Uma
viagem longa e complexa levara-nos àquele ponto distante. Odisséia tenebrosa,
nossa viagem acontecera desviando-se de todo contato com outros lugares
habitados. Não podíamos nos arriscar. Não sabíamos exatamente onde a epidemia
teria chegado.
E apesar de tudo tinha sido maravilhoso. Protegendo-nos durante o dia
dos raios solares, vendo as maravilhas de um oceano poucas vezes admirado com
tanta esperança, chegamos à terra onde reconstruiremos nossas vidas.
Foram dias de muitas angústias também.
A alegria e a melancolia somam-se a muitas tristezas naquele momento de
esperança. Muitos amigos e amigas foram deixados para trás. Em minha memória
desfilam seus rostos. Muitos devem estar mortos. Outros talvez escondidos em
algum lugar deste planeta maluco. Minhas amigas, de uma maneira especial, vão
desfilando em doces lembranças que se tocam no espectro da morte. É tristíssimo
saber que dificilmente eu as reencontrarei, se o fizer provavelmente será com o
manto da velhice e as cicatrizes desta época.
Não poderíamos ter tudo ao mesmo
tempo. Todos nós que conseguimos encontrar uma solução, em especial essa fuga
para esse recanto paradisíaco,
sentimo-nos fugindo de uma tragédia sem precedentes e abrindo as portas
de um paraíso. Deixamos para trás um Mundo super desenvolvido, tecnológico,
denso e frágil. Tão fraco que foi derrotado por um simples vírus, assim como
acontece com os mais poderosos computadores. Procurei agir com inteligência,
dei-me o luxo de alguma emoção.
Até onde é válido a racionalidade? As paixões, tão combatidas pelas
religiões e poderes constituídos deverão ser esquecidas? Como faremos este
Mundo novo? O desafio é enorme. Precisaremos recriar padrões, leis, hábitos e
crenças. Nosso time é minoria na terra em que desembarcaremos. Seremos aceitos?
Não seremos destruídos? Será preciso muita habilidade para não ofendermos o
povo lá existente. Temos armas, elas nos assustam também. Poderão ser mal
usadas. Espero ter escolhido bem os companheiros dessa aventura...
A diminuição drástica da população dá-nos a oportunidade, outra vez,
dos grandes e reais prazeres. Voltaremos a exercer com todos os nossos poderes
nossas funções básicas. Agora existe espaço para uma nova população.
Poderemos caminhar entre plantas e animais silvestres. Acompanharemos o
Sol a caminho da noite e a Lua será a
antiga e bela rainha da noite. As estrelas, as areias das praias, as ondas e
ventos serão outra vez saboreados e temidos como a Humanidade os sentiu até há
poucos séculos.
Vivíamos em sociedades formigueiros, planificadas, numericamente
densas, rarefeitas em valores, desafios reais. Temíamos as catástrofes,
esquecíamos a importância dos espaços, das liberdades que perdêramos há tanto
tempo.
Precisamos compreender a vida. Mais importante que milhões de
distrações é termos orgulho do que somos. E se isto é a ante sala de outra
vida, onde estava a vida real?
A inteligência é um grande fardo. Talvez seja importante regredir.
Vamos retomar antigos jogos e fantasias. A paixão pelas imbecilidades
dá forças para resistir à inteligência. Precisamos rever critérios. O que é ser
racional?
Júlia brinca no convés do barco. Em sua inocência mostra extrema
felicidade de ver o mar, sentir seu cheiro, ouvir as gaivotas, perceber em sua
pele as gotas salgadas das ondas do mar. Ainda não entende a tragédia que se
abateu sobre seu povo. E brincou muito com o Renato, um menino de oito anos,
filho de um casal de companheiros nossos. Os dois estão revigorados, com muito
mais saúde do que no momento em que embarcaram assustados naquele gigante
metálico. E não se conheciam antes.
Estarão chegando em uma terra onde Marcos, Ângela e outros seres
humanos têm suas vidas. Gente que até agora conhecíamos muito bem como
estatísticas, exemplos de estudos, ilustrações de relatórios de toda espécie e
imagens apaixonantes roubadas pelos nossos sensores. Pessoas simples,
ignorantes em relação a muitas ciências dominadas pelos visitantes mas com toda
a sabedoria daqueles que sentem a Natureza à volta. Gente que vive de pés no
chão e conquistando sua sobrevivência na convivência diuturna com céus e
terras.
E a eles acrescentaremos outras vidas.
Em um ciclo que só o Grande Arquiteto é capaz de administrar, o
Universo recria suas melhores imagens. Provavelmente em outros lugares
processos semelhantes estejam acontecendo. Todos poderão agora refletir sobre a
insensatez de um planeta mal administrado, egoisticamente desenvolvido. Terão
novas oportunidades.
Que os amores imperem sobre os ódios, o altruísmo seja a regra, a vida
se reconstrua em bases sadias. É a nossa esperança, marinheiros, jovens
colonos. Nossos descendentes terão daqui a milhares de anos problemas
semelhantes aos nossos. Ganharam, contudo, mais este tempo de existência.
Precisarão, se não quiserem repetir erros, ter em mente uma convivência
inteligente com a natureza. O ser humano é um animal dentro de um contexto
universal com o compromisso de ser
inteligente, de viver sob diretrizes éticas e saudáveis. O grande desafio que a
natureza nos impôs é sabermos viver em harmonia conosco e integrados a seu
conjunto. Nesse espaço de existência poderemos construir um mundo melhor, é o
que nosso grupo pretende.
Júlia e Renato continuam a brincar. Nas praias outras crianças
divertem-se treinando para a vida.
Nós, adultos, precisaremos ter muita disciplina e vontade para
sustentar o que acreditamos. Manter, aprimorar e transmitir.
Manteremos nossos ideais? Teremos capacidade de convencer nossos
descendentes?
Epílogo
Este livro foi uma tentativa de alertar os leitores para um cenário a
que a Humanidade poderá chegar. Muitas expectativas tradicionais foram
invertidas de propósito, afinal, quantas vezes nossos futurologistas erraram?
Não foram poucas as vezes em que famosos cientistas e religiosos se enganaram.
A caridade humana sempre esqueceu esses fracassos, principalmente quando de
pessoas carismáticas.
A história se passou em algum momento distante do terceiro milênio,
nada impedirá, contudo, que esses cenários se realizem em poucas décadas. Não existe
a preocupação de se descrever em detalhes as infinitas coisas e tecnologias a
serem anunciadas, vendidas e usadas para os mais diversos fins. A intenção é
realmente alertar o leitor para alguns dos enormes riscos que a Humanidade
estará sujeita em breve, alguns deles dentre os
piores possíveis. São hipóteses razoavelmente prováveis, daí o receio de
que a história apresentada aqui se realize de alguma forma.
Infelizmente a imensa maioria das pessoas só dá atenção a qualquer
assunto se ele estiver ligado a suas exigências básicas mais elementares e
imediatas. Comer, transar, defecar, dormir e acordar são sempre as prioridades
de qualquer ser humano. A sobrevivência
gratificante, a existência prazerosa, desafiadora e apaixonada é preocupação
dos melhores.
A esperança é contribuir para algum progresso no grande propósito de se
pensar na vida sob as condições que estão chegando. Evidentemente a tecnologia
permite maior qualidade de vida e condições de existência em lugares, que, de
outra forma, seriam inabitáveis.
Reafirmamos que neste livro enfatizamos algumas hipóteses ruins e talvez muito mais próximas do que
possamos imaginar. A lavagem cerebral, a tirania publicitária, o império da
mídia e os riscos de um mundo cada vez mais difícil deverão ser vencidos pelos
nossos filhos e netos. Talvez o contrário tenha maior probabilidade de
acontecer, ou seja, nossos descendentes poderão vir a ser escravos de elites,
de grandes empresas. Alguém duvida?
Tendemos a uma forma de escravidão sutil, camuflada de mil formas. O
animal gente poderá vir a ser pouco mais que um elemento de um grande rebanho,
delícia de tantos ditadores.
O que mais terá efeito
destruidor da própria natureza humana, sedenta de liberdade, que o controle das
mentes? A Humanidade pode estar prestes a ser submetida a formas sutis e
extremamente eficazes de dominação. Todo o progresso científico é instrumento
daqueles que podem mantê-lo, pagá-lo, sustentá-lo. Ou seja, os maiores
benefícios e perigos da ciência são propriedade de indivíduos e organizações
fora do controle democrático. Isso significa um tremendo poder nas mãos de uma
minoria. Ela tem condições de exercê-lo com dignidade a favor da Humanidade?
Além do monitoramento e comando das pessoas expostas ao poder dos
grandes grupos tecnológicos, a própria Terra vive em constante transformação. A
Natureza se auto regula.
O cenário mundial desenvolvido neste livro foi uma a coincidência de
situações negativas à sobrevivência humana. A superpopulação, a tecnologia
dominando os seres humanos, e, sobre tudo isto, o advento de uma catástrofe é
uma hipótese muito provável. Não é uma história agradável mas talvez valha a
pena pensar em coisas desagradáveis para não se ter de viver nelas.
Os riscos que a Humanidade corre já são elevados. Algumas epidemias
controladas a tempo deixaram de marcar profundamente nosso povo. Tivemos no
início do século vinte a Gripe Espanhola. Ela matou mais gente que a Primeira
Guerra Mundial. A miséria, a subnutrição e a promiscuidade são caldos perfeitos
para o desenvolvimento de qualquer doença. O terrorismo teima em existir, é a
arma mais eficiente de minorias radicais. Perigosamente mostra a grupos
mafiosos como se pode intimidar populações inteiras. Paralelamente laboratórios
e empresas de toda espécie dominam tecnologias as mais diversas. Que poderes
terão em breve? O que seus acionistas estarão planejando?
Vemos o crescimento dos sistemas de condução humana. A mídia,
onipresente, decide presidentes, escolhe sabonetes e condena pessoas. E ela
está a serviço de quem lhe paga suas habilidades.
Se o controle da mente humana é assustador, a superpopulação também
terá efeitos desastrosos. Excesso de gente é algo relativo. É função da
capacidade de qualquer ambiente e de nossos sentimentos. Com certeza já existe
gente demais em alguns lugares de nosso planeta.
A superpopulação não é apenas um problema logístico. Gera ambientes
tenebrosos. Cria tensões perigosas. Como estaremos daqui a mil ou dois mil anos
se não nos destruirmos antes? Poderemos continuar crescendo no ritmo atual? E a
necessidade de manutenção da população em níveis sensatos é um processo
consciente? Muitas religiões falam em apocalipses, em momentos futuros de
grande tristeza. Não seria possível evitá-los? Talvez no fatalismo de seus
credos estejam inibindo atitudes, que manteriam a Humanidade dentro de uma
dimensão suportável pelo nosso planeta. E pior do que a superpopulação seria o
domínio tecnológico em mãos erradas, fora de controles éticos. O paradoxo da
liberdade de poder criar com o poder de destruir é preocupante. A Humanidade,
usando esta mesma liberdade, talvez descubra e aplique uma forma de auto
destruição inconsciente. É algo que precisamos pensar. O cérebro humano
evoluído e seus piores instintos talvez sejam mortalmente incompatíveis.
E os formadores de opinião, os donos do Poder, as classes dominantes
talvez venham a ser elas mesmas vítimas de tanta alienação. Precisamos avaliar
a relação entre os indivíduos comuns e suas elites. Elas são cada vez mais
fortes. E algumas muito mais que outras. Se queremos uma evolução sadia,
conscientizemo-nos dos poderes que nos afetam. Lutemos para que sejam limitados
e que não atinjam nossa liberdade em seus aspectos mais saudáveis.
A tecnologia poderá ser aliada ou inimiga. Os avanços da Ciência
mostram aspectos extremamente perigosos. Sob seus favores poderemos encontrar
caminhos de menor esforço e maior degradação. A sobrevivência da Humanidade
depende de harmonia com a Natureza em todos os seus aspectos, inclusive e
principalmente a nossa essência humana. Perder a sensibilidade de nossas
funções é um erro muito grave. A vida exige compromissos severos.
Desconhecê-los significará por em perigo a sobrevivência da espécie humana e de
toda a vida sobre a Terra.
Ainda há tempo para se colocar sob controle a máquina da evolução.
Qualquer descuido poderá ser fatal.
Uma questão mórbida que se coloca é se o que se entende por catástrofe
seria realmente algo ruim. 99% das pessoas são apenas bancos genéticos a
enfeitar a Natureza. Contribuem para melhorar alguma coisa sobre a Terra?
Grandes cataclismos, acidentes e revoluções reduziram populações de toda
espécie. O que sobrou? O Grande Arquiteto do Universo deve, de tempos em
tempos, eliminar excessos.
O Universo é infinitamente maior do que qualquer ser humano. A existência
dos humanos é uma concessão da Natureza. Simplesmente!
A vida é matéria em movimento, a inteligência é algo mais. Nós a temos?
Viver é importante, defender a vida é condição de sobrevivência. É
inaceitável negar a si próprio. A grande dúvida em relação ao futuro é se
continuaremos a existir, apesar de geneticamente, sexualmente e materialmente
parecermos continuar. A vida futura será uma ilusão? Será necessária?
O livro fala de um período glacial. Isto é secundário. Que diferença
faria para a Humanidade se a temperatura subisse ou descesse? Os desafios não
serão muito diferentes. Todos raciocinam como se o que vissem e vivessem fossem
eternos. A realidade é que a Terra é dinâmica, muda sempre. Vivemos
extremamente pouco para perceber certas alterações mas existimos o suficiente
para entendermos que há coisas que mudam, só não sentimos o quanto mudam.
É muito importante que todos entendamos a fragilidade da vida. Ela é
maravilhosa e fascinante mas fugaz. Em suas fraquezas poderá terminar antes dos
tempos. Precisamos, queremos viver. Entendendo os desafios da sobrevivência
conseguiremos superar muitas barreiras.
Será lamentável se nossa capacidade de pensar não vier a conquistar
níveis superiores. O ser humano tem sobrevivido graças a um poder de adaptação
e evolução incríveis. Assim terremotos e vulcões, cobras e leões perderam para
nós.
Será que conseguiremos resistir a nós mesmos?
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